sábado, 30 de dezembro de 2023

Nossa Senhora de Paris

 Paris (França)




A Catedral Metropolitana de Paris é como que o símbolo do amor filial devotado à Mãe de Deus pelo povo da França. 

A primeira igreja, dedicada a Nossa Senhora, existia desde o século IV, e em 1163 foi começada a Catedral atual, sobre o qual tantas vezes se estendeu a proteção da Mãe de Deus, fazendo sua a divisa da cidade - "Fluctuat, nec mergitur".

A igreja é um hino de louvor a Maria; seu estudo arqueológico merece um lugar à parte.





A imagem venerada nessa igreja (Catedral), a qual recebeu o título de - Nossa Senhora de Paris, segundo o costume da França, que dá às suas imagens célebres, quase sempre, por título, o nome do lugar onde são veneradas, essa imagem, digo, é uma preciosa Virgem do século XIV, que se acha no transepto, do lado do Epístola, colocada sob um docel.







A Catedral de Paris possui insignes relíquias da paixão: a "Coroa de Espinhos", um pedaço da "Cruz verdadeira", e um dos "Cravos", cuja veneração atrai na sexta-feira santa uma multidão tão densa, que transborda da Igreja.



Nos dias de perigo e de calamidades, o povo de Paris, atendendo ao apelo de seu Bispo, enche a vasta nave, e as preces públicas ressoam até ao espaçoso adro, onde o povo que a Igreja não comporta se ajoelha, ao ar livre. 

O Santuário de Nossa Senhora de Paris viu sob suas arcadas todas as glórias e todos os lutos da França: os do antigo regime, que seria muito longo enumerar; a sagração de Napoleão; os funerais e os serviços fúnebres dos Marechais das últimas guerras, etc.

Há peregrinações durante o ano todo e nas festa da Santíssima Virgem.

(Versão meio resumida do livro "Mille Pèlerinages de Notre-Dame", de I. Coutunier de Chefdubois.)


**No ano de 2019, houve um terrível incêndio na Catedral que danificou parte da estrutura. A maioria das relíquias foram salvas, mas algumas se perderam. Até hoje não sabemos ao certo qual foi o tamanho dessa perda. A Catedral segue fechada para reformas desde então, com expectativas de ser reaberta ano que vem 2024. 



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Maria e seus gloriosos títulos, Edésia Aducci, editora Lar Católico, 1960, 2ª edição.

Fonte das imagens: 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Catedral_de_Notre-Dame_de_Paris

https://www.arch2o.com/photos-from-inside-notre-dame-after-the-fire/#google_vignette

https://davidphenry.com/Paris/paris591.htm

domingo, 17 de dezembro de 2023

Série Tratado: § II. Esta devoção é um caminho curto

 

 Fonte: Livro Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem 



155. Esta devoção à Santíssima Virgem é um caminho curto² para encontrar Jesus Cristo, seja porque dele não nos extraviamos, seja porque, como acabo de dizer, nele marchamos com mais alegria e facilidade, e, consequentemente, com mais prontidão. Avançamos mais, em pouco tempo de submissão e depedência a Maria, do que em anos inteiros de vontade própria e contando apenas com o próprio esforço; pois o homem obediente e submisso a Maria Santíssima cantará vitórias (Pv 21,28) assinaladas sobre seus inimigos. Estes hão de querer impedi-lo de avançar, ou obrigá-lo a recuar, ou derrubá-lo;  mas, apoiado, auxiliado e guiado por Maria, ele, sem cair, sem recuar, sem mesmo se atrasar, avançará a passos de gigante em direção a Jesus Cristo, pelo mesmo caminho, que, como está escrito (Sl 18,6), Jesus trilhou para vir a nós em largos passos e em pouco tempo.

156. Por que viveu Jesus Cristo tão pouco sobre a terra, e por que esses poucos anos que aqui viveu passou-os quase todos em submissão e obediência a sua Mãe? Ah! é que, tendo vivido pouco, encheu a carreira de uma longa vida (Sb 4,13); viveu longamente e mais do que Adão, do qual veio reparar as perdas, embora este tenha vivido mais de novencentos anos; e Jesus Cristo viveu longamente, porque viveu bem submisso e bem unido a sua Mãe Santíssima, para obedecer a Deus seu Pai; pois: 1º) aquele que honra sua mãe assemelha-se a um homem que entesoura, diz o Espírito Santo, isto é, aquele que honra a Maria, sua Mãe, ao ponto de submeter-se a ela e obedecer-lhe em tudo, em breve se tornará rico, pois acumula tesouros todos os dias, pelo segredo desta pedra filosofal: "Qui honorat matrem, quasi qui thesaurizat" (Eclo 3,5); 2º) porque, conforme uma interpretação espiritual da palavra do Espírito Santo: "Senectus mea in misericordia uberi, - Minha velhice se encontra na misericórdia do seio" (Sl 91,11), é no seio de Maria, que "envolveu e gerou um homem perfeito" (cf. Jr 31,22), e que "teve a capacidade de conter aquele que o universo todo não compreende nem contém"³, é no seio de Maria que os jovens envelhecem em luz, em santidade, em experiência e em sabedoria, e onde, em poucos anos, se atinge a plenitude da idade de Jesus Cristo.

§ III. Esta devoção é um caminho perfeito.

157. Esta prática de devoção à Santíssima Virgem é um caminho perfeito para ir e unir-se a Jesus Cristo, pois Maria é a mais perfeita e a mais santa das criaturas, e Jesus Cristo, que veio perfeitamente a nós, não tomou outro caminho em sua grande e admirável viagem. O Altíssimo, o Incompreensível, o Inacessível, aquele que é, quis vir a nós, pequenos vermes da terra, que nada somos. Como se fez isto? O Altíssimo desceu perfeita e divinamente até nós por meio da humilde Maria, sem nada perder de sua divindade e santidade; e é por Maria que os pequeninos devem subir perfeita e divinamente ao Altíssimo sem recear coisa alguma. O Incompreensível deixou-se compreender e conter perfeitamente por Maria, sem nada perder de sua imensidade; é também pela pequena Maria que devemos deixar-nos conduzir e conter perfeitamente sem a menor reserva. O Inacessível aproximou-se, uniu-se estreitamente, perfeitamente e até pessoalmente à nossa humanidade por meio de Maria, sem perder uma parcela de sua majestade; é também por Maria que devemos aproximar-nos de Deus e unir-nos a sua majestade, perfeita e estreitamente, sem temor de repulsa. Aquele que é quis, enfim, vir ao que não é, e fazer que aquele que não é se torne Deus ou aquele que é. E Ele o fez perfeitamente, dando-se e submetendo-se inteiramente à Virgen Maria sem deixar de ser no tempo aquele que é na eternidade; outrossim, é por Maria que, se bem que sejamos nada, podemos tornar-nos semelhantes a Deus, pela graça e pela glória, dando-nos a ela tão perfeita e inteiramente, que nada sejamos em nós mesmos e tudo nela, sem receio de nos enganar. 

158. Ainda que me apresentem um caminho novo para ir a Jesus Cristo, e que esse caminho seja pavimentado com todos os merecimentos dos bem-aventurados, ornado de todas as suas virtudes heroicas, iluminado e decorado de todas as luzes e belezas dos anjos, e que todos os anjos e santos lá estejam para conduzir, defender e amparar aqueles e aquelas que o quiserem palmilhar; em verdade, em verdade, digo ousadamente, e digo a verdade, eu havia de preferir a este, tão perfeito, o caminho imaculado de Maria: "Possui immaculatam viam meam" (Sl 18,33), via ou caminho sem a menor nódoa ou mancha, sem pecado original ou atual, sem sombras nem trevas;  e quando meu amável Jesus vier, em sua glória, uma segunda vez à terra (como é certo) para aqui reinar, o caminho que escolherá será Maria Santíssima, o mesmo pelo qual ele veio com segurança entre a primeira e a última vinda é que a primeira foi secreta e oculta, e a segunda será gloriosa e retumbante; ambas, porém, são perfeitas, porque, como a primeira, também a segunda será por Maria. Eis um mistério que não podemos compreender: "Hic taceat omnis lingua".

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2. "Tu es via compendiosa in caelo" (SÃO BERNARDO. Laudes glor. Virginis). Cf. "Recta et tanquam compendiaria via ad Iesum per Mariam itur" (BENTO XV. Epist. ad R.P.D. Schoepfer. - AAS 1914, p. 515).

3. Cf. Gradual da Missa da Santíssima Virgem (de Pentecostes ao Advento); 1º Responso do Ofício da Santíssima Virgem. 

São Luís Maria Grignion de Montfort; Missionário Apostólico, Fundador da Congregação dos Missionários da Companhia de Maria e da Congregação das Filhas da Sabedoria. 
44° edição- Editora Vozes- Petrópolis, 2014.


sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Necessidade da oração

Livro: A Oração - Cap. I

Santo Afonso Maria de Ligório

(1696-1787)

Bispo e Doutor da Igreja

Editora Santuário, 1ª ed, 1987, 31ª imp. 2016.





 1. O erro dos pelagianos

Erram os pelagianos dizendo que a oração não é necessária para se conseguir a salvação. O ímpio Pelágio, seu mestre, afirmava que só se perde quem não procura conhecer as verdades necessárias. Mas, como o disse bem Santo Agostinho, Pelágio falava de tudo, menos da oração, que, conforme sustentava e ensinava o mesmo santo, é o único meio de adquirir a ciência dos santos, como escreve São Tiago: "Se alguém necessita de sabedoria, peça a Deus, que a concede fartamente a todos" (Tg 1,5).


2. Nas Sagradas Escrituras são muito claro os textos que nos mostram a necessidade de rezar, se quisermos alcançar a salvação. "É preciso rezar sempre e nunca descuidar" (Lc 18,1). "Vigiai e orai para não cairdes em tentação" (Mt 25,41). "Pedi e dar-se-vos-á" (Mt 7,7). Segundo a doutrina comum dos teólogos, as referidas palavras: "É preciso rezar, orar, pedir", significam e impõem um preceito e uma obrigação, um mandamento formal. Vicleff afirmava que todos esses textos não se referiam à oração, mas tão somente às boas obras, assim, rezar, no seu modo de ver, nada mais é do que agir corretamente e praticar o bem. A Igreja, entretanto, condenou expressamente esse erro. Por isso, ensinava o douto Léssio que, sem pecar contra a fé, não se pode negar a necessidade da oração aos adultos, mormente quando se trata de conseguir salvação. Pois, como consta nos Livros santos, a oração é o único meio para conseguirmos os auxílios necessários à salvação.


3. A razão desta necessidade é bastante clara

Sem o socorro da graça, nada de bom podemos fazer: "Sem mim nada podeis fazer" (Jo 15,5). Nota Santo Agostinho sobre essas palavras que Jesus Cristo não disse: "nada podeis cumprir", mas "nada podeis fazer". Com isso, quis Nosso Senhor dar-nos a entender que sem a graça nem mesmo podemos começar a fazer o bem: "Não somos capazes de por nós mesmos ter algum pensamento, mas toda a nossa força vem de Deus" (2 Cor 3,5). Se nem sequer podemos pensar no bem, como podemos, então, desejá-lo? O mesmo nos demonstram muitos outros textos das S. Escrituras: "Deus é quem opera tudo em todos" (1 Cor 12,6). "Farei que vós andeis nos meus preceitos e que guardeis as minhas ordens e as pratiqueis" (Ez 36,27). Por isso, como diz S. Leão Papa: "Nenhum bem faz o homem sem que Deus não lhe dê a sua graça para isso". E o Concílio de Trento diz: "Se alguém disser que, sem a prévia inspiração do Espírito Santo e sem o seu socorro, o homem pode crer, esperar, amar ou fazer penitência como deve, com o fim de obter a graça da justificação, seja anátema".


4. Modo de agir de Deus com os animais

O Autor da "Obra Imperfeita" diz, referindo-se aos brutos, que o Senhor a um concedeu a rapidez, a outros deu unhas, a outros cobriu de penas, para que, desse modo, pudesse conservar sua vida. O homem, porém, foi formado em tal estado que só Deus é toda a sua força. Deste modo o homem é inteiramente incapaz de, por si, efetuar a sua salvação, visto que Deus quis que tudo o que tem ou pode ter receba por meio de sua graça. 


5. As primeiras graças

Mas este auxílio da graça normalmente o Senhor concede só a quem ora, conforme a celébre sentença de Genadio: "Cremos não chegar ninguém à salvação sem que Deus o conceda. Ninguém, depois de convidado, obtém a salvação, sem que Deus o ajude. Só quem reza merece o auxílio de Deus".

Se é certo que, sem o socorro da graça, nada podemos, e se esse socorro é concedido por Deus unicamente aos que rezam, segue-se que a oração nos é absolutamente necessária para a salvação. Verdade é que há certas graças e que são concedidas sem a nossa cooperação, como, por exemplo, a vocação à fé, à penitência. No dizer de Santo Agostinho, Deus as concede mesmo a quem não as pede. Entretanto, quanto às outras graças, especialmente em relação à graça da perseverança, tem por certo o Santo Doutor que não são concedidas senão aos que pedem: "Deus dá algumas graças, como o começo da fé, mesmo aos que não pedem; outras, como a perseverança, reservou para os que pedem".

6. É por isso que os teólogos, como São Basílio, São João Crisóstomo, Clemente de Alexandria e outros, como o próprio Santo Agostinho, ensinam que a oração para os adultos é necessária, não somente por ser um mandamento de Deus, mas também por ser um meio necessário para a salvação. Isto quer dizer que, segundo a ordem comum da Providência, é impossível que um cristão se salve sem pedir as graças necessárias para a sua salvação. O mesmo ensina Santo Tomás: "Depois do batismo, a oração contínua é necessária ao homem para poder entrar no céu. Embora sejam perdoados os pecados pelo batismo, sempre ainda ficam os estímulos ao pecado, que nos combate interiormente, o mundo e os demônios que nos combatem externamente". A razão alegada pelo Doutor Angélico, e que nos deve convencer na necessidade da oração, é a seguinte: "Para nos salvar, devemos combater e vencer". "Aquele que combate nos jogos públicos não será coroado se não combater legitimamente" (2Tm 2,5). Sem o auxílio de Deus, não poderemos resistir a tantos e tais inimigos. Ora, este auxílio divino só se consegue pela oração. Logo, sem oração, não há salvação.


7. A oração é o caminho ordinário para se receber os dons de Deus.

Que a oração é o único meio para se receber as graças divinas, de um modo mais claro o confirma o mesmo santo Doutor, quando diz que todas as graças que o Senhor, desde toda a eternidade, determinou conceder-nos, não quer concedê-las a não ser por meio da oração. A mesma coisa ensina São Gregório: "Pela oração, merecem os homens receber o que Deus, desde a eternidade, determinou conceder-nos, não que concedê-las a não ser por meio da oração. A mesma coisa ensina São Gregório: "Pela oração, merecem os homens receber o que Deus, desde a eternidade, determinou conceder-lhes". "A oração é necessária, diz Santo Tomás, não para que Deus conheça as nossas necessidades, mas para que nós fiquemos conhecendo a necessidade que temos de recorrer a Deus, para receber oportunamente os socorros da salvação. Assim reconhecemos Deus como único Autor de todos os bens, a fim de que (são palavras do Santo) nós conheçamos que necessitamos recorrer ao auxílio divino e reconheçamos que Ele é Autor dos nossos bens". Assim como o Senhor quis que, para sermos providos do pão e do vinho, semeássemos a vinha, assim quis que recebêssemos as graças necessárias para nos salvar por meio da oração: "Pedi e dar-se-vos-á; buscai e achareis" (Mt 7,7).


8. Somos pobres. A oração é o alimento de nossa alma. 

Em resumo, outra coisa não somos senão pobres mendigos, que tanto temos quanto recebemos de Deus como esmola: "Eu, porém, sou pobre e mendigo" (Sl 40,18). O Senhor, diz Santo Agostinho, bem deseja e quer dispensar-nos as suas graças. Contudo não quer dispensá-las, senão a quem lhe pedir. Nosso Senhor no-lo assegura com as palavras: "Pedi e dar-se-vos-á". Logo, diz Santa Tereza, quem não pede não recebe. Assim como a umidade é necessária às plantas para não secarem, assim, diz São João Crisóstomo, é nos necessária a oração para nos salvarmos. Em outro lugar, diz o mesmo Santo, que assim como a alma dá a vida ao corpo, assim também a oração mantém a vida da alma. "Assim como o corpo não pode viver sem a alma, assim a alma sem a oração está morta e exala mau cheiro". Disse "exala mau cheiro", porque quem deixa de recomendar-se a Deus, logo começa a corromper-se. A oração é ainda o alimento da alma, porque assim como o corpo não se pode sustentar sem alimento, assim, sem a oração, diz Santo Agostinho, não se pode conservar a vida da alma. Como o corpo, pela comida, assim a alma do homem é conservada pela oração.

Todas essas comparações aduzidas pelos santos denotam a necessidade absoluta que todos temos de rezar para nos salvarmos. 


9. A oração é uma arma

A oração, além disso, é a mais poderosa arma para nos defendermos dos nossos inimigos. Quem não se serve dela está perdido. Nem duvida o Santo em afirmar que Adão caiu, porque não se recomenda a Deus na hora da tentação. "Adão pecou porque não rezou". O mesmo escreveu São Gelásio, falando dos anjos rebeldes: "Receberam em vão a graça divina... e porque não rezaram... caíram".

São Carlos Borromeu, em uma carta pastoral, adverte que, entre os meios que Jesus Cristo nos recomendou no Evangelho, deu o primeiro lugar à oração. Ele quis que nisso se distinguissem as igrejas católicas e sua Religião das outras seitas, querendo que de um modo especial elas se chamassem casas de oração. "Minha casa será chamada de casa de oração" (Mt 21,13). Conclui São Carlos Borromeu, na mesma carta, que a oração é o princípio, o progresso e o complemento de todas as virtudes. Por isso nas trevas, nas misérias e nos perigos em que nos achamos, não temos nenhum outro em quem fundar nossas esperanças, senão levantar nossos olhos a Deus e pela oração impetrar de sua misericórdia a nossa salvação. "Como não sabemos o que devemos fazer, dizia o rei Josafá, não nos resta outro meio do que levanrar os nossos olhos para vós" (2 Cr 20,12). E assim também fazia Davi, não encontrando outro meio para se livrar dos seus inimigos do que rogar continuamente ao Senhor para que o libertasse de suas ciladas: "Os meus olhos se elevam sempre ao Senhor; porquanto Ele tirará o laço de meus pés" (Sl 25,15). E assim não cessava de rezar o real profeta, dizendo: "Olhai para mim e tem piedade de mim, porque sou pobre e só". "Chamei a ti, Senhor, salva-me, para que guarde os teus mandamentos" (Sl 118,146). "Senhor, volvei para mim os vossos olhos, tende piedade de mim e salvai-me, porque sem Vós nada posso e fora de Vós não encontro quem possa ajudar-me". 


10. Os erros de Lutero e Jansênio

E, de fato, como poderíamos resistir à força dos nossos inimigos e observar os mandamentos de Deus, mormente depois do pecado dos nossos primeiros pais; pecado que nos enfraqueceu tanto, se não tivéssemos a oração, pela qual podemos impetrar do Senhor a luz e a força necessárias para os observar? Foi uma blasfêmia o que disse Lutero afirmando que, depois do pecado de Adão, é impossível ao homem a observância dos mandamentos de Deus.

E Jansênio disse, mais ainda, que alguns preceitos são impossíveis, até para os justos, em vista das forças que atualmente possuem.

Até aqui sua proposição podia ser interpretada em bom sentido. Mas, como justiça, foi ela condenada pela Igreja por causa do que se acrescentou depois, dizendo que lhes faltava a graça pela qual se tornava possível a observância dos mandamentos. É verdade, diz Santo Agostinho, que o homem, fraco como é, não pode observar certos mandamentos, com a sua força atual ou com a graça comum a todos; mas, por meio da oração, pode muito bem obter auxílio maior, do qual necessita para observá-los. Deus não manda coisas impossíveis. Entretanto, se mandar, exorta a fazer o que se pode e a pedir o que não se pode. É célebre este texto do Santo, que mais tarde foi adotado pelo Concílio de Trento e declarado dogma de fé. E imediatamente acrescenta o Santo Doutor: "Vejamos como o homem, em virtude do remédio, pode fazer o que não podia por causa da fraqueza". Quer dizer que, com a oração, obtemos o remédio para nossa fraqueza, porquanto, se pedirmos a Deus, conseguiremos força para fazer o que não podemos.


11. Deus não manda coisas impossíveis

Não podemos e não devemos acreditar, continua Santo Agostinho, que Deus, obrigando-nos a observar a lei, queira ordenar o impossível. Fazendo-nos Deus compreender que somos incapazes de observar todos os seus mandamentos, Ele nos admoesta a fazer as coisas fáceis com as graças que nos dá e a fazer as coisas difíceis com o auxílio maior, que podemos impetrar pela oração. "Por isso mesmo cremos, com firmeza, que Deus não pode mandar coisas impossíveis e somos advertidos do que devemos fazer nas coisas fáceis e do que devemos pedir nas difíceis". Por que, perguntará alguém, impõe-nos Deus coisas impossíveis às nossas forças? Justamente a fim de que procuremos, pela oração, o que não podemos com a graça comum. "Deus manda-nos algumas coisas superiores às nossas forças para que saibamos o que lhe devemos pedir". E em outro lugar: "A lei foi dada para que se procure a graça. A graça é dada para que se cumpra a lei". A lei não pode ser observada sem a graça, e Deus, para este fim, deu a lei, para que sempre suplicássemos a graça necessária, para observá-la. E, de novo, em outro lugar, diz ele: "A lei é boa se dela fizermos bom uso. Em que consiste, pois, o bom uso da lei?" Ele responde: "Consiste em conhecer pela lei a própria fraqueza e em procurar o auxílio divino para obter a saúde". Santo Agostinho diz que nós nos devemos servir da lei. - Mas para que fim? Para conhecermos por ela (o que sem ela seria impossível) a nossa incapacidade para observá-la, a fim de que com a oração alcancemos o auxílio divino que cura a nossa fraqueza.


12. Grande é a fraqueza do homem

São Bernardo escreve o mesmo dizendo: "Quem somos nós ou qual é a nossa força para resistirmos a tantas tentações? Certamente era isso o que Deus queria: que nós, vendo a nossa insuficiência e a falta de auxílio, recorrêssemos com toda a humildade à sua misericórdia". Deus sabe como a oração é útil para conservar a humildade e para exercer a confiança. Por isso, permite que nos assaltem os inimigos que, para nós e nossas forças, são invencíveis, para obtermos com a oração o auxílio para resistir-lhes. Note-se, especialmente, que ninguém pode resistir às tentações impuras da carne se não se recomenda a Deus no momento da tentação. Este inimigo é tão terrível que, privando-nos nos combates de quase toda a luz, nos faz esquecer de meditações e bons propósitos, desprezar a verdade da fé e perder o temor dos castigos divinos. Esta tentação une-se à nossa natureza decaída e nos arrasta com toda a força dos prazeres sensuais. Quem não recorre a Deus está perdido. A única defesa contra a tentação, diz São Gregório de Nissa, é a oração: "A oração é a guarda da pureza". O mesmo dizia, antes dele, Salomão: "Sabendo eu que de outra maneira não podia ser inocente, sem que Deus me concedesse... dirigi-me ao Senhor e pedi-lhe" (Sb 8,21). A castidade é uma virtude que não podemos praticar se Deus no-lo não concede aos que pedem. Quem pedir, certamente, será atendido.


13. São Tomás, contra Jansênio

Diz o seguinte: "Não devemos dizer ser-nos impossível a castidade ou outro mandamento qualquer. Muito embora não possamos observá-lo por nós mesmos, contudo, nós o podemos mediante o auxílio divino. O que nos é possível com auxílio divino não se pode dizer simplesmente que é impossível". Não se diga ser uma injustiça mandar a um coxo que ande direito. Não, diz Santo Agostinho, não é injustiça, dando-lhe os meios para se curar. Se depois continuar a coxear, a culpa é dele. Muito a propósito se manda que o homem ande direito para que, percebendo que não pode, procure o remédio que cure a claudicação do pecado. 


14. Saber viver é saber rezar

Diz o mesmo Santo Doutor que não saberá viver bem quem não souber rezar: "Bem sabe viver o que sabe rezar bem". São Francisco de Assis dizia que, sem a oração, nunca pode uma alma produzir bons frutos. Não têm, pois, desculpa os pecadores que alegam não ter forças para resistir às tentações. "Se vos faltam as forças, adverte São Tiago, por que então não as pedis?" "Não tendes porque não pedis" (Tg 4,2). Não há dúvida, somos muito fracos para resistir aos assaltos de nossos inimigos. Mas também é certo que Deus é fiel e não permite que sejamos tentados acima de nossas forças, como diz o Apóstolo: "Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças. Fará, pelo contrário, que tireis proveito da tentação para poderdes suportá-la" (1Cor 10,13). Explicando estas palavras, diz Primásio: "Com o auxílio da graça, Ele vos dará forças para vencerdes a tentação". Somos fracos, mas Deus é forte. Se implorarmos o seu auxílio, Ele nos comunicará a sua força e assim poderemos tudo e poderemos dizer com o mesmo Apóstolo São Paulo: "Posso tudo naquele que me conforta" (Fl 4,13), "Não há, pois, desculpa, como diz São João Crisóstomo, para aquele que sucumbe por deixar de orar. Porque, se tivesse orado, não teria sido surpreendido por seus inimigos. Não poderá ser desculpado aquele que não quis vencer o inimigo, abandonando a oração". 


15. É necessária a intercessão dos santos para se obter a graça divina?

Levanta-se aqui a questão se a intercessão dos santos é necessária para se obter a graça divina. Que seja lícito e útil invocar os santos como intercessores, para eles suplicarem, pelos merecimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo, o que nós, por nossos deméritos, não somos dignos de receber, é doutrina da Igreja, como declarou o Concílio de Trento: "É bom e útil invocar humildemente os santos e recorrer à sua proteção e intercessão, para impetrar benefícios de Deus por seu divino Filho, Jesus Cristo".

O ímpio Calvino reprova essa invocação dos santos, mas sem razão, pois é lícito e proveitoso invocar em nosso auxílio os santos vivos e pedir-lhes que nos ajudem com suas orações. Assim fazia o profeta Baruc, dizendo: "E rogai por nós ao Senhor, nosso Deus" (Br 1,13). E São Paulo: "Irmãos, rogai por nós" (1Ts 5,25). Deus mesmo quis que os amigos de Jó se recomendassem às orações de seu fiel servo, para lhes ser misericordioso em vista dos merecimentos dele... "Ide ao meu servo Jó... e Jó, o meu servo, orará por vós, e eu volverei misericordioso o meu olhar para ele" (Jó 42,8). Se é lícito recomendar-se aos vivos, como então não será lícito invocar os santos, que, no céu, mais de perto gozam de Deus? Isto não é derrogar a honra que se deve a Deus, mas duplicá-la, assim como na terra podemos honrar e venerar o rei em sua pessoa e também na pessoa dos seus servos. É por isso que Santo Tomás diz ser útil invocar e recorrer a muitos santos, "porquanto pela oração de muitos, às vezes se alcança o que pela oração de um só não se obteria". Poderá alguém objetar e dizer: de que serve recorrer aos santos para que rezem por nós, quando eles já pedem por todos quantos são dignos disso? Responde o mesmo Santo Doutor que alguns são seriam dignos de que os santos rezassem por eles, mas tornam-se dignos recorrendo com devoção aos santos.


16. A oração e as almas do purgatório

Pergunta-se: é útil recomendar-se às orações das almas do purgatório? Alguns dizem que as almas do purgatório não podem rezar por nós. São levados pela autoridade de Santo Tomás que afirma estarem aquelas almas em estado de expiação e, por isso, inferiores a nós. Não se acham em condição de rezar por nós, mas, pelo contrário, necessitam de nossas orações.

Mas muitos doutores, como Belarmino, Sílvio, Cardeal Gotti e outros, afirmam, com muita probabilidade, que se deve crer piamente que Deus manifesta-lhes nossas orações, a fim de que aquelas santas almas rezem por nós, como nós rezamos por elas. Assim  se estabelecerá entre nós e elas este belíssimo intercâmbio de caridade. Não obsta, como dizem Sílvio e Gotti, o que diz o Angélico, isto é, que as almas padecentes não se acham em estado de rezar. Uma coisa é não estar em estado de rezar e outra é não poder rezar. É verdade que aquelas almas santas não se acham em estado de orar. Como diz Santo Tomás, estando no lugar de expiação, elas são inferiores a nós e por isso necessitam das nossas orações. Contudo, em tal estado, bem podem rezar, porque estão na amizade de Deus. Se um pai, apesar de seu grande amor a seu filho, conserva-o encarcerado por alguma falta cometida, o filho, em todo o caso, não está em condições de pedir alguma coisa para si mesmo. Entretanto, por que não poderá pedir pelos outros? Por que não poderá esperar ser atendido no que pede, conhecendo o afeto que lhe tem o pai? Sendo assim, as almas do purgatório, muito mais amadas de Deus e confirmadas em graça, podem rezar por nós. Mas não é costume da Igreja invocá-las e implorar sua intercessão, porque, segundo a providência ordinária, elas não têm conhecimento de nossas súplicas. Todavia, acredita-se piamente, como dissemos, que o Senhor lhes faz conhecer as nossas preces e, então, cheias de caridade não deixam de pedir por nós. Santa Catarina de Bolonha, quando desejava alcançar alguma graça, recorria às almas do purgatório e era imediatamente atendida. Até dizia que muitas graças, que não havia obtido pela intercessão dos santos, conseguia invocando as almas do purgatório.


17. A obrigação que temos de rezar pelas almas do purgatório

Seja-me permitido fazer aqui uma digestão em favor das almas do purgatório. Se quisermos o socorro de suas orações, é justo que cuidemos também de socorrê-las com nossas orações e boas obras. Disse que é justo, mas deve-se dizer ainda que é um dever cristão. Pois manda a caridade que socorramos o próximo em suas necessidades, mormente quando podemos fazê-lo sem incômodo de nossa parte. Ora, é certo que, entre aqueles que caem debaixo da palavra "próximo", devem-se compreender as benditas almas do purgatório. Elas, apesar de não estarem mais nesta vida, nem por isso deixam de pertencer à comunhão dos santos. "As almas dos fiéis defuntos, diz Santo Agostinho, não estão separadas da Igreja."

E mais claramente declara Santo Tomás a esse respeito, dizendo que "a caridade é o vínculo que une os membros da Igreja entre si e não se limita tão somente aos vivos, mas também aos mortos, que partiram deste mundo na graça de Deus". Portanto, devemos socorrer, quanto possível, aquelas santas almas como a nosso próximo e, sendo a sua necessidade maior, maior também consequentemente deve ser a nossa obrigação de socorrê-las.


18. Os sofrimentos das almas do purgatório

Em que necessidade se acham estas santas prisioneiras! Certo é que seu sofrimento é imenso. "O fogo que as tortura, diz Santo Agostinho, é mais grave do que qualquer sofrimento que possa atormentar o homem nesta vida". O mesmo diz Santo Tomás, acrescentando ser aquele fogo semelhante ao do inferno: "pelo mesmo fogo é atormentado o condenado, e purificado o escolhido". Isto quanto ao sofrimento dos sentidos. Mas muito maior é o sofrimento que causa a estas santas esposas a privação da visão de Deus. 

Aquelas almas, não só por natureza, mas ainda pelo amor sobrenatural, em que ardem para com Deus, com tal ímpeto são impelidas para se unirem ao sumo Bem que, vendo-se impedidas por motivo de suas culpas, sofrem dor tão acerba que, se lhes fosse possível a morte, morreriam a cada momento. Pois, segundo diz São João Crisóstomo, esta privação da visão de Deus as atormenta muito mais do que o sofrimento dos sentidos: "Mil fogos do inferno juntos não causariam tanta dor como esta do dano!" Por isso aquelas santas almas prefeririam sofrer qualquer outro castigo a serem destituídas, um só momento, da suspirada união com Deus. Diz, por isso, o Doutor Angélico que "o sofrimento do purgatório excede todas as dores que podemos sofrer nesta vida". Refere Dionísio Cartusiano que certo defunto, ressuscitado por intercessão de São Jerônimo, disse a São Cirilo de Jerusalém que todos os tormentos desta terra são gozos e delícias em comparação com o menor sofrimento do purgatório: "Todos os tormentos desta vida, se comparados à menor pena do purgatório, seriam verdadeiros gozos". E acrescenta que, se alguém tivesse experimentado aqueles sofrimentos, mais prontamente quereria sofrer todas as dores que sofreram ou sofrerão os homens neste mundo até o dia do juízo do que sofrer por um só dia o menor sofrimento do purgatório. Por isso escreveu São Cirilo que aqueles sofrimentos, quanto à aspereza, são os mesmos do inferno, apenas diferem porque são eternos. 


19. As almas do purgatório sofrem horrivelmente e não podem socorrer-se a si mesmas

São, pois, muito grandes as penas daquelas almas e, por outro lado elas não podem ajudar-se, segundo Jó, "estão presas e ligadas pelos laços da pobreza" (Jó 36,8). Já estão destinadas ao Reino aquelas santas rainhas, mas dele não podem tomar posse, enquanto não chegar o fim de sua expiação. Portanto, não podem ajudar a si próprias (ao menos suficientemente, se quisermos crer nos teólogos que admitem que aquelas almas, com suas orações, também possam impetrar para si algum alívio) para livrar-se daquelas prisões, em que estão detidas, enquanto não tiverem satisfeito à justiça divina em todo o seu rigor. Foi o que disse, falando do purgatório, um monge cisterciense, aparecendo ao sacristão de seu convento: "Ajudai-me, pediu ele, com vossas orações, porque por mim nada posso obter!" Isto concorda com o que diz S. Boaventura: "A pobreza impede o pagamento das dívidas". Quer dizer que as almas do purgatório são tão pobres que não podem satisfazer por si próprias à justiça divina.


20. A obrigação que temos de rezar pelas almas do purgatório

É de certo, entretanto, e até de fé que nós, com os nossos sufrágios e, principalmente, com as orações recomendadas pelas Igreja, bem podemos auxiliar aquelas santas almas. Não sei como poderá isentar-se de culpa quem deixa de oferecer-lhes qualquer auxílio, ao menos algumas orações. 


21. Motivos que temos para rezar pelas almas do purgatório

Se não nos mover a obrigação que temos, mova-nos, ao menos, a alegria que causamos a Nosso Senhor Jesus Cristo quando nos aplicamos em libertar aquelas suas esposas diletas, para se unirem com Ele no paraíso. Movam-nos, enfim, os grandes merecimentos que podemos obter praticando este grande ato de caridade para com aquelas santas almas. Elas são gratíssimas e bem conhecem o grande benefício que lhe fazemos, aliviando-as daquelas penas e obtendo, por meio das nossas orações, que mais depressa possam entrar na glória. Lá chegando, não deixarão de rezar por nós. 

Se o Senhor promete ser misericordioso para com os que praticam a misericórdia: "Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia" (Mt 5,7), com muita razão pode esperar a salvação quem procura socorrer as almas do purgatório, tão aflitas e tão caras a Deus, Jônatas, depois de ter salvado os hebreus pela vitória sobre os seus inimigos, foi condenado à morte por seu pai, Saul, por haver provado o mel contra a sua ordem. Mas o povo apresentou-se ao rei e disse: "Como há de morrer Jônatas, o salvador de Israel?" (1Sm 14,45). Ora, assim devemos também esperar que, se algum de nós obtiver, com suas orações, a salvação de uma alma do purgatório e a sua entrada no céu, essa alma dirá a Deus: "Senhor, não permitais que se perca quem me livrou das chamas do purgatório". E, se Saul concedeu a Jônatas a vida, a pedido do povo, Deus não negará a salvação àquele por quem intercede uma alma do purgatório. 

Além disso, diz Santo Agostinho, quem nesta vida mais socorrer as almas do purgatório, Deus fará com que seja também socorrido por outro, quando estiver lá no meio daquelas chamas.


22. A Santa Missa pelas almas do purgatório

Um grande sufrágio pelas almas do purgatório é participar da Santa Missa e nela recomendá-las a Deus, pelos merecimentos da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, dizendo: Eterno Pai, eu vos ofereço este sacrifício do Corpo e Sangue de Jesus Cristo com todas as dores que sofreu em sua vida e morte e, pelos merecimentos de sua Paixão, recomendo-vos as almas do purgatório e especialmente as de... É ato também de muita caridade recomendar, ao mesmo tempo, as almas de todos os agonizantes.


23. A invocação dos santos

Tudo o que dissemos sobre as almas do purgatório, se podem ou não rezar por nós, se é conveniente ou não nos recomendar as suas orações, vale também a respeito dos santos. Quantos a eles, é certo que é utilíssimo recorrer à sua intercessão, falando dos santos já canonizados, que gozam da visão de Deus. Supor que neste ponto a Igreja é falível seria incidir em culpa ou em heresia, como dizem São Boaventura, Belarmino e outros, ou ao menos está próximo de heresia, segundo Suarez, Azor, Gotti e outros. Porque o Sumo Pontífice, como diz Santo Tomás, ao canonizar os santos, é de modo particular guiado pela inspiração infalível do Espírito Santo.


24. Somos obrigados a invocar os santos?

Volto à questão, apresentada no item anterior, sobre se há uma obrigação de recorrer à intercessão dos santos. Não é minha intenção resolver esta questão: contudo, não posso deixar de apresentar  uma doutrina do Angélico. Ele, antes de tudo, em vários lugares supracitados e, especialmente no livro das Sentenças, tem por certo que cada um é obrigado a orar, porque de outro modo não se pode (como diz ele) receber de Deus as graças necessárias à salvação, a não ser pela oração: "Cada um é obrigado a rezar, porquanto deve procurar os bens espirituais que só por Deus são concedidos e que só podemos alcançá-los por meio da oração".

Em outro lugar do mesmo livro, o mesmo Santo propõe a dúvida: se devemos invocar os santos, a fim de que peçam por nós. É esta a resposta do Santo, que vamos dar em sua íntegra, para melhor compreensão: "A ordem estabelecida por Deus, segundo Dionísio, é que todas as coisas sejam referidas a Deus, por meio das últimas mediações. Ora, como os santos do céu estão próximos de Deus, a ordem da lei divina requer que nós, enquanto vivermos neste mundo e estivermos longe do Senhor, sejamos conduzidos a Ele pelos santos que são os medianeiros. E isso acontece quando Deus derrama, por eles, sobre nós, os efeitos de sua Bondade. Nossa volta para Deus deve corresponder ao curso da distribuição de suas graças. Assim como os benefícios de Deus chegam até nós pela intercessão dos santos, do mesmo modo devemos nós chegar até Deus, a fim de recebermos novamente os seus auxílios, por intermédio dos santos. Esta é a razão por que temos os santos como nossos intercessores e ao mesmo tempo como nossos medianeiros diante de Deus, pedindo-lhes que roguem por nós".

Notem as palavras: "Isto requer a ordem da Lei divina, e notem igualmente estas: assim como mediante os sufrágios dos santos nos vem a graça de Deus, pelo mesmo caminho devemos nós outros voltar para Deus, a fim de recebermos novamente sua graça por mediação deles. Assim, segundo Santo Tomás, a ordem da lei divina requer que nós, mortais, nos salvemos por meio dos santos, recebendo, por sua intercessão, os auxílios necessários à nossa salvação. Objeta, então o Angélico, dizendo ser supérfluo recorrer aos santos, quando Deus é infinitamente mais misericordioso e inclinado a atender-nos. Responde ele mesmo que o Senhor dispôs assim, não por defeito de seu poder, mas para conservar a ordem reta e universalmente estabelecida de operar por meio de causas segundas: "Não é, diz o santo, por defeito de sua misericórdia, senão para que seja mantida a ordem supraexplicada".


25. A ordem estabelecida por Deus na distribuição das graças

Segundo a afirmação de Santo Tomás (escreve o continuador de Tournely com Sílvio), é verdade que devemos invocar só a Deus como o Autor das graças. Entretanto, somos obrigados também à intercessão dos santos, para observar a ordem que Deus estabeleceu sobre a nossa salvação, isto é, que os inferiores se salvem, implorando o auxílio dos superiores. "Segundo a lei natural, todos são obrigados a observar a ordem que Deus estabeleceu; ora, Deus estabeleceu que os inferiores alcancem a salvação implorando o auxílio dos superiores".


26. A intercessão de Nossa Senhora

E, assim é, falando dos santos, quanto mais não devemos recorrer à intercessão da divina mãe, cujas súplicas, junto de Deus, valem mais do que as de todos os santos do paraíso? Diz, Santo Tomás que os santos, na proporção dos merecimentos pelos quais adquiriram as graças, podem salvar muitos outros, mas Nosso Senhor Jesus Cristo e também sua Mãe mereceram tantas graças, que podem salvar todos os homens: "Grande coisa é, para cada santo, ter graça suficiente para salvação de muitos; e, se um tivesse tanto quanto fosse necessário para salvar o mundo inteiro, seria o máximo; e isto se encontra em Nosso Senhor Jesus Cristo e em Nossa Senhora". 

E São Bernardo, falando de Maria, escreve: "Por vós temos acesso ao Filho, por vós, que achaste a graça, Mãe da salvação, para que vós nos receba Aquele que por vós nos foi dado". Queria dizer com isso que, assim como não podemos chegar ao Pai senão pelo Filho, que é o Medianeiro da justiça, assim não podemos chegar ao Filho senão por Maria, que é a Medianeira da graça e nos obtém por sua intercessão os bens que Jesus Cristo para nós mereceu. No mesmo sentido, fala o Santo em outro lugar: "Maria recebeu de Deus uma dupla plenitude de graça. A primeira foi o Verbo eterno feito homem em suas puríssimas entranhas. A segunda é a plenitude das graças que, por intermédio desta divina Mãe, recebemos de Deus". Por isso acrescenta: "Deus depositou em Maria a plenitude de todo o bem. Portanto, se temos alguma esperança, alguma graça, alguma salvação, saibamos que nos vem por Aquela que subiu inundada de delícias. Ela é um jardim de delícias para, por todos os lados, trescalar perfumes, isto é, os dons de suas divinas graças". Por isso, tudo o que temos de benefícios de Deus, nós o recebemos pela intercessão de Maria. E por que é assim? Responde o mesmo São Bernardo: "Porque Deus assim o quer. Tal é a vontade d'Aquele que dipôs que tudo tivéssemos por Maria".

Mas a razão principal se deduz do que diz Santo Agostinho: "Maria é chamada nossa Mãe porque cooperou com sua caridade para que, nós, fiéis, nascêssemos para a vida da graça, como membros da nossa cabeça, Jesus Cristo. Ela é, em verdade, a mãe dos membros de Jesus, que somos nós, porque pelo amor concorreu para que os fiéis, que são membros da Cabeça de Cristo, renascessem na Igreja". Por isso, assim como Maria cooperou com sua caridade para o nascimento espiritual dos fiéis, assim quer Deus que ela coopere, por meio da sua intercessão, para que possam conseguir a vida da graça, neste mundo, e a vida da glória, no outro. E por isso a Igreja invoca e manda saudá-la com palavras tão claras e preciosas: Vida, doçura e esperança nossa, salve!


27. Maria medianeira de todas as graças 

Neste mesmo sentido, exorta-nos São Bernardo a recorrer sempre a esta divina Mãe, porquanto todas as suas súplicas são atendidas por seu divino Filho: "Recorrer a Maria! Sem a menor dúvida, eu digo, certamente o Filho atenderá sua Mãe". E ajunta: "Filhinhos, esta é a escada dos pecadores, esta é a minha maior confiança, esta é toda a razão da minha esperança". O santo dá a Maria o nome de escada, porque assim como na escada não se sobe ao degrau sem antes passar pelo segundo, não se atinge o segundo sem se passar pelo primeiro, assim também não se chega a Deus senão por meio de Maria. O mesmo São Bernardo chama Maria de sua máxima confiança e toda a razão de sua esperança, porque Deus, como ele supõe, quer que passem pelas mãos de Maria todas as graças, que nos dispensa. E conclui, finalmente, dizendo que todas as graças que desejamos temos de pedi-la por meio de Maria, porquanto ela obtém tudo o que deseja e os seus rogos não podem ser repelidos: "Busquemos a graça, mas busquemos por intermédio de Maria! Por ela acha-se o que se busca e não se pode ser desatendido". 

Com os mesmos sentimentos fala Santo Efrém: "Fora de vós, não temos outra confiança, ó Virgem puríssima". Santo Ildefonso: "Todos os benefícios que a sua majestade decretou fazer aos homens, decretou confiá-los às vossas mãos. A vós, pois, estão confiados os tesouros e as riquezas da graça". São Germano: "Se vós nos abandonardes, que será de nós, ó vida dos cristãos?" São Pedro Damião: "Em vossas mãos estão todos os tesouros da misericórdia de Deus". Santo Antonino: "Quem pede, sem Maria, tenta voar sem asas". São Bernardino de Sena diz: "Vós sois a dispensadora de todas as graças. Nossa salvação está em vossas mãos". Em outro lugar não só se diz que por Maria se transmitem a nós todas as graças, mas também afirma que a Santíssima Virgem, desde que foi feita Mãe de Deus, adquiriu certa jurisdição, sobre todas as graças que nos são dispensadas: "Pela Santíssima Virgem as graças vivificantes se transmitem de Cristo, como da cabeça, a seu Corpo místico. Desde o momento em que a Virgem Mãe concebeu o Verbo Divino, ela obteve, por assim dizer, certa jurisdição sobre toda a processão temporal do Espírito Santo, de sorte que nenhuma criatura recebeu graça alguma senão pela distribuição desta piedosa mãe". E conclui: "Por isso, pelas suas mãos, dá a quem quer todos os dons, graças e virtudes". O mesmo escreveu São Boaventura: "Já que toda a natureza divina esteve nas entranhas da Santíssima Virgem, não duvido dizer que em toda a distribuição de graças tem certa jurisdição esta Virgem, de cujas entranhas, como de um oceano da divindade, emanam os rios de todas as graças".

Por isso, pois, muitos teólogos, fundados na autoridade desses santos, com piedoso zelo e muita razão, defenderam a tese de que nenhuma graça nos é dispensada, senão pela intercessão de Maria. Assim Vega, Mendonzza, Paciucchelli, Segneri, Poiré, Crasset e muitos outros autores, como o douto Padre Natal Alexandre, que escreveu: "Deus quer que esperemos todos os bens Dele pela intercessão poderosíssima de Maria, quando a invocamos como se deve". Em confirmação alega o texto de São Bernardo anteriormente referido: "Tal é a vontade de Deus, que quis que tenhamos tudo por Maria". E sobre as palavras: "Eis a tua Mãe", que Jesus disse na Cruz a São João, o Padre Contenson diz a mesma coisa expressando-se assim: "É como se dissesse: Ninguém terá parte no meu sangue, senão pela intercessão de minha Mãe, Minhas chagas são fontes de graças, mas estas correntes de graças são levadas unicamente pelo canal que é Maria. Oh, João, meu discípulo, serás tanto amado por mim, quanto amares a ela".

Além disso, é certo que se nos tornamos agradáveis a Deus, invocando os santos, tanto mais lhe seremos agradáveis se invocarmos a intercessão de Maria, para que ela supra com seus merecimentos a nossa indignidade, segundo o que diz Santo Anselmo: "Que a dignidade do intercessor supra a nossa indignidade". Por isso, invocar a Santíssima Virgem não é desconfiar da misericórdia divina, mas temer a própria indignidade. Falando da dignidade de Maria, Santo Tomás a qualifica de quase infinita: "Por ser Mãe de Deus, tem uma dignidade quase infinita". Portanto, com toda a razão se diz que as orações de Maria são mais poderosas diante de Deus do que as de todo paraíso.


28. Quem reza se salva. Quem não reza certamente se condena

Terminemos este primeiro ponto, concluindo de tudo o que dissemos que quem reza certamente se salva, e quem não reza certamente será condenado. Todos os bem-aventurados, exceto as crianças, salvaram-se pela oração. Todos os condenados se perderam, porque não rezaram. Se tivessem rezado, não se teriam perdido. E este é e será o maior desespero no inferno: o poder ter alcançado a salvação com facilidade, pedindo a Deus as graças necessárias. E, agora, esses miseráveis não têm mais tempo de rezar.


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A oração - Santo Afonso Mª de Ligório. Ed. Santuário, 1ª edição1987, 31ª impressão.








 

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Nossa Senhora de Guadalupe

 México

Festa 12 de dezembro



Dez anos e quatro meses depois da conquista do México pelos espanhóis, a Ss. Virgem Maria quis manifestar sua predileção pelos naturais deste riquíssimo e formoso país.

Na alvorada do sábado, 9 de dezembro de 1531, um humilde e ingênuo índio chamado Juan Diego, de uns 48 anos, ia ao seu povoado à igreja de Santiago Tlaltelolco, para assistir à missa. Ao passar por Tepeyac, ouviu um canto doce e harmonioso, que lhe pareceu como que de multidão de canoras avezinhas, e, levantando os olhos para o cume do morro, de onde lhe parecia que vinham as vozes, viu uma nuvem branca e resplandecente, ao redor da qual se via formoso arco-íris de vivíssimas cores. 





O índio quedou absorto em suave arrebatamento, sentindo no fundo de sua alma um júbilo inexplicável.





Estando nessa espécie de êxtase, ouviu uma doce e delicada voz de mulher, a qual, saindo dos esplendores da nuvem, o chamava pelo seu nome de Juan e pedia que se aproximasse. Não foi preciso repetir o convite, pois o afortunado índio subiu a toda a pressa a encosta do outeiro, e viu então, no meio daquele mar de luz, uma senhora formosíssima, cujas vestes, afirmou Juan Diego, brilhavam tanto, que, ao ferir, com os seus esplendores, os rochedos da montanha, transformavam-nos em transparentes pérolas; falando em língua mexicana, com o semblante afável lhe disse a visão: "Meu filho, a quem amo ternamente, como a um filho pequenino e dedicado, aonde vais?"

"Vou, nobre Senhora minha, à cidade, ao bairro de Tlaltelolco, ouvir a santa missa, que nos celebra o ministro de Deus e súdito seu."

"Fica sabendo, filho muito querido", replicou a Ss. Virgem, "que eu sou a sempre Virgem Maria, Mãe do verdadeiro Deus, e é meu desejo que me erijam um templo neste lugar, de onde, como Mãe piedosa tua e de teus semelhantes, mostrarei minha clemência amorosa e a compaixão que tenho dos naturais e daqueles que me amam e me procuram e ouvirei seus rogos e súplicas, para dar-lhes consolo e alívio; e, para que se realize a minha vonade, hás de ir à cidade (do México), dirigindo-te ao palácio do Bispo que ali reside, ao qual dirás que eu te envio e que é vontade minha que me edifique um templo neste lugar; referirás quanto viste e ouviste: e eu te agradecerei o que por mim fizeres a este respeito, e te darei prestígio e te exaltarei."

Prostando-se o índio aos pés da Ss. Virgem, respondeu: "Já vou, nobilíssima Senhora minha, executar as tuas ordens, como humilde servo teu".

Foi esta a primeira aparição.

Sem perda de tempo, continuou o índio o seu caminho, dirigindo-se ao palácio de D. Juan de Zumárraga, primeiro bispo do México.

Chegando à presença de S. Exa., depois de esperar pacientemente durante muito tempo, referiu, ajoelhado, tudo que havia visto e ouvido. O prudente prelado, escutou com admiração e benevolência a narração do índio; mas, temendo que fosse imaginação sua, ou sonho, ou ilusão do demônio, despediu-o dizendo-lhe  que voltasse dentro de alguns dias, pois queria deliberar com calma sobre tão grande e delicado assunto.

O índio saiu do palácio do bispo muito desconsolado e triste, tanto por ter percebido que não lhe tinham dado inteiro crédito, como por não ter surtido efeito a vontade de Maria Santíssima, de quem era mensageiro.

No mesmo dia, depois do pôr do sol, voltou Juan Diego a Tolpetlac, povoado onde residia. 

Ao chegar a Tepeyac, encontrou a Virgem Maria (2ª aparição), que o esperava no mesmo lugar em que lhe aparecera de manhã.

Quando Juan Diego a viu, prostou-se a seus pés e lhe disse: "Minha muito querida Rainha e altíssima Senhora, fiz o que me mandaste, e ainda que não pudesse entrar e falar com o Sr. Bispo senão depois de muito tempo, comuniquei-lhe a tua mensagem, conforme me ordenaste; ouviu-me afavelmente e com atenção; mas, pelo seu modo, e pelas perguntas que me fez, entendi que não me havia dado crédito, por que me disse que voltasse outra vez, para S. Revma, informar-se mais minuciosamente sobre o negócio a que eu ia, e esquadrinhá-lo mais a fundo. Presume que o templo que pedes se te levante é ficção ou fantasia minha, e não vontade tua; e portanto te peço que encarregues disso uma pessoa nobre e de importância, digna de respeito, e em quem se possa acreditar; porque bem sabes, minha senhora, que eu sou um pobre plebeu, e que não é para mim este negócio a que me envias; perdoa, minha Rainha, o meu atrevimento, se me afastei do respeito devido à tua grandeza; que eu não tenha merecido a tua indignação, nem te haja desagradado a minha resposta."

A Ss. Virgem ouviu o índio benegnamente, e, depois de manifestar-lhe que queria valer-se dele para este encargo, ordenou-lhe que voltasse a visitar o Bispo e lhe dissesse que era a Mãe de Deus que lhe pedia o templo.

Juan Diego, conquanto receoso de não ser  mais bem sucedido do que na primeira entrevista, prometeu cumprir a vontade da Senhora, e que traria a resposta ao cair da tarde do dia seguinte. 

No dia 10 de dezembro, domingo o índio apresentou-se novamente no palácio episcopal, e, depois de esperar bastante, conseguiu falar com o prelado, que o ouviu com muita atenção e convenceu-se de sua sinceridade; mas, para não errar no assunto tão delicado, disse a Juan que pedisse, à Senhora que o enviara, um sinal pelo qual ele pudesse ter certeza de que era a Mãe de Deus que desejava se lhe erigisse um templo.

O índio concordou de boa mente, o que lhe causou impressão; contudo, para evitar até a sombra da ilusão ou engano, chamou dois de seus familiares de inteira confiança e ordenou-lhes que fossem atrás do índio, e, sem que ele suspeitasse que o seguiam, e sem perdê-lo de vista, fossem até ao lugar em que ele afirmava ter visto a Ss. Virgem Maria, que vissem bem com quem falava, e depois lhe dessem conta do que tinham visto e ouvido.

Fez-se segundo a ordem do Sr. Bispo: despedido o índio, foram-no seguindo os dois homens a certa distância, até ao rio por onde se passa antes de chegar ao outeiro de Tepeyac, onde Juan Diego desapareceu de sua vista, sem que pudessem encontrá-lo novamente, apesar da diligência com que ambos o procuravam.

Despeitados, voltaram para o palácio e informaram o prelado do que tinha acontecido, pedindo-lhe que, em vez de dar-lhe crédito, o castigasse, pois era sem dúvida um mentiroso ou feiticeiro.

Entretanto Juan Diego se encontrou com a Ss. Virgem (3ª aparição)  no cimo do outeiro, e comunicou-lhe o que pedira o Sr. Bispo.


A Ss. Virgem, agradecendo a sua diligência, recomendou-lhe que voltasse no dia seguinte aquele lugar, que Ela lhe daria o sinal desejado pelo prelado.

Voltando Juan Diego para casa, encontrou gravemente enfermo seu tio, Juan Bernardino, com quem vivia e de quem gostava como se fosse seu pai, pelo que não pode, no dia seguinte, 11, comparecer à entrevista que lhe marcara a Senhora, pois precisava ir buscar o médico e remédios para o doente.

Na terça-feira, 12, saiu, ao romper do dia, para Tlaltelolco, com a intenção de chamar um sacerdote franciscano que administrasse os últimos sacramentos a seu tio, cujo estado se agravara muito.

Ao chegar ao lugar por onde devia subir para o outeiro em que lhe aparecia Nossa Senhora, lembrou-se de que não ia obedecer à sua ordem; por isso, temendo que o repreendesse, tomou outra vereda pela falda oriental, crendo candidamente que Maria Santíssima não o veria e, portanto, não poderia detê-lo.

Mas eis que, ao passar pela paragem onde brota a fonte aluminosa denominada o "Pocinho da Virgem" (hoje há neste lugar uma linda capela, em cujo recinto está "el Pocito"), saiu-lhe ao encontro a Mãe de Deus, circundada de uma nuvem e radiante de claridade, e perguntou-lhe: "Aonde vais, meu filho, e por que tomaste este caminho?"

O índio envergonhado, caiu de joelhos e respondeu: Minha, muito amada Senhora, Deus te guarde! Como amanheceste? Estás com saúde?... Não te agaste com o que te vou dizer: está enfermo um servo teu, meu tio, e eu vou depressa à igreja de Tlaltelolco, para trazer um sacerdote para confessá-lo e ungi-lo, e, depois de feita esta diligência, voltarei a este lugar, para obedecer à tua ordem. Perdoa-me, peço-te Senhora minha, e tem um pouco de paciência, que amanhã voltarei sem falta".

Tendo ouvido com afabilidade a desculpa do índio, Maria lhe falou nestes termos: "Ouve, meu filho, o que vou dizer-te: não te aflija coisa alguma, nem temas enfermidade nem outro acidente penoso. Não estou aqui eu, que sou tua Mãe? Não estás debaixo da minha proteção e amparo? Não sou eu vida e saúde? Não estás em meu regaço e não andas por minha conta? Tens necessidade de outra coisa?... Não tenhas cuidado algum com a doença de teu tio, que não morrerá desta vez, e tem certeza de que já está curado."


Juan Diego, consoladíssimo com estas suaves palavras, ofereceu-se então para levar já, ao Sr. Bispo, o sinal que Maria lhe desse.

A celestial Senhora ordenou-lhe que subisse ao cume do outeiro e colhesse todas as rosas que lá houvessem recolhendo-as em sua capa, e depois Ela lhe diria o que devia fazer. 

Obedeceu o índio sem réplica, apesar de saber que não havia flores naquele lugar, que era um amontoado de rochas agrestes, e no entanto, encontrou, admiradíssimo, grande quantidade de rosas frescas, odoríficas, aljofradas, e, pondo a capa como a usam os índios, colheu quantas podia carregar dentro dela, apresentando-se outra vez à Virgem Santíssima.

Maria tomou em suas benditas mãos as rosas, acomodou-as na capa de Juan e lhe disse: "Este é o sinal que hás-de levar ao Bispo, e lhe dirás que, pelo dom destas rosas, faça o que te ordeno. E tem cuidado, filho, com o que te digo, e fica sabendo que tenho confiança em ti. Não mostres a pessoa alguma, no caminho, o que levas, e não abras tua capa senão na presença do Bispo, e dize-lhe o que te mandei fazer agora; e com isto se animará a pôr mãos à construção do meu templo".


Com estas amorosas palavras o despediu a Soberana Virgem.

O índio ficou muito alegre com o sinal, porque se convenceu de que agora teria feliz êxito a embaixada, e, levando com grande cuidado as rosas, as mirava de quando em quando, deleitando-se com a sua fragrância e formosura.

Esta foi a quarta e última aparição da Ss. Virgem ao venturoso mexicano.

Chegou Juan Diego com a sua mensagem à morada do prelado, e tendo pedido a vários servos que o conduzissem à sua presença, esperou durante muito tempo, até que, enfadados de suas importunações, notaram que ele ocultava alguma coisa em sua capa, e quiseram ver o que era.

Juan Diego resistiu tanto quanto possível, mas por fim viu-se obrigado a abrir um tanto a capa. Vendo que eram rosas, e tão belas, pretenderam tirar algumas; porém, ao estender três vezes as mãos, pareceu-lhes que não era verdadeiras, senão pintadas ou tecidas com arte na capa.

Foram então dar notícia do ocorrido ao Sr. Bispo, que chamou o índio. Expôs este humildemente que trazia o sinal pedido, e, desdobrando a capa, caíram ao solo, as rosas, e além disto viram pintada na capa a imagem de Maria Santíssima, a mesma que ainda hoje se venera.



Admiradíssimo o Exmo. Sr. D. Zumárraga do prodígio das rosas frescas e balsâmicas no rigor do inverno, e sobretudo emocionado ao contemplar a imagem maravilhosa, caiu de joelhos para venerá-la, imitando-lhe o exemplo todos os que estavam presentes.

Logo depois desatou o laço posterior da capa do índio e levou-a para o seu oratório, onde a colocou com reverência, depois de haver dado graças a Deus e a sua divina Mãe. Deteve naquele dia em seu palácio o afortunado neófito e o acolheu com grande carinho. No dia seguinte determinou que o acompanhasse para indicar o lugar em que a Ss. Virgem queria que se edificasse o templo.

Com a maior ingenuidade assinalou os lugares em que havia visto e falado quatro vezes à Mãe de Deus, e depois pediu permissão para ir ver seu tio. O Sr. Bispo lha concedeu de bom grado, dando-lhe companheiros de confiança, com a ordem de trazerem Juan Bernardino à sua presença, se tivesse sido curado.

Encontraram-no de fato completamente são; e ele declarou que lhe havia aparecido a Ss. Virgem e lhe insinuara que era vontade sua lhe fosse edificado um templo no lugar em que a havia visto seu sobrinho, e que sua imagem se chama-se - Santa Maria de Guadalupe.

Logo que se divulgou a fausta notícia de que a Virgem Mãe de Deus havia aparecido a dois índios, deixando milagrosamente gravada na capa de um deles a representação de sua formosura, reanimaram-se os abatidos mexicanos.

De todos os bairros da populosa cidade e de seus arredores acorriam muitos para se certificarem da verdade do milagre e venerarem a imagem de sua augusta Protetora.

Sendo muito pequeno o oratório do Bispo para conter as multidões ávidas de contemplar a maravilhosa pintura, D. Zumárraga mandou colocá-la no retábulo do altar-mór da igreja matriz. Em um dos altares laterais puseram as rosas, que, depois de secas, foram repartidas como relíquias entre as famílias mais distintas e piedosas.

Ali permaneceu a imagem até 26 de dezembro do mesmo ano de 1531, dia em que foi transladada para a ermida que no breve espaço de quinze dias foi construída no outeiro de Tepeyac.

A transladação foi feita com a maior piedade e com demonstrações de indizível júbilo. O percurso de uma légua de distância, da cidade a Tepeyac, foi feito por caminhos cobertos de arcos e ramos, estando o chão atapetado de ervas odoríficas e variadas flores, que haviam trazido de diversos povoados.

As multidões que acompanhavam a transladação apregoavam em sua língua os louvores da Mãe de Deus.

O cacique de Atzcapozalco, que no batismo tinha recebido o nome de Francisco Plácido, cantou em verso, como costumava os naturais cantar os feitos memoráveis de sua nação, todas as ocorrências das aparições. E, como estribilho, repetia com frequência: "A Virgem é de nós outros, os índios, nossa Mãe e Senhora! A Virgem é dos índios!"

O ditoso Juan Diego se dedicou ao serviço da Ss. Virgem em sua ermida, depois de haver deixado seu povoado para sempre, e suas casas e terras a seu tio.

Seus vizinhos do povoado lhe construíram um quartinho de adobes junto da ermida, onde viveu honesta e recolhidamente como um ermitão, com a licença de D. Zamárraga.

Varria a igrejinha, perfumava-a, rezava continuamente e conversava familiarmente com a Ss. Virgem, como um filho com sua mãe. Era homem exemplar, temente a Deus, de consciência reta e louváveis costumes. Teve tal opinião de santidade, que todos os que iam ao santuário pedir alguma mercê à Ss. Virgem, tomavam-no como intercessor e se recomendavam às suas orações. Morreu em 1548, com 74 anos de idade.

O primeiro dos surpreendentes efeitos da aparição de Nossa Senhora foi a rápida conversão do México à fé de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Era tristíssimo o estado de idolatria em que jazia a raça asteca, que dominava no país à chegada dos espanhóis. Os astecas, mais que nenhuma outra nação pagã, haviam-se entregado à horrenda barbárie dos sacrifícios humanos, e, como as vítimas dos sacrifícios deviam ser prisioneiros de guerra, davam combate a seus inimigos no princípio de cada um dos dezoito meses de vinte dias em que dividiam o ano, preferindo fazer um prisioneiro a matar cem homens.

Imolavam-se deste modo anualmente pelo menos, vinte mil vítimas humanas, cujos corações palpitantes se ofereciam ao astro do dia e ao deus da guerra.

Deus castigou este povo prevaricador tirando-lhes a autonomia.

O intrépido capitão Fernando Cortés, à frente de suas hostes, conquista Anahuac, e a 13 de agosto de 1521 toma posse da capital do império.

Depois de muitos trabalhos e sacrifícios nos oito anos que precederam à aparição de Nossa Senhora, lograram os missionários batizar oitocentos mil índios, mas quase todos crianças. Os adultos não se resolviam a abraçar o cristianismo, porque estavam habituados à poligamia.

Mas... amanhece o memorável dia 12 de dezembro de 1531, e dissipam-se como por encanto as trevas da idolatria!

Somente os Franciscanos, nos dez anos que seguiram à aparição, conforme escreve o Pe. Motolínia, batizaram dez milhões.

Todos os historiadores, inclusive o protestante norte-americano Humberto H. Bancroft, confessam que a Virgem de Guadalupe foi o Apóstolo que arraigou a fé católica no México.

Noventa anos esteve a pintura milagrosa da Ss. Virgem em sua primitiva ermida.

Crescendo dia a dia a devoção e o culto, tanto a ermida como a igreja que a substituiu foram insuficientes, até que a 25 de março de 1625 foi benzida a primeira pedra da soberba basílica que é a maior glória do povo mexicano.

Celebrou-se a festa de sua dedicação a 1º de maio de 1709, e têm sido feitas em diversas épocas reparações notáveis, sobressaindo as que foram começadas a 24 de outubro de 1887, para celebrarem condignamente a coroação da veneranda imagem - a pintura milagrosa - decretada pela Santa Sé.

Por não poder estender-me demasiadamente, não falarei na grandiosidade da basílica; não poderei, porém, privar-me do prazer de comunicar aos leitores que o altar que contêm a santa imagem; é de alvíssimo mármore de Carrara, com delicados lavores, e que a maravilhosa pintura, guarnecida de duas molduras (a exterior é de bronze dourado, e a outra de ouro fino), é protegida, pelo lado da frente, por um cristal finíssimo, e por detrás por uma delgada lâmina de prata, que importou em dois mil pêsos.



Dia para sempre memorável nos fastos da Igreja mexicana será o dia 12 de outubro de 1895, em que foi coroada a maravilhosa imagem de Nossa Senhora de Guadalupe.

Colocaram diante do trono da Santa Imagem um tablado com suaves e cômodas escadas. O Arcebispo celebrante entoou o "Regina Coeli", e, ajudado pelo Arcebispo de Michoacán, suspendeu a riquíssima coroa e colocou-a, pendente de uma vareta de ouro, que havia sido encravada na moldura, à altura da cabeça da Ss. Virgem.

Foi indescritível o entusiasmo e a comoção dos cinquenta mil fiéis que assistiram à coroação de sua Mãe e Rainha, representada na maravilhosa pintura!...

Quanto à origem da palavra - Guadalupe, não estão de acordo os escritores. Becerra Tanco é de opinião que não foi esta palavra que ouviu Juan Bernardino, porque a língua asteca carece das letras G e D, e por esta razão os índios não podiam pronunciá-las. Talvez, diz ele, que a palavra indicada pelo índio fosse "Tecuatlanapeuh", que se pronuncia "Tecuatlanupe", e quer dizer "brotado do cume das rochas", ou então "Tecuantlaxopeuh" que se pronuncia "Tecuatlasupe", e significa - "vencedora do demônio", e, literalmente: "a que afugenta aos que nos comiam".

Os espanhóis, que modificavam as palavras astecas amoldando-as à língua castelhana, a converteriam em - Guadalupe. 

Sábios e prudentes historiadores, porém, acham que o nome indicado pela Ss. Virgem foi mesmo "Guadalupe", o qual se compõe de duas palavras árabes, que significam "Rio de Luz", significação muito adequada ao milagre.

O amor a Nossa Senhora de Guadalupe está tão arraigado no coração dos mexicanos, que chegaram a ser sinônimo os termos mexicano e guadalupano.

Não há na República diocese que lhe não tenha dedicado um templo mais ou menos suntuoso; não há igreja que lhe não tenha erigido um altar; não há casa em que não seja venerada com especiais demonstrações de afeto.

No dia 12 de cada mês honram com esmêro sua Mãe Celestial. Todos os sábados cantam com pompa e solenidade a "Salve Regina", na insígne Basílica, e as várias Dioceses têm no ano um dia fixo em que vão em romaria visitar a Ss. Virgem, dedicando-lhe função sonelíssima, com Pontifical pelo respectivo Prelado.

NOTA: A sobrehumana pintura representa a Ss. Virgem como se costuma em geral representá-la no mistério de sua Imaculada Conceição, mas a túnica é cor de rosa, com arabescos dourados, e o manto é azul esverdeado, todo semeado de estrelas, e a modéstia, formosura e amabilidade de seu rosto é de uma beleza inimitável, de encanto virginal e divino.



Na cabeça, por cima do manto, a imagem tinha uma coroa dourada, de dez pontas; porém, ao fazerem os preparativos para a solene coroação da Virgem, notaram com espanto nova maravilha: a coroa havia desaparecido "sem deixar o mínimo vestígio de raspadura ou outra violenta ação humana"!

(Versão resumida do livro "América Mariana", do Revmo. Pe. Félix Alejandro Cepeda.)


Maria e seus gloriosos títulos, Edésia Aducci, editora Lar Católico, 1960, 2ª edição.
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Fonte das imagens
https://www.flickr.com/photos/28359965@N03/
https://www.britannica.com/topic/Our-Lady-of-Guadalupe-patron-saint-of-Mexico
https://litanylane.blogspot.com/2012/12/sunday-december-9-2012-obedience-baruch.html
https://www.pildorasdefe.net/aprender/fe/Video-Las-13-figuras-en-los-Ojos-de-la-Virgen-de-Guadalupe
https://pt.aleteia.org/2016/10/12/16-lindas-imagens-de-maria-na-arte/
https://sacragaleria.blogspot.com/2014/11/nossa-senhora-de-guadalupe.html







 

Nossa Senhora de Guadalupe

(Espanhola)

Festa - 8 de setembro




A imagem espanhola de Nossa Senhora, que mais tarde tomou o título de Guadalupe, foi enviada de Roma a Sevilha pelo Sumo Pontífice S. Gregório Magno, tendo ido ao seu encontro o Arcebispo S. Leandro, que com ela entrou processionalmente em Sevilha, onde foi objeto de fervoroso culto por espaço de um século apenas, por ter sido interrompido pela invasão muçulmana. 

Os cristãos de Sevilha foram os primeiros que fugiram, mas levaram consigo todas as relíquias e imagens que puderam transportar, e entre elas a da Santíssima Virgem que tinha sido enviada de Roma, e como, com tão grande impedimento - o peso das imagens - o êxodo tristíssimo daqueles pobres cristãos se fazia muito lentamente, com grave risco de serem alcançados pelos mouros, eles foram ocultando pelo caminho as relíquias e imagens nos lugares que julgavam mais a propósito para subtraí-las às profanações daqueles infiéis.

Os que levaram a imagem da Virgem procedente de Roma tomaram a direção de Extremadura, internando-se em uma aspérrima montanha, que mais tarde recebeu o nome de Guadalupe, palavra formada das palavras - guad, que significa rio,  por causa do que corre pelas suas cercanias, e lupe, lobos, por serem abundantes esses animais naquelas brenhas. 

A fragosidade do terreno, pareceu-lhes seguro refúgio para proteger a santa imagem de toda a profanação; porém, para maior segurança, procuraram entre os penhascos o lugar mais recôndito, onde com mais certeza de não ser encontrada pudesse ocultar o precioso tesouro de que eram portadores; acharam então uma caverna bem apropriada por parecer uma capelinha, e aí colocaram, com grande reverência, a santa imagem.

Deixando na caverna uma relação minuciosa da procedência da imagem, do tempo e da forma em que foi levada para a Espanha, do culto que recebera em Sevilha e dos motivos que os levaram a ocultá-la, fecharam a caverna com pedras, e tristes, por causa do tesouro que abandonavam, desceram da montanha e prosseguiram na fuga para o norte, para escaparem de seus perseguidores.


***


Cinco séculos depois, quando só o reino de Granada e alguns portos de mar estavam ainda no poder dos mouros, já o culto católico tinha recobrado seu esplendor em quase toda a península Ibérica, e as imagens da Ss. Virgem e dos Santos, que tinham sido escondidas pelos cristãos nos primeiros tempos da irrupção maometana, já tinham sido recolocadas em seus altares; porém faltava uma, e justamente aquela que tinha sido o objeto predileto da devoção dos sevilhanos durante um século, e que tinha sido escondida na montanha de Guadalupe. Não se sabe por que motivo os cristãos que a esconderam não transmitiram a seus descendentes o lugar onde a tinham depositado; o fato é que em 1323 ninguém tinha notícias da existência daquela imagem; mas a Ss. Virgem, que já havia operado prodígios para que fossem descobertas algumas de suas imagens escondidas pelos espanhóis por ocasião da invasão muçulmana, como a de Montserrat, a da Cabeça e outras, mais uma vez se dignou aparecer a um devoto seu, indicando o esconderijo de sua imagem, para que não continuasse privada de veneração e culto.

O guardador de gado, Gil Cordero, costumava levar seu rebanho a pastar nos arredores de Talavera, e uma tarde, tendo-se desgarrado uma das rêzes que guardava, correu atrás dela até que a perdeu de vista.

Desgostoso o pastor com aquela perda, levou para o estábulo as outras rêzes, e voltou para o campo à procura da que se havia extraviado, e deste modo chegou a uma escarpada montanha, onde deu com o rastro do animal que buscava. Vencendo então as maiores dificuldades, chegou a certa altura, de onde avistou a vaca ferida e ensanguentada. Correu a ela o pastor, mas só teve tempo de vê-la morrer, o que lhe causou grande mágoa, por tratar-se de um animal de grande valor.

Nesse momento ouviu perto de si uma voz dulcíssima, e, ao levantar os olhos, que estavam fixos no animal morto, viu uma formosíssima Senhora, que lhe deu a entender que era a Ss. Virgem Maria.

Extático quedou o pastor à vista de tão excelsa Senhora, a qual lhe descobriu o lugar onde estava oculta a sua imagem, e lhe declarou ser de sua vontade que ali mesmo se erigisse um santuário, que seria célebre no decorrer dos séculos, por causa das maravilhas que nele operaria Deus por sua intercessão. Para demonstrar com um prodígio a verdade de sua aparição, a Ss. Virgem ressuscitou o animal cuja morte o pastor chorava, e este, louco de alegria, pôs-se a correr pela montanha abaixo, só parando ao chegar ao povoado, onde narrou os prodígios de que havia sido testemunha.

Como acontece em casos semelhantes, foram mais numerosos os que duvidavam da palavra do pastor do que os que nelas creram; mas com tanta insistência e segurança afirmava a veracidade de sua narração, que a autoridade eclesiástica viu-se na necessidade de intervir no assunto, e, depois de várias provas, guiados pelo pastor, dirigiram-se para o lugar incado por ele, onde acharam não só a imagem, mas também a relação de sua origem e as circunstâncias que obrigaram os católicos a escondê-la há cinco séculos atrás.

Não é possível descrever o júbilo que causou aos fiéis dos arredores o achado da santa imagem, nem a admiração com que ouviram a leitura do manuscrito histórico, no qual contavam que aquela imagem de remota antiguidade havia sido venerada em Roma, a que livrara da peste; contavam também as circunstâncias em que tinha ido para a Espanha, seus prodígios e a veneração de que havia sido objeto em Sevilha. Depois de se ajoelharem e rezarem diante da imagem, pensaram nos meios de dar cumprimento à vontade da Ss. Virgem.

Quando alguns dos que tinham ido com o pastor manifestaram a ideia de transladar a imagem para Cáceres, opôs-se a isso o pastor, declarando que, se tal se fizesse, seria desacatada a Rainha dos céus, que havia manifestado claramente a sua vontade: ficar naquele lugar aquela sua imagem, em um templo dedicado à sua honra.

Os eclesiásticos que faziam parte da piedosa expedição renderam-se às razões do pastor, e do melhor modo que puderam levantaram um altar ali mesmo na caverna, no qual colocaram a imagem, ficando algumas pessoas velando por turnos, naquele improvisado santuário, enquanto se tratava de fazer uma capelinha provisória.

Alegrou-se sobremaneira o rei D. Afonso XI, quando soube da prodigiosa descoberta de tão preciosa imagem, e grande foi o seu zelo para que fosse venerada Nossa Senhora de Guadalupe; e não foi menor a recompensa que obteve sua piedade, pois a ela deveu o assinalado triunfo que conseguiu sobre os mouros na famosa batalha de Salado, na qual desbaratou os que tinham ido da África em auxílio dos da Espanha. 

Terminado o santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, foi entregue a doze capelães seculares até o reinado de D. João I, época em que foi entregue aos religiosos de São Jerônimo, que começavam a florescer na Espanha com grande fama de santidade.


Graças a seu zelo, foi sempre crescendo a prosperidade do Santuário, cuja fama, de outro lado, aumentava dia a dia por causa dos milagres que se comprazia em operar a Ss. Virgem Maria naquele lugar.

As peregrinações a seu Santuário têm sido contínuas desde o dia em que foi descoberta a santa imagem, que aparece em seu altar cheia de beleza e majestade. É de cor morena, como todas as imagens da Virgem cuja fabricação se atribui a Nicodemos e a S. Lucas; é grave e perfeito o rosto, que produz tão grande veneração nos que a contemplam, que, mal fixam nela os olhos, sentem em seu coração admiráveis afetos de submissão, amor e arrependimento de suas culpas.



Sustém, com a mão esquerda, o Menino Jesus, de extrema beleza e perfeição, e na direita empunha um cetro de ouro ornado de pedras preciosas. É tão grande a variedade e riqueza de seus atavios (vestidos e enfeites), que podem ser mudados continuamente, sem que alguém consiga vê-los todos; mas não é de admirar, porque contribuiram, para o adorno da imagem, reis, príncipes, outros grandes homens e povos inteiros, e assim é natural que seja tão rico e tão variado o seu tesouro de jóias e outros adornos.




A imagem de Nossa Senhora de Guadalupe é descida de seu trono na véspera do dia 8 de setembro, para ser levada processionalmente nesse dia pelo claustro do mosteiro anexo ao Santuário.

Fora desse dia, ninguém jamais se aproxima da veneranda imagem, a não ser o religioso encarregado de cuidar dela e vesti-la, para o que há uma escada particular, interna, por onde sobe apenas o encarregado desse serviço.

O feliz pastor Gil, mal começaram a construção do Santuário, transportou-se com a sua família para o local das obras, para que nada faltasse ao culto de Nossa Senhora, e continuasse nessa ocupação até o fim de sua vida, pelo que lhe deram o nome de Gil de Santa Maria de Guadalupe.

(Versão resumida do livro "La Virgem en España".)


Maria e seus gloriosos títulos, Edésia Aducci, editora Lar Católico, 1960, 2ª edição.
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Fonte das imagens

https://mavcor.yale.edu/material-objects/virgin-guadalupe-extremadura-spain

https://www.spain.info/pt_BR/lugares-interesse/real-mosteiro-santa-maria/

https://pt.wikipedia.org/wiki/Mosteiro_Real_de_Santa_Maria_de_Guadalupe

https://mavcor.yale.edu/conversations/object-narratives/virgin-guadalupe-extremadura-spain