Santo Padre, Papa Pio IX
Encíclica "Qui pluribus"
Carta Encíclica
A todos os Patriarcas, Primazes, Arcebispos e Bispos: sobre os principais erros contemporâneos e o modo de os combater.
PIO PP. IX
(Reinado 1846-1878)
Veneráveis Irmãos: Saudação e Benção Apostólica.
Primeira saudação do Pontífice
1. Já vão muitos anos, Veneráveis Irmãos, exercíamos Nós o múnus pastoral ao vosso lado, múnus pleno de labor e solícitos cuidados, e Nos esforçávamos por apascentar o rebanho a Nós confiado, nas montanhas de Israel, pelas ribeiras e pastos mui exuberantes; agora, porém, pela morte de Nosso esclarecido predecessor Gregório XVI, cuja memória e feitos ilustres e gloriosos, insertos nos fastos da Igreja, a postres e gloriosos, insertos nos fastos da Igreja, a posteridade há de admirar, fomos eleitos, contra toda conjetura e pensamento Nosso, por disposição da divina Providência, e não sem grande temor e perturbação Nossa, para o Sumo Pontificado. O peso do ministério apostólico foi sempre considerado como um fardo; mas nos tempos que fluem mais deve ser considerado como tal, de modo que, ciente de nossa debilidade e considerando os gravíssimos problemas do supremo apostolado, sobretudo em circunstâncias tão agitadas, dever-nos-íamos entregar à tristeza e ao pranto, por não termos posto toda a Nossa esperança em Deus, Salvador nosso, que nunca abandona os que n'Ele esperam e que, para mostrar a virtude de seu poder, lança mão do mais fraco para reger a Igreja, a fim de que a todos se patenteie com mais evidência ser Deus mesmo quem governa e defende a Igreja, em sua admirável providência. Anima-Nos grandemente o consolo de pensar que, ao procurar a salvação das almas, podemos contar com vossa ajuda, Veneráveis Irmãos, os quais, chamamos a trabalhar numa parte do que foi cometido à Nossa solicitude, vos empenhais em cumprir com vosso ministério e em combater o bom combate, com todo cuidado e esmêro. Pelo menos motivo, apenas elevado à Cátedra do Príncipe dos Apóstolos, sem merecê-lo, e após recebermos o encargo, do mesmo Príncipe dos Pastores, de fazer as vezes de São Pedro no pastoreio e governo, não somente dos cordeiros, isto é, de todo o povo cristão, mas também das ovelhas, quer dizer, dos Prelados, nada mais desejamos tanto como falar-vos com afeto íntimo de caridade. E mal tomáramos posse do Sumo Pontificado em Nossa Basílica de Latrão, segundo o costume de Nossos Predecessores, incontinenti vos enviamos esta carta, visando excitar o vosso zelo para que, com vigilância, esforço e porfia maiores, guardando vosso rebanho e por ele velando, lutando com fortaleza episcopal e constância contra o terrível inimigo do gênero humano, como bons soldados de Jesus Cristo, oponhaos uma muralha inexpugnável para a defesa da casa de Israel.
Os novos erros
2. Não vos é segredo, Veneráveis Irmãos, que nestes nossos tempos calamitosos foi desencadeada uma guerra cruel e temível contra tudo quanto é católico, por homens que, unidos em perversa sociedade e imbuídos de doutrina malsã, fechando seus ouvidos à verdade, têm propalado e disseminado, por entre o povo, doutrinas falsas de toda espécie, provindas do erro e das trevas. Horroriza-se-Nos e se confrange o coração de dor, ao considerar os erros monstruosos e os múltiplos artifícios inventados para causar dano; as insídias, as maquinações com que esses inimigos da luz e obreiros ardilosos do erro se esforçam por apagar toda piedade, toda justiça, toda honestidade; em depravar os costumes; em calcar aos pés os direitos divinos e humanos; em perturbar a religião católica e a sociedade civil e até mesmo arrancá-las pela raiz, caso lhes fosse possível. Porque sabeis, Veneráveis Irmãos, que esses inimigos do homem cristão, arrebatados por impeto cego de desvairada impiedade, em sua temeridade chegam até, com audácia jamais vista, abrindo sua boca e proferindo blasfêmias contra Deus (Ap 13,6), a ensinar pública e desavergonhadamente que os mistérios de nossa religião sacrossanta são contos inventados pelos homens, que a doutrina da Igreja vai contra o bem-estar da sociedade humana, e até se atrevem a insultar o próprio Cristo Deus.
E para mais facilmente se rirem dos povos, enganar os incautos e arrastá-los juntamente ao erro, pensando possuir somente eles o segredo da prosperidade, arrogam-se o título de filósofos, como se a filosofia, que se compreende toda a investigação de verdade natural, devesse repelir tudo aquilo que o supremo e clementíssimo autor da natureza - Deus - se dignou manifestar aos homens por singular benefício e misericórdia, a fim de que consigam a verdadeira felicidade.
3. Daqui é que eles, com argumento torcido e falaz, se esforçam por proclamar a força e excelência da razão humana, superpondo-a a toda fé em Cristo e afoitamente vociferam que essa fé se opõe à tal razão humana. Nada mais insensato, nada mais ímpio, nada mais contrário à própria razão poderiam ter eles excogitado. Porque, ainda quando a fé esteja acima da razão, entre elas não há nem oposição e nem desavença alguma, já que ambas procedem da mesma fonte da verdade eterna e imutável, Deus Ótimo e Máximo; e de tal forma se prestam mútuo auxílio, que a reta razão demostra, confirma e defende as verdades da fé; e a fé preserva a razão de erros, ilustra-a, corrobora-a e aperfeiçoa-a, com o conhecimento das verdades divinas.
4. E não é com engano e ousadia menores, Veneráveis Irmãos, que esses inimigos da revelação divina, exaltando o progresso humano, quiseram contrapô-lo temerária e sacrilegamente à religião católica, como se a religião não fosse obra de Deus, mas sim dos homens, ou então fosse algum invento filosófico que se pode aperfeiçoar por vias humanas. A esses sonhadores tão míseros opõem-se diretamente o que Tertuliano objurgava aos filósofos do seu tempo: que falavam de um Cristianismo platônico, estóico, dialético (Tertuliano, De Praescriptione, cap. 8).
A razão e a fé
5. Sendo verdade que nossa religião santíssima não foi inventada pela razão humana, mas sim manifestada clementíssimamente por Deus aos homens, facilmente se compreende que essa religião há de haurir sua força da autoridade do mesmo Deus, que, portanto, não pode ser deduzida da razão humana e nem por ela aperfeiçoar-se. Para que não erre e se transvie em assunto de tamanha importância, a razão humana deve investigar diligentemente o fato da revelação divina, para que se certifique ter Deus falado e estar prestando, como diz o Apóstolo (Rm 13,1), razoável obséquio. Quem há que possa ignorar que, quando Deus fala, se lhe deva prestar plena fé e que não há nada tão conforme à razão como assentir e aderir firmemente ao que é certo ter Deus revelado, pois ele não pode enganar e nem ser enganado?
6. Há, contudo, além do mais, muitos argumentos maravilhosos e esplêndidos, nos quais a razão humana pode repousar convencida; argumentos com os quais se prova a divindade da religião de Cristo e que todo princípio de nossos dogmas tem seu fundamento no próprio Senhor dos céus (S. João Crisóstomo, Homilia I in Is.) e que, igualmente, nada há mais certo que nossa fé, nada mais santo, nada mais seguro e que se apóie em princípios mais sólidos. Esta nossa fé, mestra da vida, norma de salvação, inimiga de todos os vícios e mãe fecunda das virtudes, confirmada com o nascimento do seu divino autor e consumador, Jesus Cristo; com sua vida, morte, ressurreição, sabedoria, portentos, vaticínios, refulgindo por toda parte com a luz da doutrina eterna, enriquecida com os tesouros de riquezas celestiais, com os vaticínios dos profetas, com o esplendor dos milagres, com a constância dos mártires, com a glória dos santos, singular em dar a conhecer as leis da salvação em Cristo Nosso Senhor, revigorando-se dia a dia com a crueldade das perseguições, esta nossa fé invadiu o mundo inteiro, percorrendo-o por mares e terras, desde o levante até o poente; arvorando, como único pavilhão, a Cruz; aludindo os ídolos falazes e devassando a escuridão das trevas; havendo derrotado, em toda parte, os inimigos que se lhe opuseram, ilustrou, com a luz do conhecimento divino, os povos todos, os gentios, as nações de índole e costumes bárbaros, por meio de leis e instituições diversas; sujeitou-os ao jugo de Cristo, anunciando-lhes, a todos, a paz e promentendo-lhes o bem verdadeiro. E em tudo isso reluz tão profusamente o fulgor do poder e sabedoria divinos, que a mente humana facilmente compreende ser a fé cristã obra de Deus. Desta forma a razão humana, concluindo, desses argumentos esplêndidos e firmíssimos, ser Deus o autor da mesma fé, não pode penetrar mais; porém, vencida qualquer dificuldade e dúvida, mesmo que remotas, deve adquirir pleno conhecimento, sabendo, com certeza, que tudo quanto a fé propõe aos homens para crer e fazer, há sido revelado por Deus.
A Igreja, mestra infalível
7. Daqui se evidencia claramente em que erro tamanho laboram os que, abusando da razão e tomando como obra humana o que Deus comunicou, ousam explicá-lo a seu talante e interpretá-lo temerariamente, sendo que o próprio Deus constituiu uma autoridade viva para ensinar o sentido verdadeiro e legítimo de sua revelação celeste e estabecê-lo solidamente, a fim de dirimir toda controvérsia em questões de fé e costumes, com juízo infalível, para que os homens não sejam induzidos ao erro por qualquer inconsistente doutrina. Esta autoridade viva e infalível existe somente na Igreja fundada por Cristo Nosso Senhor, sobre Pedro, como cabeça de toda a Igreja, Príncipe e Pastor; cuja fé prometeu nunca haver de fraquejar; que nos Pontífices tem e sempre teve legítimos sucessores, trazendo sua origem ininterrupta desde Pedro, sentados em sua mesma Cátedra, herdeiros também de sua doutrina, dignidade, honra e poder. E porque onde está Pedro aí está também a Igreja (S. Ambrósio in Psal. 40), e porque Pedro fala pelo Romano Pontífice (Conc. Calc., Act. 2), vive sempre em seus sucessores, exerce a jurisdição (Synod. Efes., act. 3) e comunica a verdade da fé aos que a buscam (S. Pedro Crisol., Epist. ad Eutich.); por isso as palavras divinas hão de ser recebidas naquele sentido no qual as conservou e conserva esta Cátedra de S. Pedro, que, sendo mãe e mestra das Igrejas (Conc. Trind. Sess. 7, de Bapt.), sempre tem mantido íntegra a fé de Cristo Nosso Senhor, e a mesma ensinou aos fiéis, mostrando a todos os caminhos da salvação e a doutrina da verdade incorruptível. Visto que esta é a principal Igreja da qual procede a unidade sacerdotal (S. Cyprian. Epist. ad Cronel.), está é a metrópole da piedade, na qual lança raízes a solidez íntegra da religião cristã (Litt. Synod. Ioan. Constant. ad Hormisd. Pontif. et Sozon. Histor., lib. 3, cap. 8), na qual sempre prosperou o principado da Cátedra apostólica (S. August. Epistola 162), à qual, por sua eminente primazia, é necessário que toda a Igreja acorra, isto é, os fiéis que estão em todo o mundo (Iren., Contra Haereses, 1. 3, c. 3), na qual o que não colhe, dispersa (S. Ieron., Epistola ad Damasum Pontificem). Nós, que, por insondável desígnio de Deus, fomos elevados a esta Cátedra da verdade, estimulamos, Veneráveis Irmãos, com veemência no Senhor, o vosso zelo, para que solícita e assiduamente exorteis os fiéis confiados ao vosso cuidado, de modo que, aderindo solidamente a estes princípios, não permitiam ser induzidos ao erro por aqueles que, abomináveis por suas doutrinas, pretendem destruir a fé com o resultado dos seus progressos e querem, impiamente, submeter esta mesma fé à razão, falsear a palavra de Deus e dessa forma injuriar gravemente a Deus, que, com grande compaixão, se dignou atender ao bem e à salvação dos homens com sua religião celestial.
Outra classe de erros
8. Conheceis também, Veneráveis Irmãos, outra espécie de erros e enganos mostruosos, com os quais os filhos deste século atacam a religião cristã, a autoridade divina da Igreja e suas leis, e se empenham em espezinhar os direitos da autoridade sagrada e civil. Tais são as nefandas tentativas contra esta Cátedra Romana de S. Pedro, na qual Cristo pôs o fundamento inexpugnável de sua Igreja. Tais são as seitas clandestinas provindas das trevas para a ruína e destruição da Igreja e do Estado, condenadas pelos Romanos Pontífices, nossos antecessores, com reiterados anátemas em suas cartas apostólicas (Clement. XII, Const. In eminenti; Bento XIV, Const. Providas; Pio VII, Const. Ecclesiam a Iesu Christe; Leão XII, Const. Quo graviora), os quais Nós com pleno poder, confirmamos e ordenamos que se observem com toda diligência. Tais são as dissimuladas Sociedades Bíblicas que, renovando as antigas maneiras dos hereges não cessam de adulterar o significado dos livros sagrados, traduzidos em uma linguagem vulgar qualquer, contra as regras santíssimas da Igreja, interpretados frequentemente por explicações falsas, os distribuem gratuitamente em avultado número de exemplares, com altos gastos, aos homens de qualquer condição, ainda que rudes, a fim de, postergando a divina Tradição, a doutrina dos Padres e a autoridade da Igreja Católica, cada qual interprete a seu bel-prazer o que Deus há revelado, desvirtuando seu sentido genuíno, incorrendo em erros gravíssimos. A tais sociedades Gregório XVI, a quem imerecidamente sucedemos, seguindo o exemplo dos antecessores, reprovou, com suas cartas apostólicas (Gregório XVI, Inter Praecipuas), e igualmente Nós também reprovamos. Tal é o sistema perverso e oposto à luz natural da razão, o qual propugna pela indiferença em matéria de religião, por meio da qual esses inveterados inimigos da religião, obliterando toda distinção entre virtude e vício, verdade e erro, honestidade e vileza, asseveram que se pode alcançar a salvação eterna em qualquer religião, como se acaso pudessem consorciar-se a justiça e a iniquidade, a luz e as trevas, Cristo e Belial. Tal é a vil conspiração tramada contra o celibato clerical que, oh dor! vem sendo apoiada por algumas pessoas eclesiásticas, as quais, esquecidas lastimosamente de sua dignidade, deixam-se seduzir e corrompe miseramente a juventude incauta, propinando-lhe fel do dragão em cálice de Babilônia; tal é a nefanda doutrina do comunismo, contrário ao direito natural, que, uma vez aceita, lança por terra os direitos de todos, a propriedade, a própria sociedade humana; tais as insídias tenebrosas daqueles que, em pele de ovelhas, mas sendo lobos rapaces, insinuando-se fraudulamente com sua aparência de piedade sincera, de virtude e disciplica, intrometem-se humildamente, captam com brandura, atacam delicadamente, matam às ocultas, afastam os homens de toda religião, sacrificam e destroçam as ovelhas do Senhor. Tal, por fim, para não referir tudo o mais, de vosso pleno conhecimento, a propaganda infame, de livros e folhetos que voam por todos os recantos, ensinando os homens a pecar; livros e folhetos que, compostos com arte e imbuídos de enganos e artifício, profusamente esparsos para ruína do povo cristão, semeiam doutrinas pestíferas, depravam o coração e as almas, sobretudo dos menos avisados, e infligem graves prejuízos à religião.
9. Com toda esta amálgama de erros e licenciosidades infrenes, no modo de pensar, falar e escrever, relaxam-se os costumes, deprecia-se a religião santíssima de Cristo, ataca-se a majestade do culto divino, vexa-se o poder desta Sé Apostólica, ataca-se e reduz-se a autoridade da Igreja a torpe subserviência, conculcam-se os direitos dos Bispos, profana-se a santidade do matrimônio, ameaçando ruir o regime de todo poder, e todos os demais males que Nos vemos obrigados a chorar, Veneráveis Irmãos, com pranto de todos, atinentes já à Igreja, já ao Estado.
Os Bispos, defensores da religião e da Igreja
10. Em tais vicissitudes, de tempo e de acontecimento, para a religião, encarregados da salvação do rebanho do Senhor, nada omitiremos do que esteja ao nosso alcance, dada a obrigação do nosso ministério apostólico; faremos quantas tentativas pudermos, para o bem-estar da família cristã.
11. Recorremos também ao vosso zelo, virtude e prudência, Veneráveis Irmãos, para que, ajudados do auxílio divino, defendais valentemente, ao Nosso lado, a causa da Igreja Católica, segundo o posto que ocupais e a dignidade de que estais revestidos. Sabeis que vos importa lutar, não ignorando com quantas feridas e com que furor tão grande os inimigos, por toda parte, injuriam e atacam a santa Esposa de Jesus Cristo. E em primeiro lugar sabeis muito bem que é obrigação vossa defender e proteger a fé católica com esforço episcocal e vigiar com sumo cuidado para que o rebanho a vós confiado nela permaneça firme e inamovível, porque todo aquele que a não guardar íntegra e inabalável, perecerá, sem dúvida, para sempre (Do Símbolo Quicumque). Esforçai-vos, portanto, em defender e conservar com diligência pastoral essa fé, e não deixeis de nela instruir a todos, de confirmar os duvidosos, de arguir os que a contradizem; de dar alento aos enfermos na fé, jamais dissimulando coisa alguma e nem permitindo que se transgrida o menor ponto sequer da integridade dessa mesma fé. Com não menor firmeza formentai entre todos a união com a Igreja Católica, fora da qual não há salvação, e a obediência à Cátedra de Pedro, sobre a qual se fundamenta e alicerça firmíssima a mole de nossa religião. Com igual constância procurai guardar as leis santíssimas da Igreja, nas quais florescem e recebem vida a virtude, a piedade e a religião. E como é grande piedade descobrir os esconderijos dos inimigos e neles vencer o próprio demônio a quem servem (S. Leão, Sermo VIII, cap. 4), rogamo-vos que com todo esforço patenteeis ao povo fiel das insídias, os erros, os enganos, as maquinações, e lhe vedeis ler livros perniciosos, exortando-o frequentemente a que, fugindo da companhia dos ímpios e das suas doutrinas como de serpente, evite tudo quanto contraste com a fé, a religião, a integridade dos costumes. Mirando este fim, jamais omitais a pregação do evangelho, para que o povo cristão, cada dia melhormente instruído nos santíssimos deveres da lei cristã, cresça na ciência de Deus, afaste-se do mal, pratique o bem e caminhe pelas sendas do Senhor... E como sabeis que sois enviados de Cristo, que se proclamou manso e humilde de coração, que não veio para chamar os justos, mais sim os pecadores, dando-nos o exemplo para lhe seguir os passos, aos que encontrardes faltosos nos preceitos de Deus e afastados dos caminhos da justiça e da verdade, tratai-os com brandura e mansidão paternais, aconselhai-os, corrigi-os, rogai-lhes e increpai-os com bondade, paciência e doutrina, porque muitas vezes na correção mais proveito traz a benevolência que a aspereza, mais a exortação que a ameaça, mais a caridade que o poder (Concílio de Trento, Sessão XIII, cap. 1, de Reforma). Procurai também com todo desvelo, Veneráveis Irmãos, que os fiéis pratiquem a caridade, busquem a paz e ponham em prática com diligência o que a caridade e a paz mandam. Desta forma, extirpadas desde a raiz todas as dissensões, inimizades, emulações, contendas, amem-se todos com mútua caridade e todos, buscando a perfeição à própria maneira, tenham o mesmo sentir, o mesmo falar e o mesmo querer em Cristo Nosso Senhor.
12. Inculcai ao povo cristão a obediência e sujeição devidas aos príncipes e poderes constituídos, ensinando, conforme doutrinava o Apóstolo (Rom 12,1-2), que todo poder vem de Deus e os que não obedecem ao poder constituído resistem à ordem de Deus e se condenam a si próprios; e igualmente o preceito de obedecer a esse poder não pode ser violado impunemente por ninguém, a não ser que seja ordenado algo contra a lei de Deus e da Igreja.
O bom exemplo dos sacerdotes
13. Mas, visto não haver nada tão eficaz para mover outros à piedade e ao culto de Deus como o exemplo e a vida dos que se dedicam ao ministério divino (Concílio de Trento, sessão 22, cap. 1, de Reforma), e por via de regra quais sacerdotes, tal povo, bem vedes, Veneráveis Irmãos, que tendes a trabalhar com o máximo cuidado e diligência, para que no Clero brilhe a gravidade de costumes, a integridade de vida, a santidade e doutrina, para que se observe a disciplina eclesiástica com esmêro, segundo as prescrições do Direito Canônico, e onde fôra frouxa, retorne ao seu primitivo esplendor. Pelo que, bem sabeis, deveis cuidar, segundo preceito do Apóstolo, em não admitir qualquer candidato ao Sacerdócio, mas sim que inicieis nas sagradas ordens e promovais para tratar os sagrados mistérios aqueles que, examinados diligente e cuidadosamente, e adornados com os ornatos de todas as virtudes e ciência, possam servir de ornamento e utilidades às vossas dioceses e que, afastando-se de tudo quanto é vedado aos clérigos e atendendo à leitura, exortação e doutrina, sejam exemplo aos fiéis na palavra, no procedimento, na caridade, na fé, na castidade (1Tm 4,12), conquistem a veneração de todos, levem o povo cristão à constituição da religião e para tal o excitem e encorajem. Porque é muito melhor - como sabiamente admoesta Bento XIV, Nosso predecessor de feliz memória - ter poucos ministros, mas bons, idôneos e úteis, do que ter muitos que de nada servirão para edificação do Corpo de Cristo, que é a Igreja (Bento XIC, Ubi primum).
14. Não ignorais que deveis empregar maior diligência em averiguar os costumes e a ciência daqueles a quem está confiado o cuidado e a direção das almas, para que eles, como bons dispensadores da graça de Deus, apascentem o rebanho cometido ao seu cuidado com a administração dos sacramentos, com a pregação da palavra de Deus, e com o exemplo das boas obras; ajudai-os, instruí-os em tudo quanto se refere à religião, e conduzi-os pela senda da salvação.
Os pregadores de verdade
Efetivamente compreendeis que, com párocos desconhecedores do seu cargo, ou que dele cuidam com negligência, mais a mais vão decaindo os costumes dos povos, afrouxa a disciplina cristã, arruína-se e extingue-se o culto católico, introduzindo-se facilmente na Igreja todos os vícios e depravações.
16. Por que a palavra de Deus, viva, eficaz e mais penetrante que qualquer espada de dois gumes (Hb 4, 5, 12), instituída para a salvação das almas, não se torne infrutífera por culpa dos ministros, não cesseis de inculcar a esses pregadores a palavra divina e de obrigá-los, Veneráveis Irmãos, a que, inteirando-se da gravidade máxima de seu cargo, não exerçam o ministério evangélico em formas elegantes de humana sabedoria, nem no aparato e encanto profanos de uma eloqüencia vã e ambiciosa, mas na manifestação do espírito e da virtude com fervor religioso, para que, expondo a palavra da verdade e não se pregando a si mesmos, senão a Cristo Crucificado, anunciem clara e publicamente os dogmas de nossa religião santíssima, os preceitos segundo as normas da Igreja e a doutrina dos Santos Padres, com estilo grave e digno; expliquem com exatidão as obrigações de cada ofício; afastem a todos os vícios; conduzam à piedade de tal forma que os fiéis, compenetrados salutarmente da palavra de Deus, se apartem dos vícios, pratiquem as virtudes, evitando, assim, as penas eternas e alcançando a glória celestial. Com desvelo pastoral admoestai a todos os eclesiásticos, animai-os cautelosa e assiduamente a que, pensando seriamente na vocação que receberam do Senhor, cumpram diligentemente com a mesma, amem ardentemente com espírito de piedade, recitem devidamente as horas canônicas, segundo preceitua a Igreja, por meio das quais poderão impetrar para si o auxílio divino, para poderem cumprir suas gravíssimas obrigações e tornar Deus propício ao povo a eles confiado.
Formação dos sacerdotes
17. Como é do vosso conhecimento, Veneráveis Irmãos, os ministros aptos da Igreja não podem provir senão os clérigos bem formados e essa formação reta dos mesmos contém uma força potente para o curso da vida; por isso, esforçai-vos, com todo zelo episcopal, em cuidar que os clérigos adolescentes recebam, desde os primeiros anos, uma formação digna, tanto na piedade e sólida virtude, como nas letras e disciplinas sérias, máxime nas sagradas. Por isso nada há que tanto devais tomar a peito, nada há que tanto vos ponha solícitos, com: fundar seminários para clérigos, segundo o mandato dos Padres de Trento (Concílio de Trento, sessão 18, cap. 18), se ainda não os houver; quando instituídos, ampliá-los, se mister, fornecê-los de ótimos dirigentes e mestres, velar com zelo constante para que neles os jovens clérigos se eduquem no temor de Deus, vivam santa e religiosamente na disciplina eclesiástica, recebam formação conforme à doutrina católica, afastados de todo erro e perigo, segundo a tradição da Igreja e os escritos dos santos Padres, nas cerimônias sagradas e nos ritos eclesiásticos, com o que disporeis de operários idôneos e aptos, os quais, dotados do espírito eclesiásticos e preparados nos estudos, estejam capacitados para o cultivo do campo do Senhor e para lutar animosamente nas batalhas do Senhor. E como sabeis que a prática dos Exércitos Espirituais ajuda extraordinariamente para conservar a dignidade da ordem eclesiástica, para consolidar e aumentar a santidade, instai com santo zelo por obra tão salutar, e não cesseis de exortar a todos os que foram chamados para o serviço do Senhor a que frequentemente se retirem a um lugar apropriado, a fim de os praticar, livres das ocupações exteriores, e, entregando-se com fervor mais ardente à meditação das coisas eternas e divinas, poder alimpar-se das manchas contraídas no mundo, renovar o espírito eclesiástico, despojar-se do homem velho com seus atos, revestir-se do novo, que foi criado em justiça e santidade. Quiséramos que vos não parecesse havermo-Nos demorado por demais na formação e disciplina do clero. Pois há muitos que, enfastiados com a avalanche de erros, com sua inconstância e volubilidade, e sentindo a necessidade de professar a nossa religião, mais facilmente abraçam a religião com sua doutrina, preceitos e instituições, com o auxílio de Deus, quando veem que os clérigos se avantajam aos demais em piedade, integridade, sabedoria, exemplo e esplendor de todas as virtudes.
Exortação aos Bispos
18. Quanto aos mais, Irmãos caríssimos, não duvidamos que todos vós, inflamados da caridade ardente de Deus e dos homens, de amor apaixonado pela Igreja, instruídos nas virtudes angélicas, adornados da fortaleza episcopal, revestidos da prudência, animados unicamente do desejo de cumprir a vontade divina, seguindo as sendas dos Apóstolos e imitando o protótipo de todos os pastores, Cristo Jesus, cuja missão exerceis, iluminando, como convém aos Bispos, o clero e os fiéis com o esplendor de vossa santidade, entranhados de misericórdia, compadecendo-vos dos que erram e são ignorantes, ireis ao encalço, com amor, a exemplo do pastor do Evangelho, das ovelhas desgarradas e perdidas; segui-las-eis e, pondo-as sobre vossos ombros com caridade paternal, fá-las-eis voltar ao redil; ali não cessareis de desvelar-vos cuidadosamente por elas, com conselhos e trabalhos, para que, desobrigando-vos, como deveis, do vosso ofício pastoral, defendais todas as nossas ovelhas queridíssimas, redimidas com o sangue preciosíssimo de Cristo, confiadas à vossa tutela, contra o furor, o ímpeto e a rapacidade dos lobos famintos, as separeis dos pastos venenosos e as leveis aos salutares; e com a palavra, com a obra ou com o exemplo, consigais conduzi-las ao porto da eterna salvação. Tratai varonilmente de procurar a glória de Deus e da Igreja, Veneráveis Irmãos, e todos, unidos, trabalhai com toda presteza, solicitude e vigilância, a fim de que nisso a religião, a piedade e a virtude, vencidos os erros, arrancados os vícios pela raiz, tomem incremento de dia a dia, e todos os fiéis, desfazendo-se das obras das trevas, andem como filhos da luz, em tudo agradando a Deus e produzindo frutos em todo gênero de boas obras.
19. Não vos descoroçoeis apesar das graves angústias, dificuldades e perigos que necessariamente vos hão de acompanhar em vosso ministério episcopal nos tempos atuais; confortai-vos no Senhor e no poder de sua virtude, o qual, vendo-nos constituídos na união de seu nome, prova os que querem, ajuda os que lutam e coroa os que vencem (S. Cipriano, Epist. 11 ad Nemesianum). E como nada há mais grato, mais agradável e mais desejável para Nós que auxiliar-vos a todos, a quem amamos de todo o coração em Jesus Cristo, com todo o afeto, carinho, conselho e obra, e trabalhar ao vosso lado na defesa e propagação, com todo afinco, da glória de Deus e da fé católica, e salvar as almas, pelas quais estamos pronto, caso necessário, a dar a própria vida, vinde, Irmãos, vos rogamos e pedimos, vinde com grande confiança e ânimo a esta Sé do Beatíssimo Príncipe dos Apóstolos, centro da unidade católica e ápice do Episcopado, donde brota todo Episcopado e toda autoridade, vinde a Nós, sempre que vos sabeis necessitados do auxílio, da ajuda e da defesa de Nossa Sé.
Os príncipes
20. Alimentamos também a esperança de que nossos amantíssimos filhos em Cristo, os Príncipes, lembrados em sua piedade e religião que o poder régio não lhes há sido concedido somente para o governo das coisas do mundo mas principalmente para a defesa da Igreja (S. Leão, Epist. 156) e que Nós quando defendemos a causa da Igreja, defendemos a do seu reino e salvação, para que gozem com tranquilo direito de suas províncias (S. Leão, Epístola 43, aliás 34, Ad Theodosium), favorecerão com seu apoio e autoridade nossos votos comuns e defenderão a liberdade e incolumidade da mesma Igreja, para que o império de Cristo se defenda com sua destra (S. Leão, ibidem).
Para que tudo o que foi exposto se realize próspera e felizmente recorramos, Veneráveis Irmãos, ao trono da graça, e unânimemente roguemos com súplicas férvidas, com humildade de coração, ao Pai das misericórdias e Deus de toda consolação, que, pelos méritos de seu Filho, se digne cumular nossa fragilidade de carismas celestiais e com a onipotência de sua virtude derrote os que contra nós investem, aumente por toda parte a fé, a piedade, a devoção, a paz, com a qual a santa Igreja, desfeitos todos os erros e adversidades, possa desfrutar da liberdade tão ansiada e que haja um só rebanho e um único pastor. E por que o Senhor se mostre mais propício aos nossos rogos e atenda as nossas súplicas, roguemos à Intercessora junto d'Ele, a Santíssima Mãe de Deus, a Virgem Imaculada Maria, que é nossa Mãe dulcíssima, medianeira, advogada e esperança fidelíssima, cujo patrocínio é o mais valioso junto de Deus. Invoquemos também o Príncipe dos Apóstolos, a quem o próprio Cristo entregou as chaves dos céus e a quem constituiu pedra de sua Igreja, contra a qual as portas do inferno jamais hão de prevalecer, e o seu co-apóstolo Paulo, todos os Santos da corte celeste, que já são coroados e possuem a palma, para que impetrem do Senhor a abundância desejada da divina propiciação para todo o povo cristão.
Por fim, recebei a Benção Apostólica, promissora de todas as bençãos celestiais e penhor de Nosso amor para convosco, a qual vo-la damos do íntimo de Nosso coração, Veneráveis Irmãos, e a todos os clérigos e fiéis confiados ao vosso cuidado.
Dado em Roma, em Santa Maria Maior, aos 9 de novembro do ano de 1846, primeiro ano de Nosso Pontificado.