Trecho do livro entrevista do Cardeal Robert Sarah e Nicolas Diat
O século XXI certamente será um tempo de novas utopias, de transumanismo, da busca de um ser humano perfeito e eterno. A seu ver, essas novidades são preocupantes?
A atual revolução tem um nome: humanidade "aprimorada"¹ ou transumanismo. Seus recursos passam pela nanotecnologia, pela biotecnologia, pelas ciências da computação e as ciências do cérebro (NBIC). O objetivo é ir além dos limites da humanidade e criar um super-homem. Esse projeto teórico está prestes a se tornar realidade. Aqui chegamos à consumação do processo de autonegação e ódio à natureza que caracteriza o homem moderno. O homem se odeia tanto que quer se reinventar. Mas ele corre o grande risco de se desfigurar irremediavelmente. Diante de tal perspectiva, qualquer pessoa sensata deveria estremecer. De fato, pode se observar que muitos estão profundamente desamparados. Foi dito que a liberdade humana é um absoluto. O Criador foi rejeitado. A própria noção de natureza foi desprezada. O que nos resta? Estamos sozinhos e desarmados, fomos deixados indefesos diante do que parece ser um pesadelo. Transgredimos todos os limites. Mas não percebemos que os limites estavam nos protegendo. Além do limite, há apenas a infinidade do vazio. Hoje, alguns homens de boa vontade e alguns legisladores procuram conter o movimento. Percebemos que o chamado progresso está indo rápido demais. Mas não é uma questão de velocidade. É o próprio movimento que nos leva ao nada. Falamos do pós-humano, mas, depois do humano, não há nada! Estamos presos à ideia de que tudo é possível desde que a lei o permita. Esse positivismo jurídico, que foi elevado ao estatuto de princípio, está chegando ao fim. Ele já não é capaz de nos proteger. Ele não desempenha mais seu papel, que consiste em dizer o que é certo e justo. Os homens estão abandonados à própria sorte. Como podemos evitar esse salto no escuro? Onde encontrar o limite que protegerá a humanidade? Onde procurar o princípio que pode nos guiar? Bento XVI, em um discurso ao Parlamento alemão, pronunciou palavras proféticas que soam como um aviso, ao mesmo tempo humilde e solene, para toda a humanidade: "Onde a razão positivista se considera como a única cultura suficiente, relegando todas as outras realidades culturais para o estado de subculturas, aquela diminui o homem, antes, ameaça a sua humanidade. [...] A razão positivista, que se apresenta de modo exclusivista e não é capaz de perceber algo para além do que é funcional, assemelha-se aos edifícios de cimento armado sem janelas, nos quais nos damos o clima e a luz por nós mesmos e já não queremos receber esses dois elementos do amplo mundo de Deus. [...] É preciso tornar a abrir as janelas, devemos olhar de novo a vastidão do mundo, o céu e a terra e aprender a usar tudo isto de modo justo. Mas, como fazê-lo? Como encontrarmos a entrada justa na vastidão, no conjunto? Como pode a razão encontrar a sua grandeza sem escorregar no irracional? Como pode a natureza aparecer novamente na sua verdadeira profundidade, nas suas exigências e com as suas indicações? [...] Quando na nossa relação com a realidade há qualquer coisa que não funciona, então devemos todos refletir seriamente sobre o conjunto e todos somos reenviados à questão acerca dos fundamentos da nossa própria cultura. Seja-me permitido deter-me um momento mais neste ponto. A importância da ecologia é agora indiscutível. Devemos ouvir a linguagem da natureza e responder-lhe coerentemente. Mas quero insistir num ponto que - a meu ver - hoje como ontem, é descurado: existe também uma ecologia do homem. Também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece. O homem não é apenas uma liberdade que se cria a si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza, e a sua vontade é justa quando respeita a natureza e a escuta e quando se aceita a si mesmo por aquilo que é e que não se criou por si mesmo. Assim mesmo, e só assim, é que se realiza a verdadeira liberdade humana. [...] É verdadeiramente desprovido de sentido refletir se a razão objetiva que se manifesta na natureza não pressuponha uma Razão criadora, um Creator Spiritus?".
Estamos chegando ao final de um ciclo. A questão do transumanismo nos coloca diante de uma escolha entre civilizações. Podemos continuar na mesma direção, mas então nos arriscamos, literalmente, a desistir de nossa humanidade. Se quisermos permanecer humanos, devemos aceitar nossa natureza de criaturas e novamente nos voltarmos para o Criador. O mundo escolheu se organizar sem Deus, viver sem Deus, pensar em si mesmo sem Deus. Ele está fazendo uma experiência terrível: onde quer que Deus não esteja, lá está o inferno. O que é o inferno senão a privação de Deus? A ideologia transumanista é uma ilustração perfeita disto. Sem Deus, resta apenas o que não é humano, o pós-humano. Mais do que nunca a alternativa é simples: Deus ou nada!
O filósofo Guy Coq afirmou recentemente em uma conferência intitulada "Face de Deus, faces do homem": "A barbárie, isto é, a possibilidade de destruir a essência da civilização, progride passo a passo. A barbárie não vem ao nosso encontro dizendo: Eu sou a barbárie. Fiquem com medo. Vejam como é ampla a desumanidade que trago comigo. [...] Nossa civilização é como um ser humano bêbado caminhando na beira de um abismo. Alguns passos o aproximam dele, outros o afastam. Mas ele não sabe exatamente onde está a borda do abismo. Então pode ocorrer que um pequeno passo mais perto da borda cause o desastre final. Esse seria um pequeno passo que levaria longe demais. Se o caminhante quer evitar o pior, deve estudar cuidadosamente o seu caminho, tentando entender que esse passo deve ser evitado".
A tentação transumanista é aquele pequeno passo para longe que nos lança ao vazio. Ao produzir seres humanos modificados ou aprimorados, isso nos levaria a abolir a fronteira entre sujeito e objeto. Hoje tenho a consciência, quando vejo uma pessoa, que ela não é uma coisa que está à venda e disponível para mim, mas sim um outro "eu mesmo". Mas quem dirá amanhã onde está a fronteira entre o humano e o não humano? Se o ser humano se tornar um produto fabricado, quem poderá medir sua dignidade natural?
Será que estamos suficientemente conscientes do que dizemos quando falamos de seres humanos aprimorados? Será que em breve haverá várias classes de seres humanos: Seres humanos ordinários e seres humanos aprimorados? Qual será o valor, o preço, os direitos de um e de outro? Afligi-me pensar que em breve, talvez, alguns homens possam se sentir e se crer superiores a outros em razão de suas próteses tecnológicas.
É preciso enfatizar que esse projeto rompe a lógica médica. O que está em questão já não é mais tratar ou reparar uma natureza danificada por um acidente. Trata-se de criar, inventar uma raça nova e patenteada. João Paulo II escreveu em Fides et ratio: "Alguns homens de ciência, privados de qualquer referência ética, arriscam-se a não ter mais como centros de interesse a pessoa e sua vida como um todo. Além disso, alguns deles, conscientes das potencialidades internas do progresso tecnológico, parecem ceder, mais do que à lógica do mercado, à tentação de um poder de demiurgo sobre a natureza e sobre o próprio ser humano". Os loucos partidários da ideia de um ser humano aprimorado falam assim em estabelecer um vasto programa de melhoramento da população. Planeja-se aumentar o QI. Por meio de implantes de dispositivos no cérebro usando tecnologias computacionais, espera-se dar a alguns homens novas habilidades. Queremos tornar as pessoas aptas e eficazes. Já as técnicas de procriação artificial, triagem embrionária pré-implantação, generalização do diagnóstico pré-natal de doenças genéticas têm trazido gradativamente para as mentes das pessoas uma lógica marcada pela eugenia. Considera-se normal eliminar embriões, isto é, seres humanos muito pequenos, que não correspondem ao nosso padrão. Quem vai definir o padrão amanhã? Quem dirá se determinada pessoa é boa o suficiente ou precisa ser aprimorada? Não está o transumanismo tentando criar uma raça de senhores? Essas questões são aterradoras e nos preocupam profundamente. A terrível experiência das loucuras assassinas do século XX deveria servir de lição para nós.
Diante dessa tentação de onipotência, gostaria de expressar meu amor e meu infinito respeito pela fraqueza. Vocês, os doentes, os de corpo ou inteligência frágil, vocês que têm alguma deficiência ou malformação, vocês são grandiosos! Vocês têm uma dignidade especial, porque vocês são singularmente parecidos com o Cristo crucificado. Permitam-me dizer a vocês que toda a Igreja se ajoelha à sua frente porque vocês carregam a imagem, a presença Dele. Queremos servir a vocês, amá-los, consolá-los, apaziguá-los. Queremos também aprender com vocês. Vocês nos pregam o evangelho do sofrimento. Vocês são um tesouro. Vocês nos mostram o caminho, como recordou o cardeal Ratzinger em uma conferência realizada em um encontro internacional organizado pelo Pontifício Conselho para a Pastoral dos Serviços de Saúde: "A luz de Deus repousa sobre as pessoas que sofrem, nas quais o esplendor da Criação é obscurecido externamente; elas são de um modo muito particular semelhantes ao Cristo crucificado, ao ícone do amor, e têm certos pontos em comum com aquele que sozinho é 'a própria imagem de Deus'. Podemos atribuir-lhes a designação formulada por Tertuliano, referindo-se a Cristo: 'Por mais miserável que seja o seu corpo [...], será sempre o meu Cristo' (Adv. Marc. III, 17,2). Por maiores que sejam os seus sofrimentos, por mais desfigurados e manchados que eles sejam em sua existência humana, serão sempre os filhos privilegiados de Nosso Senhor, serão sempre, de modo particular, a imagem dele".
A Cruz é a resposta última a essa ideologia que, por fraqueza, sonha em acabar com toda a finitude: a fadiga, a dor, a doença e até a morte. Creio, pelo contrário, que a finitude assumida e amada é o coração de nossa civilização. O sonho prometeico de uma vida infinita, de um poder infinito, é um engodo, uma tentação diabólica. O transumanismo promete nos tornar "concretamente" deuses. Essa utopia é uma das mais perigosas da história da humanidade: a criatura nunca quis se distanciar tanto do Pai. As palavras de Nietzsche em A Gaia Ciência se tornam realidade: "Deus está morto! E fomos nós que o matamos! [...] O que o mundo até agora possuía de mais sagrado e mais poderoso perdeu seu sangue sob nossa faca. [...] não é magnitude deste ato grande demais para nós? Não somos simplesmente forçados a nos tornarmos deuses?".
Os homens de ciência certamente rirão de mim e de minha ignorância. Mas, como homem de fé, gostaria de proclamar, sem constrangimento nem medo, que o "super-homem" é um mito e que o projeto prometeico está fundamentalmente errado.
Paradoxalmente, essa loucura expressa a trágica nostalgia de um paraíso perdido. Antes do pecado original, o homem não conhecia a morte e permanecia eternamente perto de Deus. Parece que o homem quer recuperar, com seus próprios esforços, o bem que ele perdeu por sua própria culpa. No fundo sabemos que a morte e o sofrimento não podem ter a última palavra. Sentimos dentro de nós o chamado da eternidade e do infinito. No entanto, o homem não pode deixar de ser, devido à sua natureza humana, uma criatura infinitamente distante do Criador. O homem nunca conseguirá se unir a Deus por seus próprios esforços humanos, elevar-se a Ele e viver a vida Dele. O homem só pode viver a vida de Deus, chamada graça santificante, se Deus a der para ele como um dom totalmente gratuito. O homem não tem nenhum direito a esse dom, pois ele é pura gratuidade e amor da parte de Deus, e transcende infinitamente todas as possibilidades da natureza humana. O homem é essencialmente dependente. Ele sabe que é chamado por Deus para um propósito que está além dele. Deus quis assim, que nós não encontrássemos a plena realização de nossa felicidade nesta terra. Deus não nos criou apenas para a perfeição natural. Deus, criando-nos à sua imagem e semelhança, tinha um propósito infinitamente superior à perfeição da natureza. Nós existimos apenas para esta vida sobrenatural. É para a eternidade que Deus criou os homens.
A santidade é a máxima plenitude que nos eleva à altura de Deus. A nossa perfeição, a nossa santidade, é obra de Deus e de Sua graça. Nunca desaparecerá o abismo infinito que existe entre a ordem natural e a ordem sobrenatural, entre a vida da natureza humana e a vida da graça, que é a própria vida de Deus dada aos homens. A santidade assume a natureza e não a contradiz, mas a supera infinitamente.
A Igreja prolonga a missão de Cristo, que busca levar o homem à perfeição, à sua divinização: "Lembrai-vos dos vossos dirigentes, que vos anunciaram a palavra de Deus. Considerai como terminou a vida deles, e imitai-lhes a fé. Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje; ele o será para a eternidade! Não vos deixeis enganar por doutrinas ecléticas e estranhas" (Hb 13,7-9).
1. "Humanidade aprimorada" e "homem aprimorado" traduzem, respectivamente, humanité augmentée e homme augmenté (lit.:"humanidade aumentada" e "homem aumentado"). Essas expressões resumem as pretensões do chamado movimento "transumanista" cujas teses fundamentais foram criticadas no documento Comunión y corresponsabilidad: Personas humanas creadas a imagem de Dios da Comissão Teológica Internacional da Santa Sé (2002) (N.T.).
Cardeal Robert Sarah e Nicolas Diat - A noite se aproxima e o dia já declinou. Ed. Fons Sapientiae, p. 200-7.
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