São Bernardo de Claraval
1. Como, por meio das boas obras, deve-se manter a consciência limpa e pura
Esta casa corporal em que habitamos ameaça ruína por todos os lados; e como há de cair e até dissolver-se dentro de pouco tempo, necessita que nos dediquemos a construir outra. Volvamos, pois, a nós mesmos, sacudamos e sondemos cuidadosamente nossa consciência. Nosso corpo é a tenda de onde, servindo a Deus, combatemos contra os vícios; a consciência é a casa da qual, se formos vitoriosos, poderemos descansar depois da batalha.
Mas, para edificar a casa da consciência é necessário que lutemos valorosamente, que não desfaleçamos no combate com nosso corpo. "Trabalha e cultiva com esmero teu campo - disse Salomão - para que possas depois edificar tua casa". Este campo é nosso corpo, cujos sentidos e inclinações, se bem os empregamos, submetendo-os ao domínio da alma, devem constantemente dirigir-se à prática das virtudes, para a qual é indispensável que o corpo seja servo da alma, e a alma viva submetida a Deus: este é o procedimento único de edificação da consciência em nosso interior, para obter a satisfação das faltas cometidas e para evitar os males presentes. A verdadeira satisfação consiste em corrigir os males que fizemos e jamais voltar a neles reincidir.
A consciência é perpétua e, como a alma, não tem fim; pois bem, a alma, que é imortal, não pode existir sem a consciência. A consciência será indefectivelmente a glória ou a confusão inevitável de cada um, conforme a qualidade das coisas que nela deposite. A consciência, pois, morada perpétua da alma, requer ser purificada primeiro, e solidamente edificada depois. Quem a purificará? Deus e o homem: o homem, por meio de seus pensamentos e afeições. Deus, por sua misericórdia e por sua graça. Pensamentos e afetos são necessários na purificação da consciência: os pensamentos para a investigação da verdade, os afetos para a prática da virtude. Algumas vezes, a misericórdia divina apaga o pecado e nos dá força para resisti-lo; em outras, afasta de nós a ocasião de pecar e nos deixar certa amargura por não ter lutado e triunfado sobre o mal; com frequência corrige nosso afeto, isto é, nosso desejo, inclinado ao pecado e debilitado pelo prazer, por causa do deleite que usufruiu pecando. A graça ajuda-nos a fazer o bem, a evitar o mal e ensina-nos a distinguir um do outro.
Que o homem, estimulado pela verdade, reconheça e confesse seus pecados: Deus inclina-se sempre à misericórdia para com quem sinceramente se confessa. Na confissão está toda, esperança de perdão; ninguém pode ser justificado sem que antes confesse sua culpa; porque o homem começa a ser justo exatamente quando se acusa a si mesmo. Ditosa a consciência na qual se tenha encontrado a misericórdia e a verdade, na qual se deem estreito abraço a justiça e a paz! A verdade por parte do penitente e a misericórdia de Deus ter-se-ão encontrado nessa consciência, porque é indefectível esta misericórdia em quem realmente se conhece a si mesmo. O ósculo da justiça consiste em amar os inimigos; em abandonar a família e bens, tudo quanto se possua, por amor a Deus; em sofrer pacientemente as injustiças; em fugir em tudo e por tudo da falsa glória pessoal. O beijo da paz consiste em convidar com ela todos que a odeiam; em chamar à concórdia os que estão desunidos, em suportar pacificamente os próprios inimigos; em instruir com bondade os ignorantes; em consolar com doçura os aflitos; na tribulação, aos que choram e, por último, em viver em paz e fraternidade com todos. Feliz a alma que foi confirmada na paz da Cristo, fortalecida no amor de Deus! Virão as batalhas do exterior: não conseguirão turbar o silêncio, a calma, a doçura da paz interior que a alma goza e na qual concentrou todos os seus desejos; virão as tentações: não conseguirão corromper, pelos apetites da carne, sua vontade; porque a alma possui já em si mesma tudo o que constitui sua felicidade, suas delícias; e, desta maneira purificada, quando se recolhe em seu gozo interno, já está refeita à imagem de Deus, a quem em si própria honra. E os anjos e os arcanjos virão frequentemente visitá-la, render-lhe homenagem, como templo de Deus e morada do Espírito Santo.
Transformai-vos, pois, em templo de Deus, e o Altíssimo habitará em vós; porque a alma que tem Deus em si mesma, é templo de Deus e nela são celebrados os divinos mistérios. Mas se a alma não se esforça por viver em si mesma, em concentrar no amor de Deus todos seus desejos, haverá de sair ao exterior, e pela vista, pelo ouvido, pelos demais sentidos corporais, se deleitará nas coisas mundanas, exteriores a ela. E, neste caso, que lhe acontecerá quando encontre todas as portas dos sentidos do corpo fechadas? Então, se internado novamente em si mesma, encontrar-se-á de confusão e de horror. Por ter-se deleitado nos consolos do mundo, não encontrará a consolação interior, que somente Deus dá: Deus não se dignará visitá-la, e a alma angustiada pelo peso de sua própria consciência não poderá suportar-se a si mesma. Não encontrará o desejado repouso porque abandonou Aquele em que unicamente deveria repousar e habitar.
Encontrai-vos hoje na companhia e sociedade dos homens: pensai que não sempre havereis de estar com eles e, enquanto viveis, buscai por companheiro o único que não vos abandonará nos dias de angústia, quando tudo vos seja tirado, mas que permanece eternamente fiel àqueles que o amam: Deus, que é vosso Deus; só e Ele deveis buscar. Abandonai, pois, todas as distrações do coração, todas as flutuações de vosso espírito; assentai apenas em Deus vossos firmes desejos e aspirações; que vosso coração se encontre constantemente ali onde está vosso mais apetecível e desejado tesouro.
Deus habita com agrado na tranquilidade dos corações, nas almas sossegadas e em calma: Ele mesmo é a paz e na paz tem sua morada. Fazei-vos, pois, tais, que Deus esteja sempre convosco, que convosco vá e viaje, que regresse convosco, que jamais vos veja separados d'Ele. Não vos abandonará, se vós mesmos não o abandoneis; onde quer que vós vades não vos encontrareis a sós se Deus está convosco. Purificai vossa consciência, a fim de que Deus se digne habitar em vós, encontre sua morada limpa e convenientemente disposta; porque ele mesmo disse: "Edificai-me um santuário e nele morarei entre vós".
Esforcemo-nos, pois, em construir em nós mesmos o templo de Deus, para que Deus habite primeiro em cada um de nós, depois em nós todos. Necessita, para isso, que cada qual não esteja em desacordo consigo mesmo; porque todo reino intestinamente dividido será desolado e suas casas cairão umas sobre as outras: Jesus Cristo não entrará na casa cujos muros estejam caídos ou ameaçem ruína. A alma deve possuir a casa de seu corpo, completa, intacta, e sairá indefectivemente dela se os membros do corpo não estiverem íntegros ou se encontrem desunidos. Cuide, portanto, com grande zelo, a alma desejosa de que Jesus Cristo nela habite, que seus membros não estejam discordantes entre si, seus membros, isto é, o entendimento, a vontade e a memória; porque, para preparar em nosso interior uma habitação digna de Deus, é necessário, que a razão não se encontre extraviada, nem pervertida a vontade, nem manchada a memória: em outros termos, é indispensável possuir entendimento reto, vontade boa e pronta, memória limpa e pura. Feliz a alma que se aplique a purificar de toda mancha de pecado a casa de seu coração e a enchê-la de obras santas e justas! Porque já não apenas os anjos, mas também o próprio Senhor dos anjos se deleitará em nela vir, e habitá-la. E não basta apenas purificar essa casa interior do que tenha de mal: é necessário enchê-la de coisas boas, para que não seja preciso nada buscar fora dela, uma vez abandonadas todas as coisas exteriores.
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São Bernardo de Claraval - Tratado da Consciência ou do Conhecimento de si mesmo.
Editora Nebil, 2015. pág. 17-26.
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