quinta-feira, 12 de outubro de 2023

A Natividade da Bem-aventurada Virgem Maria

 A gloriosa Virgem Maria nasceu da estirpe régia de Davi na tribo de Judá. Mateus e Lucas não descrevem a genealogia de Maria, e sim de José, que nada teve com a concepção de Cristo, devido ao costume da Escritura de mostrar o encadeamento das gerações não a partir de mulheres, mas de homens. É verdade, contudo, que a beata Virgem descende de Davi, o que fica patente na Escritura quando atesta muitas vezes que Cristo originou-se da semente de Davi. Logo, como Cristo nasceu apenas da Virgem, é claro que a própria Virgem nasceu de Davi, do ramo de Natã. 

Davi teve, entre outros, dois filhos, Natã e Salomão. Como certifica João Damasceno, Levi - do ramo de Natã, filho de Davi - gerou Melque e Pantar, Pantar gerou Barpantar e Barpantar gerou Joaquim e Joaquim a Virgem Maria. Do ramo de Salomão, uma filha foi esposa de Natã com o qual gerou Jacó. Falecido Natã, um membro da sua tribo, Melque, filho de Levi, irmão de Pantar, casou com a viúva de Natã, mãe de Jacó, e dela gerou Eli. Assim, Jacó e Eli são irmãos uterinos, mas Jacó sendo da tribo de Salomão e Eli da de Natã. Falecido Eli, da tribo de Natã, sem filhos e filhas, Jacó seu irmão, que era da tribo de Salomão, tomou sua mulher e ressuscitou a semente de seu irmão, gerando José. Portanto, José é segundo a natureza filho de Jacó, descendente de Salomão, e segundo a lei filho de Eli, descendente de Natã. De fato, o filho nascido dessa forma era daquele que o gerava segundo a natureza e do defunto segundo a lei. Até aqui, falou Damasceno.

Diz a HISTÓRIA ECLESIÁSTICA e atesta BEDA em sua Crônica que, como todas as genealogias dos hebreus e dos estrangeiros estavam secretamente guardadas nos arquivos do templo, Herodes mandou queimá-las pensando que com falta de provas poderia fazer acreditar que sua ascendência era de Israel e que ele era nobre. Contudo aqueles nazarenos, chamados "senhoriais" por seu parentesco com Cristo, restabeleceram a genealogia de Cristo, em parte seguindo o que diziam os antepassados e em parte seguindo os livros que tinham em casa.

Joaquim tomou uma mulher de nome Ana, que tinha uma irmã chamada Isméria. Esta Isméria gerou Isabel e Eliúde, e Isabel gerou João Batista. De Eliúde nasceu Eminem, de Eminem nasceu São Servácio, cujo corpo está em Maastricht, fortaleza à margem do Mosa, no episcopado de Liège. Conta-se que Ana teve três maridos, a saber, Joaquim, Cleofas e Salomé. Do primeiro destes maridos, quer dizer, Joaquim, teve uma filha, Maria, mãe e progenitora do Senhor, que deu em casamento a José e que gerou e pariu o Senhor Cristo. Falecido Joaquim, Ana aceitou Cleofas, irmão de José, e dele gerou outra filha, chamada pelo mesmo nome de Maria e que uniu em casamento a Alfeu. Esta Maria gerou de seu marido Alfeu quatro filhos, a saber, Tiago, o Menor, José, o Justo, conhecido como Barsabás, Simão e Judas. Falecido seu segundo marido, Ana aceitou um terceiro, Salomé, do qual gerou outra filha, chamada mais uma vez Maria e deu-a em casamento a Zebedeu. Esta Maria gerou dois filhos de seu marido Zebedeu, a saber, Tiago, o Maior, e João Evangelista. Daí os versos a este respeito:

Tem-se o costume de dizer que Ana concebeu três Marias,

Geradas de seus maridos Joaquim, Cleofas e Salomé.

Elas foram entregues a José, Alfeu e Zebedeu, seus maridos.

A primeira pariu Cristo, a segunda Tiago, o Menor,

José, o Justo, Simão e Judas.

A terceira Tiago, o Maior, e o alado João.


Mas o admirável, como dito acima, é como a bem-aventurada Maria pôde ser prima de Isabel. Sabe-se que Isabel foi mulher de Zacarias, da tribo de Levi, pois segundo a lei todos deveriam ter esposa de sua tribo e família, e foi atestado por Lucas que Isabel estava entre as filhas de Aarão. Ana, segundo Jerônimo, era de Belém e da tribo de Judá. Mas sabe-se que Aarão e seu irmão, o sumo sacerdote Joiada, tomaram ambos esposas da tribo de Judá, de forma que a tribo sacerdotal passaram a estar ligadas pelo sangue. Pode ser, como afirma Beda, que este tipo de relação com a troca de mulheres entre as tribos fosse recente. De toda forma, a beata Maria, descendente da tribo régia, tinha relações consanguíneas com a tribo sacerdotal, e deste modo pertencia a ambas as tribos. 

Quis o Senhor que estas tribos privilegiadas se miscigenassem, porque no seu mistério estava para nascer delas aquele que verdadeiramente foi rei e sacerdote, que se sacrificou por nós e que dirige seus fiéis em meio à malícia das lutas desta vida, para coroá-los após a vitória. Daí o nome de Cristo, isto é, "ungido", "escolhido", pois na antiga lei apenas os sacerdotes, reis e profetas eram ungidos, e por isso nós somos chamados "cristãos", "povo eleito", e "povo do sacerdócio real". Quando se diz que as mulheres uniam-se com os homens de sua tribo, era para que a distribuição as terras não fossem alteradas, mas como a tribo dos levitas, ao contrário das outras, não tinha terra, as mulheres desta tribo podiam casar com quem quisessem.

No prólogo da História da Natividade da Virgem, o bem-aventurado Jerônimo conta o que ainda adolescente leu em um opúsculo, mas que só muito tempo depois releu e a pedido transcreveu. Joaquim era da Galiléia, da cidade de Nazaré, e tomou como esposa Santa Ana, de Belém. Ambos eram justos e seguiam irreprensivelmente todos os mandamentos do Senhor, dividindo em três partes todos os seus bens, uma destinada ao templo e seus servidores, outras aos peregrinos e pobres, e a terceira reservada para eles e sua família. Como por vinte anos não tiveram filhos fizeram uma promessa ao Senhor, que se este lhes concedesse descendência eles a entregariam a Seu serviço. A fim de obterem a graça do Rei, iam todos os anos às três principais festas em Jerusalém.

Na festa da Dedicação, Joaquim foi com os outros de sua tribo até Jerusalém e ao chegar ao altar quis oferecer sua oblação junto com os demias. Vendo isso cheio de indignação, o sacerdote agarrou-o, afastou-o e repreendeu sua presunção de se aproximar do altar, porque não era conveniente, sob pena de maldição da lei, que oferecesse oblações ao Senhor quem não tivesse feito crescer o povo de Deus, quem era infecundo entre os fecundos. Confuso e envergonhado, Joaquim não quis voltar para casa a fim de não ouvir ofensas. Ele afastou-se, foi para junto de seus pastores e ficou com eles por algum tempo, até que um dia, estando sozinho, um anjo apareceu com tão forte luminosidade que deixou sua visão turva. 

O anjo avisou para não ter medo, dizendo:

Eu sou o anjo do Senhor enviado para anunciar que suas preces foram ouvidas e que suas esmolas subiram até o Senhor. Vi a sua vergonha ouvi o opróbio de esterilidade que foi injustamente imputado a você. Deus vinga o pecado mas não a natureza, por isso se Ele fecha um útero o faz para abri-lo novamente de maneira maravilhosa, para que saiba que o nascido não é produto libidinoso, mas presente divino. Não é verdade que Sara, a primeira mãe de seu povo, suportou a injúrias da esterilidade até os noventa anos de idade e ainda assim gerou Isaac, ao qual foi prometida a bênção de todas as nações? Não é verdade que Raquel foi estéril por muito tempo, e contudo gerou José, que teve domínio sobre todo o Egito? Há alguém mais forte do que Sansão ou mais santo do que Samuel? Todavia ambos nasceram de mães estéreis. Creia em minhas considerações e exemplos. As concepções adiadas por muito tempo e os partos de quem parecia estéril são os mais admiráveis. Também sua esposa Ana parirá uma filha e você lhe dará o nome de Maria. De acordo com a promessa que fizeram, ela será consagrada ao Senhor desde a infância. Desde o útero de sua mãe será cheia do Espírito Santo. A fim de que não haja qualquer suspeita que lhe seja desfavorável, não terá contado com o mundo, ficará sempre morando no templo do Senhor. Ela própria, nascida de mãe estéril, gerará maravilhosamente seu filho altíssimo, cujo nome será Jesus e por meio do qual todos os povos serão salvos. Dou a você uma prova: quando chegar à porta dourada de Jerusalém, sua esposa Ana virá ao seu encontro, e de inquieta com sua demora ela passará a demonstrar alegria!


Dito isso, o anjo retirou-se. 

Ana chorava amargamente por ignorar aonde seu marido tinha ido, quando o mesmo anjo lhe apareceu e anunciou a mesma coisa, acrescentando como prova que fosse à porta dourada de Jerusalém onde encontraria o marido indo em sua direção. Logo, seguindo o preceito do anjo, um foi ao encontro do outro, felizes com a visão mútua e certos da prole prometida. Voltaram para casa, depois de adorar o Senhor, esperando alegremente a promessa divina.




Então Ana concebeu e deu à luz uma filha, à qual chamou Maria. Completados os três anos de amamentação, levaram a Virgem com oferendas ao templo do Senhor. O templo fora construído em um monte, com o altar do holocausto sendo externo e só podendo ser atingido depois de se subir quinze degraus, correspondentes aos quinze salmos graduais¹. Quando a jovenzíssima Virgem foi colocada junto com os outros, subiu sem a ajuda de ninguém, como se já fosse adulta. Concluído o ofertório, Joaquim e Ana voltaram para casa deixando sua filha com outras virgens no templo.

A Virgem, por seu lado, progredia cotidianamente em todo tipo de santidade. Cotidianamente era visitada por anjos e desfrutava de visões divinas. Jerônimo diz em uma carta a Cromácio e Heliodoro que a beata Virgem estabelecera para si esta regra: de matinas até à terça, oração; da terça até a nona, trabalho manual de tecelã; da nona até aparecer o anjo que lhe dava alimento, novamente orações.²

Quando ela fez catorze anos, o pontífice proclamou publicamente que as virgens que era instruídas no templo e haviam atingido aquela idade deveriam voltar para suas casas a fim de serem legitimamente casadas. Diante desta ordem todas partiram, apenas a bem-aventurada Virgem Maria respondeu que não podia fazê-lo, pois seus pais haviam-na entregue ao serviço do Senhor e prometido a Ele a virgindade dela. O pontífice ficou angustiado, porque não queria ir contra a Escritura que diz: "Prometa e cumpra o prometido"³, nem ousava introduzir novidade nos costumes do povo. Ao aproximar-se uma festividade dos judeus, convocou todos os anciãos e a sentença unânime foi que em assuntos tão duvidoso deveria ser buscado o conselho do Senhor. Eles permaneceram em oração, e quando o pontífice dirigiu-se ao oratório para consultar o Senhor, todos ouviram vindo dali uma voz dizer: "Todos os homens da casa de Davi que não estão convenientemente unidos em casamento devem levar um ramo ao altar, e aquele cujo ramo germinar e em cuja ponta o Espírito Santo pousar em forma de pomba, conforme profetizou Isaías, deve sem qualquer dúvida desposar a Virgem".

Entre os membros da casa de Davi estava José, ao qual pareceu inconveniente que um homem de idade tão avançada** tomasse como esposa uma virgem tão jovem. Assim, enquanto os demais levavam seus ramos, ele escondeu o seu. Como não aconteceu nada de acordo com o que a voz divina anunciara, o pontífice mais uma vez decidiu consultar o Senhor, que respondeu que somente aquele que não levara sua vara deveria desposar a Virgem. Diante disso José levou sua vara, que floresceu e em cujo topo pousou uma pomba vinda do Céu. Ficou evidente para todos que ele deveria desposar a Virgem. Combinado portanto o casamento com a Virgem, José voltou para sua casa na cidade de Belém para tomar as providências necessárias para as núpcias. Quanto à Virgem Maria, voltou para a casa de seus pais em Nazaré acompanhada, por determinação do sacerdote, como testemunha do milagre, por sete colegas, virgens da mesma idade que ela. Por aqueles dias o anjo Gabriel apareceu a ela enquanto orava e anunciou que dela nasceria o filho de Deus. 

Durante muito tempo, a data do nascimento da Virgem escondida dos fiéis. JOÃO BELETH conta da seguinte maneira como ela foi descoberta: certo homem santo, constante na contemplação, ouvia todos os anos, no dia 8 de setembro, uma alegríssima celebração por parte da comunidade dos anjos. Com muita devoção, ele pedia que lhe fosse revelado por que ouvia aquilo naquele dia do ano e não em outro, e recebeu a resposta divina: aquele era o dia em que a gloriosa Virgem Maria havia nascido no mundo, e ele deveria divulgar o fato aos filhos da Santa Igreja a fim de que se reunisse à corte celeste nesta celebração. Ele comunicou isso ao sumo pontífice e outros prelados, que por meio de orações e jejuns descobriram a verdade das Escrituras e em antigas tradições, dedicando em todo mundo este dia para a celebração da natividade da Virgem. 

Antigamente, a oitava4 da natividade da beata Maria não era celebrada, mas o senhor Inocêncio IV, de origem genovesa, instituiu tal celebração. A causa disto foi que com a morte de Gregório IX todos os cardeais fecharam-se em conclave para rapidamente escolherem um novo chefe da Igreja5. Mas como por vários dias não puderam chegar a um acordo e eram muitos pressionados pelos romanos, prometeram à Rainha do Céu que se pelos méritos dela eles viessem a concordar e pudessem sair dali livremente, estabeleceriam a celebração da oitava de sua natividade negligenciada por tanto tempo. Eles concordaram em escolher o senhor Celestino e foram libertados. No entanto Celestino viveu pouco tempo e por isso não pôde cumprir a promessa, o que foi feito por Inocêncio IV. Note-se que a Igreja celebra três natividades, a saber, a de Cristo, a de Santa Maria e a de João Batista, que designam três natividades espirituais: renascemos com João pela água, com Maria pela penitência e com Cristo na glória. Em relação aos adultos, convém que a natividade da contrição preceda a natividade do batismo e da glória. Por isso estas duas festas merecem ter vigílias, mas como a natividade da Virgem é penitência, e portanto toda orientada para a vigília, não precisa ter vigília. Todas têm oitavas porque na verdade todas anseiam pela oitava da Ressureição. 

2. Um cavaleiro muito valente e muito devoto da beata Maria ia a um torneio, e ao encontrar no caminho o primeiro mosteiro construído em honra da bem-aventurada Virgem, entrou para ouvir missa. Como a uma missa seguia-se outra, ele não quis deixar de honrar a Virgem, e quando enfim saiu do mosteiro dirigiu-se rapidamente para o local do torneio. No caminho encontrou alguns que voltavam do torneio e comentavam como ele havia lutado valentemente. Mais adiante outros aclamavam sua valentia militar e aqueles que tinham sido capturados por ele rendiam-se inteiramente. Ele entendeu então que a gentil rainha o honrara, contou o que acontecera e voltando ao mosteiro entrou ao serviço do filho da Virgem. 

3. Um bispo que tinha extrema reverência e devoção pela beata Virgem dirigia-se no meio da noite, por devoção, a um igreja da bem-aventurada Maria. Então a Virgem das virgens, acompanhada de todo o coro das virgens, foi até ele e com extrema honra conduziu-o à igreja para a qual se encaminhava. Quando começou a conduzi-lo, duas jovens do coro entoaram um prelúdio: "Cantemos ao Senhor, companheiras, cantemos em sua honra,/ Que nossas bocas ressoem piamente o doce amor de Cristo!".

Este versos foram repetidos pelo coro de virgens, e a seguir as duas primeiras cantavam os seguintes versos: "Por sua grande luz, o primeiro soberbo foi precipitado no abismo,/ E arrastou consigo o primeiro homem".

Assim, a procissão conduziu o homem de Deus até a igreja, com as duas jovens sempre reiniciando o canto e as demais respondendo.

4. Uma mulher sozinha, abandonada por seu marido, tinha um único filho, ao qual amava ternamente. Este filho foi capturado pelos inimigos, que o prenderam e acorrentaram. Ao saber da notícia, ela chorou inconsolavelmente e orou pela libertação de seu filho à beata Virgem, da qual era muito devota. Enfim, vendo que não conseguia nada, entrou sozinha na igreja em que estava esculpida a imagem da beata Maria e em pé diante dela disse: "Bem-aventurada Virgem, pedi muitas vezes a você pela libertação de meu filho, sem nenhum resultado. Então, assim como meu filho me foi tirado, eu também tomo o seu e o manterei preso como penhor pelo meu filho". Dizendo isso, chegou mais perto e retirou a imagem do menino que a Virgem segurava no colo e foi para casa. Ali envolveu a imagem do menino em linho branquíssimo, escondeu-a em uma arca que fechou cuidadosamente à chave e guardou-a diligentemente, feliz por ter um bom refém por seu filho. Então na noite seguinte a bem-aventurada Virgem apareceu ao jovem e abrindo a porta do cárcere disse que saísse dali e recomendou: "Filho, diga a sua mãe e contou como a beata Virgem o libertara. Ela, por sua vez, exultante, pegou a imagem do menino e, indo à igreja da beata Maria, devolveu o filho desta dizendo: "Agradeço, Senhora, por ter devolvido meu único filho, e então devolvo o seu". 

5. Havia um ladrão que realizava frequentes roubos mas tinha muita devoção pela beata Maria, a quem sempre saudava. Quando ele foi enforcado, a bem-aventurada Virgem com suas mãos manteve-o suspenso por três dias e ele não sofreu ferimento algum. Passando pelo local acaso, e encontrando-o vivo e com rosto alegre, os que o haviam enforcado julgaram que não haviam apertado bem o laço e quiseram degolá-lo com a espada, mas a beata Maria impediu segurando a espada e eles não puderam lhe fazer mal. Quando souberam que a beata Virgem que o socorria, ficaram admirados e por amor à Virgem soltaram-no e deixaram-no partir livre. O ladrão entrou em um mosteiro e enquanto viveu permaneceu ao serviço da mãe de Deus.

6. Havia um clérigo que, muito atencioso com a beata Maria, jamais deixava de cantar as horas dedicadas a ela. Falecidos seus pais sem terem outro herdeiro, deixaram-lhe suas terras. Os amigos incentivaram-no a arrumar uma esposa e a administrar sua herança. No dia em que devia celebrar suas núpcias, encontrou no caminho uma igreja e recordando seus serviços à bem-aventurada Virgem entrou nela e começou a dizer suas horas. Nesse momento apareceu-lhe a beata Maria e repreendeu-o severamente: "Ó insensato e infiel, por que você me abandona, sua amiga e esposa, e prefere outra mulher a mim?". Ele encontrou seus companheiros, compungido, mas dissimulou o ocorrido, celebrou as núpcias e, no meio da noite, abandonou todos e fugiu de casa para entrar em um mosteiro e servir devotamente a beata Maria. 

7. O sacerdote de uma paróquia, pessoa de vida honesta, não sabia outra missa a não ser a da beata Maria, que ele repetia diligentemente em sua honra. Foi denunciado por causa disso ao bispo, que mandou chamá-lo imediatamente. Como disse que realmente desconhecia outra missa, o bispo qualificou-o duramente como enganador, suspendeu-o de suas obrigações e proibiu-o de rezar aquela missa dali em diante. Na noite seguinte a bem-aventurada Maria apareceu ao bispo, repreendeu-o severamente e perguntou por que tratara mal seu devoto, acrescentando que morreria em trinta dias se não readmitisse o sacerdote em seu ofício. Apavorado, o bispo mandou chamar o presbítero, pediu perdão e ordenou que não celebrasse nenhuma outra missa a não ser a que sabia, a da bem-aventurada Maria. 

8. Um clérigo fútil e lúbrico, mas que amava muito a mãe de Deus e cantava suas horas santas devota e vivamente, certa noite viu-se em visão diante do tribunal de Deus. O Senhor disse aos que o rodeavam: "Quanto a este que os observa, decidam de que sentença ele é digno. Há muito tempo o tolero e não encontrei nele nenhum sinal de arrependimento". Então, com a aprovação de todos, o Senhor proclamou contra ele a sentença da danação. A bem-aventurada Virgem levantou-se e disse a seu filho: "Rogo sua clemência por ele, piedoso filho, a fim de que mitigue a sentença de danação. Se bem que tenha sido conduzido à morte por seus próprios méritos, que viva pelos serviços prestados a mim". O Senhor: "Aceito sua petição, desde que a partir de agora eu veja que ele se corrigiu". A Virgem voltou-se para o homem e disse: "Vá e não peque mais, para que não aconteça o pior com você". Ao acordar ele mudou de vida, tornou-se monge e acabou sua vida em boas obras.

9. Como conta o bispo FULBERTO DE CHARTRES, no ano do Senhor de 537 havia na Sicília um homem de nome Teófilo que administrava os bens eclesiásticos de forma tão prudente, que falecido o bispo todo o povo o aclamou como digno para o episcopado. Mas ele estava contente com sua função e preferiu que ordenassem outro como bispo, mas este o destituiu de seu ofício. Impaciente por recuperar seu cargo, ele procurou o conselho de um judeu especialista em magia. Este invocou o diabo, que logo apareceu. Por ordem do demônio, Teófilo renegou Cristo e sua mãe, renunciou à condição de cristão, escreveu com seu próprio sangue a renúncia e a abjuração, selou-o com seu anel, entregou o escrito selado ao demônio e entrou a seu serviço. Na manhã seguinte, por obra do demônio, Teófilo recuperou a graça do bispo e a dignidade de suas funções.Quando finalmente caiu em si, lamentou muito o que fizera. Recorreu a toda devoção de seu espírito a fim de que a gloriosa Virgem viesse em seu socorro. A beata Maria apareceu a ele e visão, criticou sua impiedade e mandou que renunciasse ao diabo. Fez com que reconhecesse que Cristo era o filho de Deus e aceitasse todas as proposições do cristianismo. Dessa forma Teófilo recuperou a graça dela e de seu Filho. Como indício de que ele recebera perdão, ela apareceu de novo, agora com o manuscrito que entregara ao diabo, devolveu-o e colocou-o sobre o peito dele a fim de que não temesse mais ser escravo do diabo e sim que se alegrasse por ter sido libertado pela Virgem. Depois de receber o papel, exultante, Teófilo contou ao bispo e a todo o povo o que acontecera. Admirados, todos louvaram a gloriosa Virgem. Três dias mais tarde Teófilo descansou em paz. 

10. Um homem e sua esposa tinham uma única filha, que deram em casamento a um jovem, e por amor a ela mantinham o genro em sua casa. Por amor à filha, a mãe cuidava tão carinhosamente do jovem, que o amor da moça por ele não era maior que o amor da sogra pelo genro. Enquanto isso, começaram a falar maliciosamente que a sogra levara o genro para sua casa não pela filha, mas por si mesma. Com a alma agitada com tanta mentira, temendo tornar-se assunto do povo, a mulher ofereceu a dois camponeses vinte moedas a cada um para que estrangulassem o genro secretamente. Assim, certo dia ela escondeu os camponeses no celeiro, mandou o marido fazer algo em outro lugar e enviou a filha para outro lado. O jovem ao entrar no celeiro onde sua senhora o mandara pegar vinho, foi imediatamente estrangulado pelos camponeses. Logo depois, a sogra o colocou no leito da filha, vestido como se estivesse dormindo.

Assim que o marido e a filha voltaram e sentaram à mesa, a mãe mandou-a acordar o marido e chamá-lo para comer. Quando o encontrou morto e anunciou o fato a todos, a família prorrompeu em lamentos, e a homicida, fingindo estar aflita, lamentava-se com os demais. Mas enfim a mulher realmente deplorou o crime perpetrado e confessou tudo a um sacerdote. Algum tempo depois surgiu uma desavença entre a mulher e o sacerdote, e este a acusou pelo homicídio do genro.6

Quando a notícia chegou aos parentes do jovem, a mulher foi levada a julgamento e condenada a ser queimada. Diante de seu fim iminente, decidiu voltar-se para a beata Virgem e, entrando em uma de suas igrejas, prostou-se em oração, com lágrimas. Um pouco depois, obrigada a sair, foi jogada em uma grande fogueira onde todos a viram permanecer ilesa e incólume. 

Os parentes do jovem acharam que o fogo estava fraco, aproximaram-se e jogaram sarmento na fogueira, mas vendo que nem assim ela era atingida, começaram a atacá-la com lanças e dardos. Fortemente impressionado, o juiz que estava ali impediu tais ataques, examinou a mulher com atenção e não encontrou nela sinal do fogo, apenas feridas de lanças. Seus parentes levaram-na para casa e reanimaram-na com remédios e banhos. Deus não querendo que ela fosse desonrada pelas suspeitas humanas por mais tempo, depois de três dias - durante os quais louvou a Virgem com perseverança - afastou-a desta vida.






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1. A palavra "gradual" deriva de gradus, "degrau", indicando a subida que os judeus faziam até o templo cantando determinados salmos (os de número 119 a 133). Na liturgia romana, os salmos graduais (que podem ser aqueles, ou outros) eram cantados na missa entre a leitura da Epístola e do Evangelho, e assim se organizou o Gradual, livro de canto gregoriano utilizado na missa.

2. Sobre as horas canônicas, ver nota 5 do capítulo 2.

3. Números 30,2. 

4. Conforme nota 2 do Prólogo.

5. Conforme nota 1  do capítulo 22. 

6. Estranho esse relato de Jacopo, pois o segredo da confissão sempre foi extremamente preservado. Conhece-se, por exemplo, a história de um cavaleiro que matou um homem, revelou o crime ao padre e este o denunciou ao príncipe esperando ser recompensado. Diante da ruptura da norma, o príncipe perdoou o assassino e mandou cegar e cortar a língua do sacerdote que não mantivera a confidência do confessionário: F.C. Tubach, Index exemplorum: a handbook of medieval religious tales. Helsinki, 1969, n. 1203.

** A tradição conta a história de duas formas, S. José como um velho de idade avançada e S. José como um rapaz novo. O mais provável mesmo é que S. José fosse um rapaz novo, preparado por Deus para proteger a Virgem Santíssima e o Menino Jesus dos perigos que os rondariam por anos a fio. 


Fonte: Legenda Áurea - Jacopo de Varazze


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