quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Vida de oração - Introdução

A ORAÇÃO 

Santo Afonso Maria de Ligório

(1696-1787)

Bispo e Doutor da Igreja

Editora Santuário




 Ao Verbo Encarnado

Jesus Cristo


DILETO DO ETERNO PAI, 

BENDITO DO SENHOR, AUTOR DA VIDA,

REI DA GLÓRIA, SALVADOR DO MUNDO, 

DESEJADO DAS NAÇÕES,

DESEJO DAS COLINAS ETERNAS, 

PÃO CELESTE, JUIZ UNIVERSAL,

MEDIANEIRO ENTRE DEUS E OS HOMENS,

MESTRE DA VIRTUDE, 

CORDEIRO SEM MANCHA, 

HOMEM DAS DORES, SACERDOTE ETERNO, 

VÍTIMA DE AMOR, FONTE DE GRAÇA,

BOM PASTOR, AMANTE DAS ALMAS,


dedico esta obra Afonso, pecador.





INTRODUÇÃO

1. Publiquei várias obras espirituais. Penso, entretanto, não ter escrito obra mais útil do que esta, na qual trato da oração, porque a oração é o meio necessário e certo de alcançarmos todas as graças necessárias para a salvação. Se me fosse possível, faria imprimir tantos exemplares deste livro quantos são os fiéis de todo o mundo. Daria um exemplar a cada um, a fim de que todos pudessem compreender a necessidade que temos de orar para nos salvar.

2. Falo assim porque vejo, de um lado, a absoluta necessidade da oração, tão altamente recomendada pelas Santas Escrituras e por todos os santos Padres. E de outro lado, vejo que poucos cuidam de empregar este grande meio de salvação. E o que mais me causa dor é ver que pregadores e confessores tão pouco se lembram de recomendar a oração a seus ouvintes penitentes! Mesmo os livros espirituais, que hoje em dia andam nas mãos dos fiéis, não tratam suficientemente desse assunto, quando é certo que todos os pregadores e confessores e todos os livros não deveriam incutir nada com mais empenho e afinco do que a necessidade de rezar. 

Ensinam às almas tantos meios de se conservarem na graça de Deus, como fugir das ocasiões, frequentar os sacramentos, resistir às tentações, ouvir a Palavra de Deus, meditar nas verdades eternas e outros tantos meios, todos eles, certamente de muita utilidade. Digo, porém: de que servem as pregações, as meditações e todos os outros meios aconselhados pelos mestres da vida espiritual, se faltar oração, quando é certo que o Senhor diz não "conceder suas graças, senão a quem pedir?" "Pedi e recebereis" (Mt 7,7).

Sem a oração, segundo a providência ordinária de Deus, serão inúteis todas as meditações, todos os propósitos e todas as promessas. Se não rezarmos, seremos infiéis a todas as luzes recebidas e a todas as nossas promessas. A razão é a seguinte: para fazer atualmente o bem, para vencer as tentações e para praticar a virtude, numa palavra, para observar inteiramente todos os preceitos divinos, não bastam as luzes recebidas anteriormente, nem as meditações e os propósitos que fizemos. É necessário ainda o auxílio de Deus. E este auxílio atual, como logo veremos, Deus não o concede senão a quem reza e reza com perseverança. As luzes recebidas, as considerações e os bons propósitos que fazemos, servem para que rezemos nas ocasiões iminentes de desobedecer à lei divina e, assim, possamos obter o socorro divino, que nos conservará incólumes do pecado. Sem isto, sucumbiremos. 

3. Eu queria, amigo leitor, antes de tudo o que vou dizer aqui, explicar esta minha sentença para agradecerdes a Deus que, por meio deste meu livreto, vos dá a graça de refletir mais profundamente sobre a importância deste grande meio da oração, pois todos os que se salvam, falando dos adultos, ordinariamente só por meio da oração é que conseguem salvar-se. Por isso, repito, agradecei a Deus, pois muito grande é a sua misericórdia concedendo-nos a luz e a graça de rezar.

Espero, irmão caríssimo, que depois de terdes lido esta obra, não vos esquecereis de recorrer sempre a Deus pela oração, quando fordes tentado a ofendê-lo. E, se alguma vez sentirdes a consciência gravada com muitos pecados, sabeis que a causa disto é a falta de oração e de pedir a Deus auxílios necessários para resistir às tentações que vos assaltam. Peço-vos, portanto, que leiais este livreto e o torneis a ler, com toda atenção, não por ser trabalho meu, mas sim porque é um meio que Deus vos concede para conseguirdes a vossa salvação eterna, dando-vos assim a entender, de modo particular, que vos quer salvar. E, depois de o terdes lido, peço-vos que, sendo possível, o façais ler a vossos conhecidos e amigos.

Comecemos, pois, em nome do Senhor!

4. Escrevendo a Timóteo, o Apóstolo diz: "Rogo-te, antes de tudo, que se façam pedidos, orações, súplicas e ações de graças" (1Tm 2,1). Santo Tomás, o Doutor Angélico, explica essas palavras dizendo que a oração consiste propriamente na elevação da alma a Deus. A prece consiste em pedir a Deus coisas, quer particulares e determinadas, quer indeterminadas, por exemplo quando dizemos: Senhor, vinde em meu socorro! O pedido consiste em impetrar a graça. Assim como quando dizemos: Por vossa paixão e cruz, livrai-nos, Senhor!

A ação de graças, enfim, consiste em agradecer os benefícios recebidos, pelo que, como diz Santo Tomás, merecemos receber benefícios ainda maiores. A oração no sentido estrito, diz o Santo Doutor, significa recorrer simplesmente a Deus. Mas, em sua acepção geral, compreende todas as outras espécies já mencionadas. Deste modo, nós a entendemos e neste sentido é que, daqui por diante, empregaremos a palavra "oração".

Para concebermos um grande amor à oração e para usarmos com fervor deste grande meio da salvação, consideremos, antes de tudo, quanto ela nos é necessária e quão poderosa é para nos obter todas as graças, que desejamos de Deus, se pedirmos como devemos.

Por isso, na primeira parte, trataremos da necessidade e do valor da oração e, depois, das qualidades que a oração deve ter para ser eficaz diante de Deus.



Livro: A oração - Santo Afonso Mª de Ligório, pág. 10-14. Ed. Santuário.





terça-feira, 17 de outubro de 2023

A amizade está em crise?

 

De Gerardo Castillo



Ser amigo de alguém pelo que ele é, de forma desinteressada e não em função da utilidade ou do prazer que pode proporcionar-nos, é próprio da amizade verdadeira. Estimamos o amigo pelas suas qualidades individuais. E, para estimá-lo, temos de conhecê-lo antes por meio da convivência. O desejo mútuo do bem é precedido pelo conhecimento mútuo adquirido na convivência. 

Este tipo de relação humana baseada na comunicação pessoal sinceramente desinteressada estará ainda em vigor na sociedade atual ou, pelo contrário, era mais característico de épocas passadas? A vida social de hoje baseia-se nas relações pessoais ou antes nas relações impessoais?

De acordo com a resposta que dermos a estas perguntas, teremos uma atitude otimista ou pessimista com relação ao futuro dessa peculiar relação de convivência a que chamamos amizade. Não faltam dados nem razões para pensar que a amizade está em crise nos nossos dias. E também não falta quem pense que esta crise revela que a amizade já não é tão necessária hoje como no passado.

Os interesses econômicos e a ambição de poder que dominam o mundo dos negócios e da política limitam bastante o espaço necessário para as relações pessoas desinteressadas e sinceras. Nesses meios, as pessoas são apreciadas pelo que têm e não pelo que são, isto é, pelas vantagens materiais que podem proporcionar. Ter "amigos" é, frequentemente, ter mais possibilidades de obter privilégios e recomendações para passar por cima das normas estabelecidas. Nessas condições, a amizade perde o seu valor. Deixa de ser uma virtude para conveter-se numa fonte de injustiças. 

Outro obstáculo importante é a "sociedade massificada": "Na sociedade de hoje, falta vida e sobra coesão. A nossa sociedade sofre de uma unidade imposta, de uma aglutinação forçada e violenta. São multidões e multidões esmagadas pelo império das leis, pelas necessidades técnicas, por exigências materiais"9

A vida do homem contemporâneo, transcorre, na sua maior parte, no âmbito de grandes grupos de caráter profissional, ideológico, econômico ou de vizinhança. Dentro dessas coletividades, a pessoa não passa de simples elemento ou peça no conjunto total.  Existe uma conduta grupal que torna desnecessária a conduta individual; a mera coexistência substitui a convivência. Ao integrar-se no grupo artificial, na massa, o homem deixa de ser ele mesmo para adotar um modo de vida uniforme e gregário. Em resumo, passa a não ter oportunidades nem estímulo para se concentrar no seu ser pessoal e limita-se a assumir passivamente o comportamento que a coletividade lhe impõe. 






A sociedade massificada leva, pois, à despersonalização do homem, que deixa, progressivamente, de agir como um ser singular, livre e criativo, e perde a capacidade - o hábito - de relacionar-se de maneira pessoal, íntima, tanto no âmbito familiar como no da amizade: "Muitos homens são completamente ou quase completamente fruto das influências sociais do ambiente e constroem o seu modo de ser com tudo aquilo que recebem do meio e da coletividade [...]. São homens de tipo médio, vulgares e informes [...]; homens que carecem de solidão e fogem da solidão porque, se se virem sós, notarão o vazio em que se encontram, um vazio composto exclusivamente de lugares-comuns [...]; homens gregários, massificados, que repetem como autômatos o que aprenderam, e que, depois da enxurrada de formas abstratas recebidas, não possuem nenhum entusiasmo, nenhuma convicção verdadeiramente pessoal"10.
Esta coletivização da vida não procede simplesmente de circunstâncias sociais e econômicas como, por exemplo, a concentração urbana ou a sociedade de consumo. Vivemos hoje num processo de exaltação do coletivo e de desvalorização do privado. O professor García Morente dizia já em 1945 que estávamos assistindo a um crescente predomínio do público sobre o privado e mesmo a uma invasão do público na intimidade do relacionamento pessoal: 
"O nosso viver é, hoje, um viver dissipado, lançado para fora de si mesmo, exposto ao ar livre da publicidade. E, paralelamente, como fenômeno de penetração recíproca, a publicidade e a exterioridade invadem os nossos mais íntimos recintos pessoais por mil fendas que nós mesmos abrimos propositadamente. Parece que nos envergonhamos de ficar a sós ou com pouca gente; ou que nos sentimos acovardados ante a perspectiva de ter de haver-nos conosco mesmos e de ter que enfrentar a nossa própria consciência" 11.

Para García Morente, a relação pública é abstrata e anônima, já que nela não são duas pessoas que entram em contacto - eu e você -, mas dois conceitos abstratos: o cidadão e o funcionário; o cliente e o profissional... Ao contrário, na relação privada, "um conhece o outro [...]. Não estão presentes duas abstrações, mas duas vidas reais, duas individualidades inconfundíveis, duas pessoas verdadeiras. Por trás da crosta que o coletivo, o social, o profissional, o político criaram em torno da autêntica personalidade, assoma agora pelo menos uma pequena parte desse eu íntimo, daquilo que cada um verdadeiramente é, sente e quer; pelo menos algum elemento da sua vida peculiar e intransferível" 12.

Como resumo desta breve análise da situação, penso que se pode dizer que existe na sociedade atual uma clara tendência para as relações impessoais. O protagonismo da pessoa diminui em benefício do protagonismo do coletivo. Falta, portanto, base suficiente para a convivência e a amizade. Temos que admitir, em consequência, que a vida de amizade não é fácil hoje em dia, mas isso não significa que devamos pôr em dúvida a sua continuidade ou a sua necessidade. 

Os argumentos dos filósofos gregos e latinos em favor da necessidade da amizade são válidos não apenas para a sua época, mas para todas. A necessidade de compartilhar a própria intimidade, de comunicar aos outros o que há de mais peculiar ao nosso ser e à nossa vida, de sermos amados pelo que somos, não é algo exclusivo deste ou daquele homem, mas um elemento comum a todos os homens de qualquer época ou condição. Quero dizer que são necessidades básicas da pessoa.

É precisamente por haver menos espaço para este tipo de relacionamento entre as pessoas na vida social de hoje que é urgente cultivar a amizade, educar as novas gerações para a vida de amizade. Deste modo, não só melhorarão as pessoas uma por uma, mas a própria sociedade, porque a amizade é "germe e raiz da vida social humana, mas não de uma vida social impessoal, segundo padrões abstratos, como a que reina na nossa sociedade massificada, e sim de uma vida pessoa, íntima, vital e criadora" 13

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(9) André Vázquez de Prada,  Estudio sobre la amistad, Rialp, Madrid, 1956.

(10) Manuel Gárcia Morente, Ensayos, Madrid, 1945, pág. 34.

(11) Ibid, pág. 9.

(12) Ibid, pág. 14.

(13) Gran Enciclopedia Rialp, verbete Amistad, vol. 2, pág. 100.


Fonte: Educar para a amizade  -  Gerardo Castillo, ed. Quadrante, 1999. pág 19 ss.


quinta-feira, 12 de outubro de 2023

A Natividade da Bem-aventurada Virgem Maria

 A gloriosa Virgem Maria nasceu da estirpe régia de Davi na tribo de Judá. Mateus e Lucas não descrevem a genealogia de Maria, e sim de José, que nada teve com a concepção de Cristo, devido ao costume da Escritura de mostrar o encadeamento das gerações não a partir de mulheres, mas de homens. É verdade, contudo, que a beata Virgem descende de Davi, o que fica patente na Escritura quando atesta muitas vezes que Cristo originou-se da semente de Davi. Logo, como Cristo nasceu apenas da Virgem, é claro que a própria Virgem nasceu de Davi, do ramo de Natã. 

Davi teve, entre outros, dois filhos, Natã e Salomão. Como certifica João Damasceno, Levi - do ramo de Natã, filho de Davi - gerou Melque e Pantar, Pantar gerou Barpantar e Barpantar gerou Joaquim e Joaquim a Virgem Maria. Do ramo de Salomão, uma filha foi esposa de Natã com o qual gerou Jacó. Falecido Natã, um membro da sua tribo, Melque, filho de Levi, irmão de Pantar, casou com a viúva de Natã, mãe de Jacó, e dela gerou Eli. Assim, Jacó e Eli são irmãos uterinos, mas Jacó sendo da tribo de Salomão e Eli da de Natã. Falecido Eli, da tribo de Natã, sem filhos e filhas, Jacó seu irmão, que era da tribo de Salomão, tomou sua mulher e ressuscitou a semente de seu irmão, gerando José. Portanto, José é segundo a natureza filho de Jacó, descendente de Salomão, e segundo a lei filho de Eli, descendente de Natã. De fato, o filho nascido dessa forma era daquele que o gerava segundo a natureza e do defunto segundo a lei. Até aqui, falou Damasceno.

Diz a HISTÓRIA ECLESIÁSTICA e atesta BEDA em sua Crônica que, como todas as genealogias dos hebreus e dos estrangeiros estavam secretamente guardadas nos arquivos do templo, Herodes mandou queimá-las pensando que com falta de provas poderia fazer acreditar que sua ascendência era de Israel e que ele era nobre. Contudo aqueles nazarenos, chamados "senhoriais" por seu parentesco com Cristo, restabeleceram a genealogia de Cristo, em parte seguindo o que diziam os antepassados e em parte seguindo os livros que tinham em casa.

Joaquim tomou uma mulher de nome Ana, que tinha uma irmã chamada Isméria. Esta Isméria gerou Isabel e Eliúde, e Isabel gerou João Batista. De Eliúde nasceu Eminem, de Eminem nasceu São Servácio, cujo corpo está em Maastricht, fortaleza à margem do Mosa, no episcopado de Liège. Conta-se que Ana teve três maridos, a saber, Joaquim, Cleofas e Salomé. Do primeiro destes maridos, quer dizer, Joaquim, teve uma filha, Maria, mãe e progenitora do Senhor, que deu em casamento a José e que gerou e pariu o Senhor Cristo. Falecido Joaquim, Ana aceitou Cleofas, irmão de José, e dele gerou outra filha, chamada pelo mesmo nome de Maria e que uniu em casamento a Alfeu. Esta Maria gerou de seu marido Alfeu quatro filhos, a saber, Tiago, o Menor, José, o Justo, conhecido como Barsabás, Simão e Judas. Falecido seu segundo marido, Ana aceitou um terceiro, Salomé, do qual gerou outra filha, chamada mais uma vez Maria e deu-a em casamento a Zebedeu. Esta Maria gerou dois filhos de seu marido Zebedeu, a saber, Tiago, o Maior, e João Evangelista. Daí os versos a este respeito:

Tem-se o costume de dizer que Ana concebeu três Marias,

Geradas de seus maridos Joaquim, Cleofas e Salomé.

Elas foram entregues a José, Alfeu e Zebedeu, seus maridos.

A primeira pariu Cristo, a segunda Tiago, o Menor,

José, o Justo, Simão e Judas.

A terceira Tiago, o Maior, e o alado João.


Mas o admirável, como dito acima, é como a bem-aventurada Maria pôde ser prima de Isabel. Sabe-se que Isabel foi mulher de Zacarias, da tribo de Levi, pois segundo a lei todos deveriam ter esposa de sua tribo e família, e foi atestado por Lucas que Isabel estava entre as filhas de Aarão. Ana, segundo Jerônimo, era de Belém e da tribo de Judá. Mas sabe-se que Aarão e seu irmão, o sumo sacerdote Joiada, tomaram ambos esposas da tribo de Judá, de forma que a tribo sacerdotal passaram a estar ligadas pelo sangue. Pode ser, como afirma Beda, que este tipo de relação com a troca de mulheres entre as tribos fosse recente. De toda forma, a beata Maria, descendente da tribo régia, tinha relações consanguíneas com a tribo sacerdotal, e deste modo pertencia a ambas as tribos. 

Quis o Senhor que estas tribos privilegiadas se miscigenassem, porque no seu mistério estava para nascer delas aquele que verdadeiramente foi rei e sacerdote, que se sacrificou por nós e que dirige seus fiéis em meio à malícia das lutas desta vida, para coroá-los após a vitória. Daí o nome de Cristo, isto é, "ungido", "escolhido", pois na antiga lei apenas os sacerdotes, reis e profetas eram ungidos, e por isso nós somos chamados "cristãos", "povo eleito", e "povo do sacerdócio real". Quando se diz que as mulheres uniam-se com os homens de sua tribo, era para que a distribuição as terras não fossem alteradas, mas como a tribo dos levitas, ao contrário das outras, não tinha terra, as mulheres desta tribo podiam casar com quem quisessem.

No prólogo da História da Natividade da Virgem, o bem-aventurado Jerônimo conta o que ainda adolescente leu em um opúsculo, mas que só muito tempo depois releu e a pedido transcreveu. Joaquim era da Galiléia, da cidade de Nazaré, e tomou como esposa Santa Ana, de Belém. Ambos eram justos e seguiam irreprensivelmente todos os mandamentos do Senhor, dividindo em três partes todos os seus bens, uma destinada ao templo e seus servidores, outras aos peregrinos e pobres, e a terceira reservada para eles e sua família. Como por vinte anos não tiveram filhos fizeram uma promessa ao Senhor, que se este lhes concedesse descendência eles a entregariam a Seu serviço. A fim de obterem a graça do Rei, iam todos os anos às três principais festas em Jerusalém.

Na festa da Dedicação, Joaquim foi com os outros de sua tribo até Jerusalém e ao chegar ao altar quis oferecer sua oblação junto com os demias. Vendo isso cheio de indignação, o sacerdote agarrou-o, afastou-o e repreendeu sua presunção de se aproximar do altar, porque não era conveniente, sob pena de maldição da lei, que oferecesse oblações ao Senhor quem não tivesse feito crescer o povo de Deus, quem era infecundo entre os fecundos. Confuso e envergonhado, Joaquim não quis voltar para casa a fim de não ouvir ofensas. Ele afastou-se, foi para junto de seus pastores e ficou com eles por algum tempo, até que um dia, estando sozinho, um anjo apareceu com tão forte luminosidade que deixou sua visão turva. 

O anjo avisou para não ter medo, dizendo:

Eu sou o anjo do Senhor enviado para anunciar que suas preces foram ouvidas e que suas esmolas subiram até o Senhor. Vi a sua vergonha ouvi o opróbio de esterilidade que foi injustamente imputado a você. Deus vinga o pecado mas não a natureza, por isso se Ele fecha um útero o faz para abri-lo novamente de maneira maravilhosa, para que saiba que o nascido não é produto libidinoso, mas presente divino. Não é verdade que Sara, a primeira mãe de seu povo, suportou a injúrias da esterilidade até os noventa anos de idade e ainda assim gerou Isaac, ao qual foi prometida a bênção de todas as nações? Não é verdade que Raquel foi estéril por muito tempo, e contudo gerou José, que teve domínio sobre todo o Egito? Há alguém mais forte do que Sansão ou mais santo do que Samuel? Todavia ambos nasceram de mães estéreis. Creia em minhas considerações e exemplos. As concepções adiadas por muito tempo e os partos de quem parecia estéril são os mais admiráveis. Também sua esposa Ana parirá uma filha e você lhe dará o nome de Maria. De acordo com a promessa que fizeram, ela será consagrada ao Senhor desde a infância. Desde o útero de sua mãe será cheia do Espírito Santo. A fim de que não haja qualquer suspeita que lhe seja desfavorável, não terá contado com o mundo, ficará sempre morando no templo do Senhor. Ela própria, nascida de mãe estéril, gerará maravilhosamente seu filho altíssimo, cujo nome será Jesus e por meio do qual todos os povos serão salvos. Dou a você uma prova: quando chegar à porta dourada de Jerusalém, sua esposa Ana virá ao seu encontro, e de inquieta com sua demora ela passará a demonstrar alegria!


Dito isso, o anjo retirou-se. 

Ana chorava amargamente por ignorar aonde seu marido tinha ido, quando o mesmo anjo lhe apareceu e anunciou a mesma coisa, acrescentando como prova que fosse à porta dourada de Jerusalém onde encontraria o marido indo em sua direção. Logo, seguindo o preceito do anjo, um foi ao encontro do outro, felizes com a visão mútua e certos da prole prometida. Voltaram para casa, depois de adorar o Senhor, esperando alegremente a promessa divina.




Então Ana concebeu e deu à luz uma filha, à qual chamou Maria. Completados os três anos de amamentação, levaram a Virgem com oferendas ao templo do Senhor. O templo fora construído em um monte, com o altar do holocausto sendo externo e só podendo ser atingido depois de se subir quinze degraus, correspondentes aos quinze salmos graduais¹. Quando a jovenzíssima Virgem foi colocada junto com os outros, subiu sem a ajuda de ninguém, como se já fosse adulta. Concluído o ofertório, Joaquim e Ana voltaram para casa deixando sua filha com outras virgens no templo.

A Virgem, por seu lado, progredia cotidianamente em todo tipo de santidade. Cotidianamente era visitada por anjos e desfrutava de visões divinas. Jerônimo diz em uma carta a Cromácio e Heliodoro que a beata Virgem estabelecera para si esta regra: de matinas até à terça, oração; da terça até a nona, trabalho manual de tecelã; da nona até aparecer o anjo que lhe dava alimento, novamente orações.²

Quando ela fez catorze anos, o pontífice proclamou publicamente que as virgens que era instruídas no templo e haviam atingido aquela idade deveriam voltar para suas casas a fim de serem legitimamente casadas. Diante desta ordem todas partiram, apenas a bem-aventurada Virgem Maria respondeu que não podia fazê-lo, pois seus pais haviam-na entregue ao serviço do Senhor e prometido a Ele a virgindade dela. O pontífice ficou angustiado, porque não queria ir contra a Escritura que diz: "Prometa e cumpra o prometido"³, nem ousava introduzir novidade nos costumes do povo. Ao aproximar-se uma festividade dos judeus, convocou todos os anciãos e a sentença unânime foi que em assuntos tão duvidoso deveria ser buscado o conselho do Senhor. Eles permaneceram em oração, e quando o pontífice dirigiu-se ao oratório para consultar o Senhor, todos ouviram vindo dali uma voz dizer: "Todos os homens da casa de Davi que não estão convenientemente unidos em casamento devem levar um ramo ao altar, e aquele cujo ramo germinar e em cuja ponta o Espírito Santo pousar em forma de pomba, conforme profetizou Isaías, deve sem qualquer dúvida desposar a Virgem".

Entre os membros da casa de Davi estava José, ao qual pareceu inconveniente que um homem de idade tão avançada** tomasse como esposa uma virgem tão jovem. Assim, enquanto os demais levavam seus ramos, ele escondeu o seu. Como não aconteceu nada de acordo com o que a voz divina anunciara, o pontífice mais uma vez decidiu consultar o Senhor, que respondeu que somente aquele que não levara sua vara deveria desposar a Virgem. Diante disso José levou sua vara, que floresceu e em cujo topo pousou uma pomba vinda do Céu. Ficou evidente para todos que ele deveria desposar a Virgem. Combinado portanto o casamento com a Virgem, José voltou para sua casa na cidade de Belém para tomar as providências necessárias para as núpcias. Quanto à Virgem Maria, voltou para a casa de seus pais em Nazaré acompanhada, por determinação do sacerdote, como testemunha do milagre, por sete colegas, virgens da mesma idade que ela. Por aqueles dias o anjo Gabriel apareceu a ela enquanto orava e anunciou que dela nasceria o filho de Deus. 

Durante muito tempo, a data do nascimento da Virgem escondida dos fiéis. JOÃO BELETH conta da seguinte maneira como ela foi descoberta: certo homem santo, constante na contemplação, ouvia todos os anos, no dia 8 de setembro, uma alegríssima celebração por parte da comunidade dos anjos. Com muita devoção, ele pedia que lhe fosse revelado por que ouvia aquilo naquele dia do ano e não em outro, e recebeu a resposta divina: aquele era o dia em que a gloriosa Virgem Maria havia nascido no mundo, e ele deveria divulgar o fato aos filhos da Santa Igreja a fim de que se reunisse à corte celeste nesta celebração. Ele comunicou isso ao sumo pontífice e outros prelados, que por meio de orações e jejuns descobriram a verdade das Escrituras e em antigas tradições, dedicando em todo mundo este dia para a celebração da natividade da Virgem. 

Antigamente, a oitava4 da natividade da beata Maria não era celebrada, mas o senhor Inocêncio IV, de origem genovesa, instituiu tal celebração. A causa disto foi que com a morte de Gregório IX todos os cardeais fecharam-se em conclave para rapidamente escolherem um novo chefe da Igreja5. Mas como por vários dias não puderam chegar a um acordo e eram muitos pressionados pelos romanos, prometeram à Rainha do Céu que se pelos méritos dela eles viessem a concordar e pudessem sair dali livremente, estabeleceriam a celebração da oitava de sua natividade negligenciada por tanto tempo. Eles concordaram em escolher o senhor Celestino e foram libertados. No entanto Celestino viveu pouco tempo e por isso não pôde cumprir a promessa, o que foi feito por Inocêncio IV. Note-se que a Igreja celebra três natividades, a saber, a de Cristo, a de Santa Maria e a de João Batista, que designam três natividades espirituais: renascemos com João pela água, com Maria pela penitência e com Cristo na glória. Em relação aos adultos, convém que a natividade da contrição preceda a natividade do batismo e da glória. Por isso estas duas festas merecem ter vigílias, mas como a natividade da Virgem é penitência, e portanto toda orientada para a vigília, não precisa ter vigília. Todas têm oitavas porque na verdade todas anseiam pela oitava da Ressureição. 

2. Um cavaleiro muito valente e muito devoto da beata Maria ia a um torneio, e ao encontrar no caminho o primeiro mosteiro construído em honra da bem-aventurada Virgem, entrou para ouvir missa. Como a uma missa seguia-se outra, ele não quis deixar de honrar a Virgem, e quando enfim saiu do mosteiro dirigiu-se rapidamente para o local do torneio. No caminho encontrou alguns que voltavam do torneio e comentavam como ele havia lutado valentemente. Mais adiante outros aclamavam sua valentia militar e aqueles que tinham sido capturados por ele rendiam-se inteiramente. Ele entendeu então que a gentil rainha o honrara, contou o que acontecera e voltando ao mosteiro entrou ao serviço do filho da Virgem. 

3. Um bispo que tinha extrema reverência e devoção pela beata Virgem dirigia-se no meio da noite, por devoção, a um igreja da bem-aventurada Maria. Então a Virgem das virgens, acompanhada de todo o coro das virgens, foi até ele e com extrema honra conduziu-o à igreja para a qual se encaminhava. Quando começou a conduzi-lo, duas jovens do coro entoaram um prelúdio: "Cantemos ao Senhor, companheiras, cantemos em sua honra,/ Que nossas bocas ressoem piamente o doce amor de Cristo!".

Este versos foram repetidos pelo coro de virgens, e a seguir as duas primeiras cantavam os seguintes versos: "Por sua grande luz, o primeiro soberbo foi precipitado no abismo,/ E arrastou consigo o primeiro homem".

Assim, a procissão conduziu o homem de Deus até a igreja, com as duas jovens sempre reiniciando o canto e as demais respondendo.

4. Uma mulher sozinha, abandonada por seu marido, tinha um único filho, ao qual amava ternamente. Este filho foi capturado pelos inimigos, que o prenderam e acorrentaram. Ao saber da notícia, ela chorou inconsolavelmente e orou pela libertação de seu filho à beata Virgem, da qual era muito devota. Enfim, vendo que não conseguia nada, entrou sozinha na igreja em que estava esculpida a imagem da beata Maria e em pé diante dela disse: "Bem-aventurada Virgem, pedi muitas vezes a você pela libertação de meu filho, sem nenhum resultado. Então, assim como meu filho me foi tirado, eu também tomo o seu e o manterei preso como penhor pelo meu filho". Dizendo isso, chegou mais perto e retirou a imagem do menino que a Virgem segurava no colo e foi para casa. Ali envolveu a imagem do menino em linho branquíssimo, escondeu-a em uma arca que fechou cuidadosamente à chave e guardou-a diligentemente, feliz por ter um bom refém por seu filho. Então na noite seguinte a bem-aventurada Virgem apareceu ao jovem e abrindo a porta do cárcere disse que saísse dali e recomendou: "Filho, diga a sua mãe e contou como a beata Virgem o libertara. Ela, por sua vez, exultante, pegou a imagem do menino e, indo à igreja da beata Maria, devolveu o filho desta dizendo: "Agradeço, Senhora, por ter devolvido meu único filho, e então devolvo o seu". 

5. Havia um ladrão que realizava frequentes roubos mas tinha muita devoção pela beata Maria, a quem sempre saudava. Quando ele foi enforcado, a bem-aventurada Virgem com suas mãos manteve-o suspenso por três dias e ele não sofreu ferimento algum. Passando pelo local acaso, e encontrando-o vivo e com rosto alegre, os que o haviam enforcado julgaram que não haviam apertado bem o laço e quiseram degolá-lo com a espada, mas a beata Maria impediu segurando a espada e eles não puderam lhe fazer mal. Quando souberam que a beata Virgem que o socorria, ficaram admirados e por amor à Virgem soltaram-no e deixaram-no partir livre. O ladrão entrou em um mosteiro e enquanto viveu permaneceu ao serviço da mãe de Deus.

6. Havia um clérigo que, muito atencioso com a beata Maria, jamais deixava de cantar as horas dedicadas a ela. Falecidos seus pais sem terem outro herdeiro, deixaram-lhe suas terras. Os amigos incentivaram-no a arrumar uma esposa e a administrar sua herança. No dia em que devia celebrar suas núpcias, encontrou no caminho uma igreja e recordando seus serviços à bem-aventurada Virgem entrou nela e começou a dizer suas horas. Nesse momento apareceu-lhe a beata Maria e repreendeu-o severamente: "Ó insensato e infiel, por que você me abandona, sua amiga e esposa, e prefere outra mulher a mim?". Ele encontrou seus companheiros, compungido, mas dissimulou o ocorrido, celebrou as núpcias e, no meio da noite, abandonou todos e fugiu de casa para entrar em um mosteiro e servir devotamente a beata Maria. 

7. O sacerdote de uma paróquia, pessoa de vida honesta, não sabia outra missa a não ser a da beata Maria, que ele repetia diligentemente em sua honra. Foi denunciado por causa disso ao bispo, que mandou chamá-lo imediatamente. Como disse que realmente desconhecia outra missa, o bispo qualificou-o duramente como enganador, suspendeu-o de suas obrigações e proibiu-o de rezar aquela missa dali em diante. Na noite seguinte a bem-aventurada Maria apareceu ao bispo, repreendeu-o severamente e perguntou por que tratara mal seu devoto, acrescentando que morreria em trinta dias se não readmitisse o sacerdote em seu ofício. Apavorado, o bispo mandou chamar o presbítero, pediu perdão e ordenou que não celebrasse nenhuma outra missa a não ser a que sabia, a da bem-aventurada Maria. 

8. Um clérigo fútil e lúbrico, mas que amava muito a mãe de Deus e cantava suas horas santas devota e vivamente, certa noite viu-se em visão diante do tribunal de Deus. O Senhor disse aos que o rodeavam: "Quanto a este que os observa, decidam de que sentença ele é digno. Há muito tempo o tolero e não encontrei nele nenhum sinal de arrependimento". Então, com a aprovação de todos, o Senhor proclamou contra ele a sentença da danação. A bem-aventurada Virgem levantou-se e disse a seu filho: "Rogo sua clemência por ele, piedoso filho, a fim de que mitigue a sentença de danação. Se bem que tenha sido conduzido à morte por seus próprios méritos, que viva pelos serviços prestados a mim". O Senhor: "Aceito sua petição, desde que a partir de agora eu veja que ele se corrigiu". A Virgem voltou-se para o homem e disse: "Vá e não peque mais, para que não aconteça o pior com você". Ao acordar ele mudou de vida, tornou-se monge e acabou sua vida em boas obras.

9. Como conta o bispo FULBERTO DE CHARTRES, no ano do Senhor de 537 havia na Sicília um homem de nome Teófilo que administrava os bens eclesiásticos de forma tão prudente, que falecido o bispo todo o povo o aclamou como digno para o episcopado. Mas ele estava contente com sua função e preferiu que ordenassem outro como bispo, mas este o destituiu de seu ofício. Impaciente por recuperar seu cargo, ele procurou o conselho de um judeu especialista em magia. Este invocou o diabo, que logo apareceu. Por ordem do demônio, Teófilo renegou Cristo e sua mãe, renunciou à condição de cristão, escreveu com seu próprio sangue a renúncia e a abjuração, selou-o com seu anel, entregou o escrito selado ao demônio e entrou a seu serviço. Na manhã seguinte, por obra do demônio, Teófilo recuperou a graça do bispo e a dignidade de suas funções.Quando finalmente caiu em si, lamentou muito o que fizera. Recorreu a toda devoção de seu espírito a fim de que a gloriosa Virgem viesse em seu socorro. A beata Maria apareceu a ele e visão, criticou sua impiedade e mandou que renunciasse ao diabo. Fez com que reconhecesse que Cristo era o filho de Deus e aceitasse todas as proposições do cristianismo. Dessa forma Teófilo recuperou a graça dela e de seu Filho. Como indício de que ele recebera perdão, ela apareceu de novo, agora com o manuscrito que entregara ao diabo, devolveu-o e colocou-o sobre o peito dele a fim de que não temesse mais ser escravo do diabo e sim que se alegrasse por ter sido libertado pela Virgem. Depois de receber o papel, exultante, Teófilo contou ao bispo e a todo o povo o que acontecera. Admirados, todos louvaram a gloriosa Virgem. Três dias mais tarde Teófilo descansou em paz. 

10. Um homem e sua esposa tinham uma única filha, que deram em casamento a um jovem, e por amor a ela mantinham o genro em sua casa. Por amor à filha, a mãe cuidava tão carinhosamente do jovem, que o amor da moça por ele não era maior que o amor da sogra pelo genro. Enquanto isso, começaram a falar maliciosamente que a sogra levara o genro para sua casa não pela filha, mas por si mesma. Com a alma agitada com tanta mentira, temendo tornar-se assunto do povo, a mulher ofereceu a dois camponeses vinte moedas a cada um para que estrangulassem o genro secretamente. Assim, certo dia ela escondeu os camponeses no celeiro, mandou o marido fazer algo em outro lugar e enviou a filha para outro lado. O jovem ao entrar no celeiro onde sua senhora o mandara pegar vinho, foi imediatamente estrangulado pelos camponeses. Logo depois, a sogra o colocou no leito da filha, vestido como se estivesse dormindo.

Assim que o marido e a filha voltaram e sentaram à mesa, a mãe mandou-a acordar o marido e chamá-lo para comer. Quando o encontrou morto e anunciou o fato a todos, a família prorrompeu em lamentos, e a homicida, fingindo estar aflita, lamentava-se com os demais. Mas enfim a mulher realmente deplorou o crime perpetrado e confessou tudo a um sacerdote. Algum tempo depois surgiu uma desavença entre a mulher e o sacerdote, e este a acusou pelo homicídio do genro.6

Quando a notícia chegou aos parentes do jovem, a mulher foi levada a julgamento e condenada a ser queimada. Diante de seu fim iminente, decidiu voltar-se para a beata Virgem e, entrando em uma de suas igrejas, prostou-se em oração, com lágrimas. Um pouco depois, obrigada a sair, foi jogada em uma grande fogueira onde todos a viram permanecer ilesa e incólume. 

Os parentes do jovem acharam que o fogo estava fraco, aproximaram-se e jogaram sarmento na fogueira, mas vendo que nem assim ela era atingida, começaram a atacá-la com lanças e dardos. Fortemente impressionado, o juiz que estava ali impediu tais ataques, examinou a mulher com atenção e não encontrou nela sinal do fogo, apenas feridas de lanças. Seus parentes levaram-na para casa e reanimaram-na com remédios e banhos. Deus não querendo que ela fosse desonrada pelas suspeitas humanas por mais tempo, depois de três dias - durante os quais louvou a Virgem com perseverança - afastou-a desta vida.






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1. A palavra "gradual" deriva de gradus, "degrau", indicando a subida que os judeus faziam até o templo cantando determinados salmos (os de número 119 a 133). Na liturgia romana, os salmos graduais (que podem ser aqueles, ou outros) eram cantados na missa entre a leitura da Epístola e do Evangelho, e assim se organizou o Gradual, livro de canto gregoriano utilizado na missa.

2. Sobre as horas canônicas, ver nota 5 do capítulo 2.

3. Números 30,2. 

4. Conforme nota 2 do Prólogo.

5. Conforme nota 1  do capítulo 22. 

6. Estranho esse relato de Jacopo, pois o segredo da confissão sempre foi extremamente preservado. Conhece-se, por exemplo, a história de um cavaleiro que matou um homem, revelou o crime ao padre e este o denunciou ao príncipe esperando ser recompensado. Diante da ruptura da norma, o príncipe perdoou o assassino e mandou cegar e cortar a língua do sacerdote que não mantivera a confidência do confessionário: F.C. Tubach, Index exemplorum: a handbook of medieval religious tales. Helsinki, 1969, n. 1203.

** A tradição conta a história de duas formas, S. José como um velho de idade avançada e S. José como um rapaz novo. O mais provável mesmo é que S. José fosse um rapaz novo, preparado por Deus para proteger a Virgem Santíssima e o Menino Jesus dos perigos que os rondariam por anos a fio. 


Fonte: Legenda Áurea - Jacopo de Varazze