Livro: A Oração - Cap. III
Santo Afonso Maria de Ligório(1696-1787)
Bispo e Doutor da Igreja
Editora Santuário, 1ª ed, 1987, 31ª imp. 2016.
9. Deus ouve a oração dos humildes e repele a dos orgulhosos
O Senhor atende às orações de seus servos, mas dos servos humildes: "O Senhor atendeu à oração dos humildes" (Sl 101,18). Onde falta humildade, Deus não atende, pelo contrário, repele as orações dos soberbos. "Deus resiste aos soberbos e dá a sua graça aos humildes" (Tg 4,6). Deus não ouve as orações dos soberbos, que confiam na própria força e por isso abandona-os à sua miséria. Em tal estado, privados do auxílio divino, perder-se-ão certamente. Chorava Davi: "Antes de ser humilhado, pequei" (Sl 118,67), pequei, porque não fui humilde. O mesmo se deu com São Pedro, o qual, apesar de avisado por Nosso Senhor de que naquela noite os seus discípulos o abandonariam: "a todos vós serei eu nesta noite ocasião de escândalo" (Mt 26,31), em vez de reconhecer sua fraqueza e pedir forças ao Senhor para não lhe ser infiel, confiando demasiadamente em si mesmo, disse que ainda que todos os outros o abandonassem, ele nunca o abandonaria: "Ainda que todos se escandalizem a teu respeito, eu nunca me escandalizarei" (Mt 26,33). E não obstante o Redentor lhe predizer, de novo e em particular, que naquela noite, antes que o galo cantasse, o negaria três vezes, confiando em seu valor, gabou-se dizendo: "Ainda que seja necessário morrer eu contigo, não te negarei" (Mt 26,35). Mas, apontado como discípulo de Jesus Cristo, negou-o por três vezes, com juramento, afirmando não conhecê-lo: "Juro que não conheço tal homem" (Mt 26,72). Se Pedro houvesse se humilhado e pedisse ao Senhor a graça da constância, não o teria negado.10. Sem a graça, nada podemos fazer de meritório
Devemos todos imaginar que estamos sobre as alturas de um monte, suspensos sobre o abismo de todos os pecados e sustentados apenas pelo fio da oração; se este fio se arrebentar, cairemos certamente neste abismo e cometeremos os crimes mais horrorosos. "Se Deus não me tivesse ajudado, já teria caído no inferno" (Sl 93,17). Assim falava o salmista e assim deve dizer cada um de nós. O mesmo queria dizer São Francisco de Assis, quando dizia ser ele o maior pecador do mundo. Mas, meu padre, disse-lhe o companheiro, não é verdade o que dizeis. Existem muitos no mundo que são piores do que vós. É verdade, meu irmão, respondeu o santo, porque se Deus não tivesse sobre mim sua mão protetora, eu cairia em todos os pecados.
11. Trabalha em vão aquele que trabalha sem Deus
É um dogma de fé que, sem a graça de Deus, não podemos fazer obra meritória alguma, nem tão pouco ter um bom pensamento. Sem a graça, diz Santo Agostinho, não podem os homens fazer bem algum, quer por pensamentos, quer por palavras ou obras. Como os olhos não podem ver sem luz, assim o homem não pode fazer o bem sem a graça, diz o santo. E, antes, disse o Apóstolo: "Não que sejamos capazes, nós mesmos, de ter algum pensamento como de nós mesmos, mas a nossa capacidade vem de Deus" (2Cor 3,5). E, ainda antes do Apóstolo, disse Davi: "Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalharão os que procuram construíla". (Sl 126,1). Em vão se esforça o homem em se fazer santo, se Deus não o amparar com o seu poder. "Se o Senhor não guardar a cidade, inutilmente se desvela o seu vigia". Se Deus não preservar a alma do pecado, em vão procurará ela fugir dele com suas próprias forças. Por isso, exclamava o profeta Davi: "Não esperei no meu arco" (Sl 43,7). Pois não quero confiar em minhas armas, mas unicamente em Deus, porquanto só Ele pode salvar-me.
12. Pela graça de Deus, sou o que sou
Quem achar que fez algum bem e que não caiu em maiores pecados, diga com São Paulo: "Pela graça de Deus, sou o que sou" (1Cor 15,10). Pela mesma razão, não deixe o homem de tremer e recear cair em todas as ocasiões. "Quem está de pé, veja que não caia" (1Cor 10,12). Com isto, quer São Paulo advertir-nos que está em grande perigo de cair quem se julga seguro. Em outro lugar, diz: "Quem julga ser alguma coisa, não sendo nada, engana-se" (Gl 6,3). Muito sabiamente escreveu Santo Agostinho: "Muitos, sendo fracos, não se fortificam, porque se julgam fortes; só os que se sentem fracos serão fortes". Quem diz que não tem medo de si próprio prova que confia em si mesmo e em suas resoluções. mas, com esta confiança perniciosa, engana-se. Quem diz que não tem medo, não receia mais e, não receando, não reza mais; então, cairá eternamente.
Não devemos desprezar os outros por terem caído e nós não; pelo contrário, quando virmos outros caírem, julguemos que somos piores de todos e digamos ao Senhor: Se não me tivésseis ajudado, Senhor, eu teria feito pior ainda. De outro modo, permitirá Deus, por causa do nosso orgulho, que cometamos pecados maiores ainda. Por isso avisa-nos o Apóstolo que procuremos a nossa salvação eterna. Mas como? Sempre temendo e tremendo. "Com medo e tremor, operai a vossa salvação" (Fl 2,12). "Com medo e tremor, pois quem vive em temor e cuidado para não cair desconfia de suas próprias forças e põe toda a sua confiança em Deus, recorrendo a Ele nos perigos. Deus o ajudará, vencerá as tentações e salvar-se-á. São Filipe Néri, passando um dia pelas ruas de Roma, exclamava: "Sou um desesperado". Um religioso, que ouviu estas palavras, perguntou-lhe por que falava daquele modo. O santo respondeu: "Meu padre, eu desespero, sim, mas de mim mesmo". Este deve ser o nosso modo de agir, se quisermos nos salvar. É necessário que tenhamos uma completa desconfiança de nós mesmos. São Filipe, desde o primeiro momento em que despertava pela manhã, dizia a Deus: "Senhor, protegei-me hoje, senão eu Vos trairei e o venderei!"
13. Eis a grande ciência do cristão
Diz Santo Agostinho, conhecer que nada é e nada pode! Assim, nunca deixará de pedir a Deus a força necessária para resistir às tentações e para fazer o bem, e fará tudo com o auxílio de Deus, que não repele nenhuma súplica dos humildes. "A oração do que se humilha penetrará as nuvens e não se afastará até que o Altíssimo ponha nela os seus olhos" (Eclo 35,21). E por mais carregada que esteja uma alma de pecados, Deus não pode desprezar um coração que se humilha. "Não desprezarás, ó Deus, um coração contrito e humilhado" (Sl 50,12). "Deus resiste aos soberbos e dá sua graça aos humildes" (Tg 4,6). Deus é severo com os soberbos e resiste às suas súplicas; benigno, porém, e misericordioso com os humildes. Um dia, falou Nosso Senhor a Santa Catarina de Sena: "Saibas, filha, que toda alma que perseverar humildemente na oração chegará a conseguir todas as virtudes".
14. Bela advertência de Monsenhor Palafox
É útil citar aqui uma bela advertência de Monsenhor Palafox, piedosíssimo bispo de Osma, às pessoas piedosas que procuram santificar-se, em sua anotação à 18ª carta de Santa Tereza a seu confessor. Ali conta-lhe a Santa todos os degraus de oração sobrenatural com que o Senhor lhe havia favorecido.
A esse propósito, o mencionado prelado prescreve que essas graças sobrenaturais, que Deus se dignou conceder à Santa Teresa e tem concedido a outros santos, não são necessárias para alcançar a santidade, porque muitas outras almas chegaram à santidade sem essas graças extraordinárias e até há muitas que, apesar de terem recebido aquelas graças, estão condenadas. Portanto, diz ser coisa supérflua e presunçosa desejar e pedir tais dons sobrenaturais, quando o verdadeiro e único caminho para a santidade é o exercício de todas as virtudes, especialmente do amor de Deus; e a isto se chega por meio da oração e pela correspondência às luzes e aos auxílios de Deus, o qual outra coisa não quer senão a nossa santificação. "Esta é a vontade de Deus: a vossa santificação" (1Ts 4,3).
15. Os diversos graus da oração e como alcançá-los
Por isso, o referido autor, falando dos graus da oração sobrenatural, de que tratava a santa, a saber: da oração de repouso, do sono e da suspensão das faculdades da alma, da união, do êxtase, do arrebatamento, do voo e ímpeto do espírito e da chaga espiritual, sabiamente escreve e diz que, quanto à oração de repouso, o que devemos desejar e pedir a Deus é que nos livre do apego e desejo dos bens terrenos, os quais não dão paz, mas sim trazem aflições e inquietações ao espírito. Bem falou Salomão: "Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!" (Eclo 1,14). O coração do homem jamais encontrará a verdadeira paz, senão se livrando de tudo o que não é de Deus, para dar lugar a seu santo amor, para que Ele só o possua. Mas a alma por si própria não pode alcançar isso, mas unicamente por meio de repetidas orações.
Quanto ao sono e suspensão das faculdades da alma, devemos pedir a Deus que essas faculdades durmam para as coisas terrenas e só estejam acordadas para considerar a divina bondade, para aspirar ao amor divino e aos bens eternos.
Quanto à oração da união, devemos pedir a Deus a graça de não pensar, de não procurar e de não querer senão o que Deus quer, pois que toda a santidade e perfeição do amor consiste em conformar-se a nossa vontade com a vontade de Deus.
Quanto ao êxtase e ao arrebatamento, peçamos a Deus que nos livre do amor desregrado de nós mesmos e das criaturas, para nos atrair todos a si.
Quanto ao voo do espírito, roguemos a Deus a graça de vivermos desapegados do mundo e de fazermos como as andorinhas, que, nem mesmo para se alimentar, param no chão e voando tomam o seu alimento. Isto quer dizer que devemos nos servir destes bens temporais tanto quanto for necessário à vida, mas sempre voando, sem nos determos sobre a terra para procurar os prazeres mundanos.
Quanto ao ímpeto do espírito, peçamos a Deus que nos dê coragem e fortaleza para fazermos violência a nós mesmos, quando for necessário, a fim de resistir aos assaltos dos inimigos, vencer as paixões e abraçar o sofrimento no meio de desconsolações e tédios do espírito.
Enfim, quando chega à chaga de amor, assim como a chaga com sua dor sempre renova a recordação do mal, do mesmo modo devemos pedir a Deus que nos fira o coração de tal sorte com o seu santo amor, a fim de que nos recordemos sempre de sua bondade e de seu afeto para conosco e assim vivamos ocupados sempre em amá-lo e agradecer-lhe com as nossas ações e afeto. Mas todas essas graças não se obtém sem a oração; e com a oração, contanto que seja humilde, confiante e perseverante, tudo se alcança.
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A oração - Santo Afonso Mª de Ligório. Ed. Santuário, 1ª edição1987, 31ª impressão.