quinta-feira, 19 de maio de 2022

Trecho 11 - Tratado da Conformidade com a vontade de Deus

 




Mas devemos também persuadir-nos de que a secura espiritual não é sempre um castigo, mas muitas vezes disposição de Deus para nosso maior bem e também para nos conservar humildes. Para que São Paulo não se tornasse vaidoso com as graças que tinha recebido, permtiu o Senhor que ele fosse molestado com tentações de impureza: "E para que a grandeza das revelações não me exaltasse, me foi dado o estímulo de minha carne, um anjo de Satanás, para atormentar-me" (2Cor 12,7). Aquele que ora a Deus com espiritual doçura e deleite, bem pouco faz. "É um amigo e um companheiro à mesa, mas me deixará no dia da aflição" (Eclo 6,10). Vós não considerais como verdadeiro amigo aquele que só vier à vossa mesa e tomar parte em vossos divertimentos; mas sim aquele que vos vem valer nos trabalhos e vos acudir nas tribulações sem que disso tire vantagem própria. Quando Deus manda obscuridade e desolação é para pôr à prova os seus verdadeiros amigos. Paládio, tendo sofrido grande secura espiritual na oração, foi consultar São Maurício, que lhe disse: "Quando o inimigo vos tentar para que deixeis a oração, dizei-lhe: 'Eu me satisfaço de aqui ficar pelo amor de Jesus Cristo, e mesmo só para guardar as paredes desta cela'". Tal deve ser a vossa resposta quando fordes tentado a não continuar na oração, porque vos parece que nisso perdeis tempo. Dizei nessas ocasiões: "Aqui estou para agradar a Deus". São Francisco de Sales diz que "se nós nada mais fazemos quando rezamos do que afastar as distrações e tentações, quão bem rezamos!" Taulero também diz que aquele que no tempo da secura espiritual perseverar na oração, lhe concederá Deus maiores graças do que aquele que orar com sensível devoção. O padre Rodriguez diz que certo homem confessava que pelo espaço de quarenta anos não tinha experimentado consolação alguma na oração, mas que naqueles dias que orava conforme o costume, sentia-se possuído de tal fraqueza que era inteiramente incapaz de fazer alguma boa obra. São Boaventura e Gerson dizem que muitos que durante a oração não têm a atenção que desejam, servem mais a Deus do que outros que a conservam, porque esta falta os obriga a serem mais diligentes: pois que, se assim não fosse, se poderiam tornar negligentes e soberbos, na ideia de que haviam achado o que procuravam. E o que temos dito da secura espiritual, podemos também dizer das tentações; porém, se Deus permite que sejamos tentados, sejam estas tentações contra a pureza, ou contra qualquer virtude, não devemos lastimar-nos, mas também nisto resignar-nos à divina vontade. A São Paulo, quando implorava para ser livre de tentação impura, respondeu o Senhor: "A minha graça te é suficiente" (2Cor 12,9). E assim, quando Deus não nos concede a graça de vivermos libertos de tentações que nos molestam, digamos: "Senhor faze e permite  o que quiseres; a tua graça me é suficiente, mas dá-me o teu auxílio para que eu não a perca". Não são as tentações, mas o consentir nelas, que nos priva da divina graça. Quando resistimos às tentações, tornamo-nos mais humildes e adquirimos mais merecimento, o que nos induz a recorrer a Deus com mais frequência, e nós estamos mais longe de o ofendermos, unindo-nos mais intimamente a Ele com o seu Santo amor. 



 Santo Afonso Mª de Ligório - Ed. Biblioteca Católica

sábado, 14 de maio de 2022

8º Mandamento de Deus (continuação): Não levantar falso testemunho




 A calúnia 

1. A calúnia consiste a levantar a alguém falso testemunho ou aleive, de um defeito que não tem ou de uma falta que não cometeu.

2. A calúnia é um pecado horrendo, que não se perdoa sem que restituamos ao próximo o crédito que lhe tiramos com esse falso testemunho.

3. Restituie-se o crédito desdizendo-se ao caluniador diante de todas as pessoas que ouviram a calúnia. 


A maledicência ou murmuração

4. A maledicência e a murmuração consiste em dizer mal de alguém em sua ausência, e descobrir, sem necessidade, os defeitos, e faltas do próximo.

5. A murmuração é pecado mortal se descobrimos falta grave ou que diminue gravemente a reputação do próximo.

6. Quem murmura tem obrigação de restituir a reputação que prejudicou e reparar todo o dano que tiver causado.

7. Se ouvirmos com gosto a murmuração, ou concorremos para ela com perguntas, é pecado, porque somos cúmplices do mesmo. 

8. São Paulo diz que o céu está fechado para quem murmura.

9. Quando ouvimos caluniar ou murmurar devemos impedi-lo, se for possível, e ao menos não tomar parte na calúnia ou murmuração. 


O juízo temerário

10. Julgar temerariamente é assentar que o próximo fez algum mal sem termos grave fundamento para assim o julgarmos.

11. A suspeita, quando duvidamos se fazia ou não fazia mal, não é juízo temerário, porque na suspeita duvidamos, e no juízo temerário pensamos que o fez. 

12. Se tivermos fundamento grave para julgar, nem o juízo é temerário, nem a suspeita é injuriosa para o próximo. Só é pecado quando julgamos sem grave fundamento um mal grave. 

13. Quando é preciso revelar os defeitos do próximo não os devemos dar a conhecer senão a quem os possa remediar, ou àqueles que fossem prejudicados se não os advertíssemos. 

14. Ainda que uma coisa seja verdadeira, será pecado dizê-la, porque a caridade proíbe nos de tirar ao próximo a boa reputação de que ele goza. 

15. Não é murmurar dizer do próximo uma falta pública e conhecida; mas então é preciso evitar o que da nossa parte poderia revelar malícia. 

16. Há circunstâncias que aumentam a gravidade da calúnia e da murmuração, por exemplo quando dizemos mal de nossos superiores, de pessoas consagradas a Deus, ou diante de muita gente.

17. Em geral é proíbido contar a alguém o mal que se ouviu a seu respeito. A sagrada Escritura diz que Deus detesta aqueles que, pelas suas intrigas, semeiam a discórdia entre os irmãos. 


Explicação da gravura

18. A gravura está dividida em três partes. A parte superior representa a José conduzido à prisão por ter sido falsamente acusado pela mulher de Putiphar. 

19. Na parte inferior à esquerda vê-se o Sumo Sacerdote Aarão e Maria sua irmã diante da Arca da Aliança. O Senhor aparecendo-lhes censura-os por terem murmurado contra Moisés. Castigou Maria com lepra que durou sete dias.

20. Na parte inferior direita vê-se São Paulo na ilha de Malta, onde tinha desembarcado por causa duma tempestade. Os habitantes desta ilha receberam-no afavelmente; acenderam uma fogueira para se aquecerem Paulo deitou na fogueira sarmentos que apanhara, saindo dela uma víbora que se lhe enruscou na mão. Os bárbaros admirados exclamavam: Este homem deve ser um assassino, pois a justiça divina o persegue. Mas Paulo sacudiu a víbora, ficando ileso.


Fonte da imagem: http://www.sendarium.com
Texto: Catecismo Ilustrado, 1910 (com pequenas alterações devido à mudança ortográfica).
Edição da Juventude Católica de Lisboa.

sexta-feira, 13 de maio de 2022

8º Mandamento de Deus (continuação): Não levantar falso testemunho




 A mentira

1. Mentir é falar contra o próprio pensamento com intenção de enganar. O pai da mentira é o demônio. 

2. A mentira será pecado mortal, se tem consequências graves; se as não tem, será pecado venial.

3. A mentira é: ou jocosa, aquela que se diz gracejando ou por passa tempo; ou oficiosa, aquela que se diz para nos desculparmos ou em abono do próximo; ou danosa, aquela que causa dano ao próximo. 

4. A mentira faz injúria a Deus, porque é oposta a verdade, e Deus é a própria verdade. A mentira causa dano a sociedade porque tira a fé e a verdade. 

5. A simulação ou fingimento, e a hipocrisia são vícios que se referem a mentira. Há simulação quando uma pessoa exprime com atos externos o contrário do que sente no coração. A hipocrisia é uma simulação com que alguém procura parecer justo e virtuoso no exterior, não o sendo no interior.

6. A adulação refere-se também a mentira, porque é um vício em que, com louvores falsos ou exagerados, se procura captivar a benevolência do próximo para qualquer fim interesseiro. Devem fugir-se os aduladores como inimigos, porque a sua adulação tende principalmente a ruína espiritual do próximo.


Explicação da gravura 

7. Representa a gravura um terrível castigo da mentira. Lemos nos Atos dos Apóstolos: Um varão por nome Ananias com a sua mulher Safira, venderam um campo, e com fraude usurpou certa porção do preço do campo, consentindo-o sua mulher, e levando uma parte, a pôs aos pés dos Apóstolos. E disse Pedro: Ananias, porque tentou Satanás o teu coração, para que tu mentisses ao Espírito Santo e reservasses parte do preço do campo? Por ventura não te era lícito ficar com ele, e ainda depois de vendido não era teu preço? Como puseste logo em teu coração fazer tal? Sabe, que não mentiste aos homens, mas a Deus. Ananias em ouvindo porém estas palavras caiu e expirou. E infundiu-se um grande temor em todos os que isto ouviram. Levantando-se pois uns mancebos o retiraram e levando-o dali para fora, o enterraram. E passado que foi quase o espaço de três horas, entrou também sua mulher não sabendo o que tinha acontecido. E Pedro lhe disse: Dize-me, mulher, se vendestes vós por tanto a herdade? E ela disse: Sim, por tanto. Pedro então disse para ela: Porque vos haveis por certo concentrado para tentar o Espírito do Senhor? Eis aí estão à porta os pés daqueles que enterraram a teu marido e te levarão a ti. No mesmo ponto, caiu a seus pés e expirou. E aqueles moços entrando a acharam morta, e a levaram e enterraram junto ao seu marido. 

8. Na parte inferior esquerda vê-se a Eva, enganada pela serpente que lhe disse: "Se comerdes deste fruto não morrereis, mas vos tornareis semelhantes a Deus conhecendo o bem e o mal." Esta mentira do demônio perdeu todo o gênero humano.

9. Nosso Senhor chama ao demônio pai da mentira na seguinte passagem do Evangelho: Jesus disse: Porque não conheceis vos a minha fala? E porque não podeis ouvir a minha palavra. Vós sois filhos do diabo, e quereis cumprir os desejos do vosso pai; ele era homicida desde o princípio, e não permaneceu na verdade, porque a verdade não está nele. Quando ele diz a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira. Mas ainda que eu vos diga a verdade, vós não me credes. Qual de vós me arguirá de pecado? Se eu vos digo a verdade porque me não crede? O que é de Deus, ouve as palavras de Deus. Por isso vós não as ouvis, porque não sois de Deus. (João 8, 43-48).

10. Na parte inferior direita, vê-se o profeta Eliseu e seu servo Giesi. Este mentira dizendo-se enviado pelo profeta para pedir a Naaman um talento de prata e dois vestidos. Recebeu do general sírio dois talentos e dois vestidos. Mentiu de novo dizendo a Eliseu que não tinha saído de casa. Em castigo desta dupla mentira foi atacado de lepra, ele e todos os seus descendentes. 


Fonte da imagem: http://www.sendarium.com
Texto: Catecismo Ilustrado, 1910 (com pequenas alterações devido à mudança ortográfica).
Edição da Juventude Católica de Lisboa.

quinta-feira, 12 de maio de 2022

O ódio ao ser humano

 



Trecho do livro entrevista do Cardeal Robert Sarah e Nicolas Diat

O século XXI certamente será um tempo de novas utopias, de transumanismo, da busca de um ser humano perfeito e eterno. A seu ver, essas novidades são preocupantes?

A atual revolução tem um nome: humanidade "aprimorada"¹ ou transumanismo. Seus recursos passam pela nanotecnologia, pela biotecnologia, pelas ciências da computação e as ciências do cérebro (NBIC). O objetivo é ir além dos limites da humanidade e criar um super-homem. Esse projeto teórico está prestes a se tornar realidade. Aqui chegamos à consumação do processo de autonegação e ódio à natureza que caracteriza o homem moderno. O homem se odeia tanto que quer se reinventar. Mas ele corre o grande risco de se desfigurar irremediavelmente. Diante de tal perspectiva, qualquer pessoa sensata deveria estremecer. De fato, pode se observar que muitos estão profundamente desamparados. Foi dito que a liberdade humana é um absoluto. O Criador foi rejeitado. A própria noção de natureza foi desprezada. O que nos resta? Estamos sozinhos e desarmados, fomos deixados indefesos diante do que parece ser um pesadelo. Transgredimos todos os limites. Mas não percebemos que os limites estavam nos protegendo. Além do limite, há apenas a infinidade do vazio. Hoje, alguns homens de boa vontade e alguns legisladores procuram conter o movimento. Percebemos que o chamado progresso está indo rápido demais. Mas não é uma questão de velocidade. É o próprio movimento que nos leva ao nada. Falamos do pós-humano, mas, depois do humano, não há nada! Estamos presos à ideia de que tudo é possível desde que a lei o permita. Esse positivismo jurídico, que foi elevado ao estatuto de princípio, está chegando ao fim. Ele já não é capaz de nos proteger. Ele não desempenha mais seu papel, que consiste em dizer o que é certo e justo. Os homens estão abandonados à própria sorte. Como podemos evitar esse salto no escuro? Onde encontrar o limite que protegerá a humanidade? Onde procurar o princípio que pode nos guiar? Bento XVI, em um discurso ao Parlamento alemão, pronunciou palavras proféticas que soam como um aviso, ao mesmo tempo humilde e solene, para toda a humanidade: "Onde a razão positivista se considera como a única cultura suficiente, relegando todas as outras realidades culturais para o estado de subculturas, aquela diminui o homem, antes, ameaça a sua humanidade. [...] A razão positivista, que se apresenta de modo exclusivista e não é capaz de perceber algo para além do que é funcional, assemelha-se aos edifícios de cimento armado sem janelas, nos quais nos damos o clima e a luz por nós mesmos e já não queremos receber esses dois elementos do amplo mundo de Deus. [...] É preciso tornar a abrir as janelas, devemos olhar de novo a vastidão do mundo, o céu e a terra e aprender a usar tudo isto de modo justo. Mas, como fazê-lo? Como encontrarmos a entrada justa na vastidão, no conjunto? Como pode a razão encontrar a sua grandeza sem escorregar no irracional? Como pode a natureza aparecer novamente na sua verdadeira profundidade, nas suas exigências e com as suas indicações? [...] Quando na nossa relação com a realidade há qualquer coisa que não funciona, então devemos todos refletir seriamente sobre o conjunto e todos somos reenviados à questão acerca dos fundamentos da nossa própria cultura. Seja-me permitido deter-me um momento mais neste ponto. A importância da ecologia é agora indiscutível. Devemos ouvir a linguagem da natureza e responder-lhe coerentemente. Mas quero insistir num ponto que - a meu ver - hoje como ontem, é descurado: existe também uma ecologia do homem. Também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece. O homem não é apenas uma liberdade que se cria a si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza, e a sua vontade é justa quando respeita a natureza e a escuta e quando se aceita a si mesmo por aquilo que é e que não se criou por si mesmo. Assim mesmo, e só assim, é que se realiza a verdadeira liberdade humana. [...] É verdadeiramente desprovido de sentido refletir se a razão objetiva que se manifesta na natureza não pressuponha uma Razão criadora, um Creator Spiritus?".

Estamos chegando ao final de um ciclo. A questão do transumanismo nos coloca diante de uma escolha entre civilizações. Podemos continuar na mesma direção, mas então nos arriscamos, literalmente, a desistir de nossa humanidade. Se quisermos permanecer humanos, devemos aceitar nossa natureza de criaturas e novamente nos voltarmos para o Criador. O mundo escolheu se organizar sem Deus, viver sem Deus, pensar em si mesmo sem Deus. Ele está fazendo uma experiência terrível: onde quer que Deus não esteja, lá está o inferno. O que é o inferno senão a privação de Deus? A ideologia transumanista é uma ilustração perfeita disto. Sem Deus, resta apenas o que não é humano, o pós-humano. Mais do que nunca a alternativa é simples: Deus ou nada!

O filósofo Guy Coq afirmou recentemente em uma conferência intitulada "Face de Deus, faces do homem": "A barbárie, isto é, a possibilidade de destruir a essência da civilização, progride passo a passo. A barbárie não vem ao nosso encontro dizendo: Eu sou a barbárie. Fiquem com medo. Vejam como é ampla a desumanidade que trago comigo. [...] Nossa civilização é como um ser humano bêbado caminhando na beira de um abismo. Alguns passos o aproximam dele, outros o afastam. Mas ele não sabe exatamente onde está a borda do abismo. Então pode ocorrer que um pequeno passo mais perto da borda cause o desastre final. Esse seria um pequeno passo que levaria longe demais. Se o caminhante quer evitar o pior, deve estudar cuidadosamente o seu caminho, tentando entender que esse passo deve ser evitado".

A tentação transumanista é aquele pequeno passo para longe que nos lança ao vazio. Ao produzir seres humanos modificados ou aprimorados, isso nos levaria a abolir a fronteira entre sujeito e objeto. Hoje tenho a consciência, quando vejo uma pessoa, que ela não é uma coisa que está à venda e disponível para mim, mas sim um outro "eu mesmo". Mas quem dirá amanhã onde está a fronteira entre o humano e o não humano? Se o ser humano se tornar um produto fabricado, quem poderá medir sua dignidade natural?

Será que estamos suficientemente conscientes do que dizemos quando falamos de seres humanos aprimorados? Será que em breve haverá várias classes de seres humanos: Seres humanos ordinários e seres humanos aprimorados? Qual será o valor, o preço, os direitos de um e de outro? Afligi-me pensar que em breve, talvez, alguns homens possam se sentir e se crer superiores a outros em razão de suas próteses tecnológicas.

É preciso enfatizar que esse projeto rompe a lógica médica. O que está em questão já não é mais tratar ou reparar uma natureza danificada por um acidente. Trata-se de criar, inventar uma raça nova e patenteada. João Paulo II escreveu em Fides et ratio: "Alguns homens de ciência, privados de qualquer referência ética, arriscam-se a não ter mais como centros de interesse a pessoa e sua vida como um todo. Além disso, alguns deles, conscientes das potencialidades internas do progresso tecnológico, parecem ceder, mais do que à lógica do mercado, à tentação de um poder de demiurgo sobre a natureza e sobre o próprio ser humano". Os loucos partidários da ideia de um ser humano aprimorado falam assim em estabelecer um vasto programa de melhoramento da população. Planeja-se aumentar o QI. Por meio de implantes de dispositivos no cérebro usando tecnologias computacionais, espera-se dar a alguns homens novas habilidades. Queremos tornar as pessoas aptas e eficazes. Já as técnicas de procriação artificial, triagem embrionária pré-implantação, generalização do diagnóstico pré-natal de doenças genéticas têm trazido gradativamente para as mentes das pessoas uma lógica marcada pela eugenia. Considera-se normal eliminar embriões, isto é, seres humanos muito pequenos, que não correspondem ao nosso padrão. Quem vai definir o padrão amanhã? Quem dirá se determinada pessoa é boa o suficiente ou precisa ser aprimorada? Não está o transumanismo tentando criar uma raça de senhores? Essas questões são aterradoras e nos preocupam profundamente. A terrível experiência das loucuras assassinas do século XX deveria servir de lição para nós. 

Diante dessa tentação de onipotência, gostaria de expressar meu amor e meu infinito respeito pela fraqueza. Vocês, os doentes, os de corpo ou inteligência frágil, vocês que têm alguma deficiência ou malformação, vocês são grandiosos! Vocês têm uma dignidade especial, porque vocês são singularmente parecidos com o Cristo crucificado. Permitam-me dizer a vocês que toda a Igreja se ajoelha à sua frente porque vocês carregam a imagem, a presença Dele. Queremos servir a vocês, amá-los, consolá-los, apaziguá-los. Queremos também aprender com vocês. Vocês nos pregam o evangelho do sofrimento. Vocês são um tesouro. Vocês nos mostram o caminho, como recordou o cardeal Ratzinger em uma conferência realizada em um encontro internacional organizado pelo Pontifício Conselho para a Pastoral dos Serviços de Saúde: "A luz de Deus repousa sobre as pessoas que sofrem, nas quais o esplendor da Criação é obscurecido externamente; elas são de um modo muito particular semelhantes ao Cristo crucificado, ao ícone do amor, e têm certos pontos em comum com aquele que sozinho é 'a própria imagem de Deus'. Podemos atribuir-lhes a designação formulada por Tertuliano, referindo-se a Cristo: 'Por mais miserável que seja o seu corpo [...], será sempre o meu Cristo' (Adv. Marc. III, 17,2). Por maiores que sejam os seus sofrimentos, por mais desfigurados e manchados que eles sejam em sua existência humana, serão sempre os filhos privilegiados de Nosso Senhor, serão sempre, de modo particular, a imagem dele". 

A Cruz é a resposta última a essa ideologia que, por fraqueza, sonha em acabar com toda a finitude: a fadiga, a dor, a doença e até a morte. Creio, pelo contrário, que a finitude assumida e amada é o coração de nossa civilização. O sonho prometeico de uma vida infinita, de um poder infinito, é um engodo, uma tentação diabólica. O transumanismo promete nos tornar "concretamente" deuses. Essa utopia é uma das mais perigosas da história da humanidade: a criatura nunca quis se distanciar tanto do Pai. As palavras de Nietzsche em A Gaia Ciência se tornam realidade: "Deus está morto! E fomos nós que o matamos! [...] O que o mundo até agora possuía de mais sagrado e mais poderoso perdeu seu sangue sob nossa faca. [...] não é magnitude deste ato grande demais para nós? Não somos simplesmente forçados a nos tornarmos deuses?".

Os homens de ciência certamente rirão de mim e de minha ignorância. Mas, como homem de fé, gostaria de proclamar, sem constrangimento nem medo, que o "super-homem" é um mito e que o projeto prometeico está fundamentalmente errado.

Paradoxalmente, essa loucura expressa a trágica nostalgia de um paraíso perdido. Antes do pecado original, o homem não conhecia a morte e permanecia eternamente perto de Deus. Parece que o homem quer recuperar, com seus próprios esforços, o bem que ele perdeu por sua própria culpa. No fundo sabemos que a morte e o sofrimento não podem ter a última palavra. Sentimos dentro de nós o chamado da eternidade e do infinito. No entanto, o homem não pode deixar de ser, devido à sua natureza humana, uma criatura infinitamente distante do Criador. O homem nunca conseguirá se unir a Deus por seus próprios esforços humanos, elevar-se a Ele e viver a vida Dele. O homem só pode viver a vida de Deus, chamada graça santificante, se Deus a der para ele como um dom totalmente gratuito. O homem não tem nenhum direito a esse dom, pois ele é pura gratuidade e amor da parte de Deus, e transcende infinitamente todas as possibilidades da natureza humana. O homem é essencialmente dependente. Ele sabe que é chamado por Deus para um propósito que está além dele. Deus quis assim, que nós não encontrássemos a plena realização de nossa felicidade nesta terra. Deus não nos criou apenas para a perfeição natural. Deus, criando-nos à sua imagem e semelhança, tinha um propósito infinitamente superior à perfeição da natureza. Nós existimos apenas para esta vida sobrenatural. É para a eternidade que Deus criou os homens. 

A santidade é a máxima plenitude que nos eleva à altura de Deus. A nossa perfeição, a nossa santidade, é obra de Deus e de Sua graça. Nunca desaparecerá o abismo infinito que existe entre a ordem natural e a ordem sobrenatural, entre a vida da natureza humana e a vida da graça, que é a própria vida de Deus dada aos homens. A santidade assume a natureza e não a contradiz, mas a supera infinitamente. 

A Igreja prolonga a missão de Cristo, que busca levar o homem à perfeição, à sua divinização: "Lembrai-vos dos vossos dirigentes, que vos anunciaram a palavra de Deus. Considerai como terminou a vida deles, e imitai-lhes a fé. Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje; ele o será para a eternidade! Não vos deixeis enganar por doutrinas ecléticas e estranhas" (Hb 13,7-9).


1. "Humanidade aprimorada" e "homem aprimorado" traduzem, respectivamente, humanité augmentée e homme augmenté (lit.:"humanidade aumentada" e "homem aumentado"). Essas expressões resumem as pretensões do chamado movimento "transumanista" cujas teses fundamentais foram criticadas no documento Comunión y corresponsabilidad: Personas humanas creadas a imagem de Dios da Comissão Teológica Internacional da Santa Sé (2002) (N.T.). 


Cardeal Robert Sarah e Nicolas Diat - A noite se aproxima e o dia já declinou. Ed. Fons Sapientiae, p. 200-7.





terça-feira, 10 de maio de 2022

O que é mérito?

 




Certa vez, li na secção de pequenas notícias de um jornal que um homem construiu uma casa para a sua família. Ele mesmo executou quase todas as obras, investindo todas as suas economias nos materiais. Quando terminou, verificou com horror que se tinha enganado de propriedade e que a tinha construído no terreno de um vizinho. Este, tranquilamente apossou-se da casa, enquanto o construtor não pode fazer outra coisa senão chorar o dinheiro e o tempo perdidos.

Por lamentável que nos pareça a história deste homem, não chega a ter importância se a compararmos com a da pessoa que vive sem a graça santificante. Por nobres e heroícas que sejam as suas ações, não têm valor aos olhos de Deus. Se não recebeu o Batismo ou está em pecado mortal, essa alma separada de Deus vive os seus dias em vão. As suas dores e tristezas, os seus sacrifícios e bondades, tudo está desprovido de valor eterno, desperdiça-se diante de Deus. Não existe mérito no que faz. Então, o que é esse mérito?

O mérito foi definido como aquela propriedade de uma obra boa que habilita quem a realiza a receber uma recompensa. Estou certo de que todos concordamos em afirmar que, em geral, agir bem exige certo esforço. É fácil ver que alimentar um faminto, cuidar de um doente ou fazer um favor ao próximo requer certo sacrifício pessoal. Vê-se facilmente que estas ações têm um valor, e que por isso merecem, ao menos potencialmente, um reconhecimento, uma recompennsa. Mas esta recompensa não pode ser pedida a Deus, se Ele não teve parte nessas ações, se não existe comunicação entre Deus e aquele que as faz. Se um operário não quer que o incluam na folha de pagamento, não poderá exigir o seu salário por mais que trabalhe. 

Por isso, só a alma que está em graça santificante pode adquirir méritos pelas suas ações. É esse estado que dá valor de eternidade a uma ação. As ações humanas, se são puramente humanas, não tem nenhuma significação sobrenatural. Só adquirem valor divino quando se tornam obras do próprio Deus. E as nossas ações são em certo sentido obra de Deus quando Ele está presente numa alma pela graça santificante. 

"Diante de Deus, em sentido estritamente jurídico, não há mérito da parte do homem. Entre Ele e nós, a desigualdade é infinita, pois dEle, que é nosso Criador, recebemos tudo. [...] Aliás, o próprio mérito do homem depende de Deus, pois as suas boas ações procedem, em Cristo, das inspirações e do auxílio do Espírito Santo. [...]

 "A caridade de Cristo em nós constitui a fonte de todos os nossos méritos diante de Deus. A graça, unindo-nos a Cristo com um amor ativo, assegura a qualidade sobrenatural dos nossos atos e, por conseguinte, o seu mérito tanto diante de Deus como diante dos homens. Os santos sempre tiveram viva consciência de que os seus méritos eram pura graça" (ns. 2007 e 2011; cf. também os ns. 2571-85 e 2588-9).

E isto é tão verdadeiro que a menor das nossas ações adquire valor sobrenatural quando a fazemos em união com Deus. Tudo o que Deus faz, ainda que o faça através de instrumentos livres, tem valor divino. Isto permite que a menor das nossas obras, desde que moralmente boa, seja meritória enquanto tivermos a intenção, ao menos habitual, de fazer tudo por Deus.

Se o mérito é "a propriedade de uma obra boa que habilita quem a realiza a receber uma recompensa", e pergunta imediata e lógica será: Que recompensa? As nossas ações sobrenaturalmente boas merecem, mas merecem o quê? A recompensa é tripla: primeiro, um aumento de graça santificante; segundo, a vida eterna; e, terceiro, maior glória no céu. Sobre a segunda parte deste recompensa - a vida eterna -, é interessante ressaltar um aspecto: para a criança batizada, o céu é uma herança que lhe cabe pela sua adoção como filha de Deus, incorporada em Cristo; mas para o cristão no uso da razão, o céu é tanto herança como recompensa que Deus promete aos que o servem.

Quanto ao terceiro elemento do prêmio - uma maior glória no céu -, vemos que é conseqüência do primeiro. O nosso grau de glória dependerá do grau de união com Deus, da medida em que a graça santificante tiver empapado a nossa alma. A nossa capacidade de glória no céu crescerá tanto quanto crescer a graça em nós.

No entanto, para alcançarmos a vida eterna e o grau de glória que tenhamos merecido, devemos, é claro, morrer em estado de graça. O pecado mortal arrebata todos os nossos méritos, como a falência de um banco arruína as economias de toda uma vida. E não há maneira de adquirir méritos depois da morte, nem no purgatório, nem no inferno, nem sequer no céu. Esta vida - e só esta vida - é o tempo de prova, o tempo de merecer. 

Mas é consolador saber que os méritos que podemos perder pelo pecado mortal se restauram tão logo a alma se reconcilia com Deus por um ato de contrição perfeita ou por uma confissão bem feita. Os méritos revivem no momento em que a graça santificante volta à alma. Em outras palavras, o pecador contrito não tem que começar de novo: o seu tesouro anterior de méritos não está perdido para sempre.

Para você e para mim, que significa, na prática, viver em estado de graça santificante? Para responder à questão, observemos dois homens que trabalham juntos no mesmo escritório (na mesma fábrica, loja ou fazenda). Para quem os observe casualmente, os dois são muito parecidos. Têm a mesma categoria de trabalho, ambos são casados e têm família, ambos levam essa vida que poderíamos qualificar como "respeitável". Um deles, porém, é o que poderíamos chamar "indiferente". Não pratica nenhuma religião, e poucas vezes, para não dizer nenhuma, pensa em Deus. A sua filosofia é que a felicidade de cada qual depende dele mesmo, e por isso deve procurar tirar da vida tudo o que esta pode oferecer. "Se eu não o consigo - diz ele -, ninguém o fará por mim".

Não é um mau homem. Pelo contrário, em muitas coisas desperta admiração. Trabalha como um escravo porque quer triunfar na vida e dar à família tudo o que haja de melhor. Dedica-se sinceramente aos seus: orgulhoso da mulher, a quem considera uma companheira encantadora e generosa, devotado aos filhos, nos quais vê uma prolongação de si mesmo. "Eles são a única imortalidade que me interessa", diz ele aos seus amigos. É um bom amigo, apreciado por todos os que o conhecem, moderadamente generoso e consciente dos seus deveres cívicos. A sua laborosidade, sinceridade, honradez e delicadeza não se baseiam em princípios religiosos: "Isso é decente ou honesto - explica -; tenho que fazê-lo por respeito a mim mesmo e aos outros".

Temos aqui em breves traços o retrato do homem "naturalmente" bom. Todos nós tropeçamos com ele alguma vez e, ao menos externamente, enchemo-nos de vergonha pensando em mais de uma pessoa que se chama cristã, mas parece encontrar-se muito abaixo na escala moral. E, apesar disso, sabemos que esse homem falha no mais importante. Não faz o que é decente, porque ignora a única coisa realmente necessária, o fim para que foi criado: amar a Deus e provar esse amor cumprindo a Vontade divina. Precisamente por ser tão bom em coisas menos transcendentais, a nossa compaixão por ele é maior, a nossa oração por ele mais compassiva. 

Dirijamos agora a nossa atenção ao outro homem, esse que trabalha sentado à mesa, diante de um computador ou no balcão contíguo. À primeira vista, parece uma cópia do primeiro; não há diferença: em posição, família, trabalho e personalidade. Mas existe uma diferença incalculável que os olhos não podem apreciar facilmente, porque reside na intenção. A vida do segundo não se baseia no "decente" ou no "respeito por si mesmo", ou pelo menos, não principalmente. Os afetos e aspirações naturais, que partilha com todo o gênero humano, nele se transformam em afetos e aspirações mais altos: o amor a Deus e o desejo de cumprir a sua Vontade. 

A sua esposa não é apenas a companheira no lar; é também companheira no altar. Ele e ela estão associados a Deus e ajudam-se mutuamente a caminhar para a santidade, cooperam com Deus na criação de novos seres humanos destinados à glória eterna. O amor que dedica aos filhos não é mera extensão do amor por si mesmo; vê-los como uma solene prova de confiança que Deus lhe dá, considera-se como simples administrador que um dia terá que prestar contas dessas almas. O seu amor por eles, como o amor à mulher; é parte do seu amor a Deus.

O seu trabalho é mais do que uma oportunidade de ganhar a vida e progredir. É parte da sua paternidade sacerdotal, é meio para atender às necessidades materiais da sua família e parte do plano querido por Deus para ele. Realiza assim o melhor que pode o seu trabalho, porque compreende que ele próprio é um instrumento nas mãos de Deus para completar a obra da Criação do mundo.

"O trabalho humano procede imediatamente das pessoas criadas à imagem de Deus e chamadas a prolongar, umas com e para as outras, a obra da criação dominando a terra. O trabalho é, pois, um dever: Se algum de vós não quer trabalhar, também não coma ( 2 Tes 3,10). O trabalho honra os dons do Criador e os talentos recebidos. Também pode ser redentor. Suportando em união com Jesus, o artesão de Nazaré e o crucificado do Calvário, o que o trabalho tem de penoso, o homem colabora de certa maneira com o Filho de Deus na sua obra redentora e mostra-se discípulo de Cristo, carregando a cruz de cada dia na atividade que é chamado a realizar. O trabalho pode ser um meio de santificação e uma animação das realidades terrenas no Espírito de Cristo" (n. 2427).

A Deus só pode oferecer o melhor, e este pensamento acompanha-o ao longo do dia. A sua cordialidade natural está impregnada de espírito de caridade; a sua generosidade, aperfeiçoada pelo desprendimento; a sua delicadeza, imbuída da compaixão de Cristo. Talvez não pense frequentemente nestas coisas mas também não passa o dia pendente de si mesmo e das suas virtudes. Começou a jornada com o ponto de mira bem centrado: em Deus e longe de si. "Meu Deus - disse ele -, ofereço-te todos os meus pensamentos, palavras e ações, e as contrariedades de hoje..." Talvez tenha dado ao seu dia o melhor dos começos assitindo à missa. 

Mas existe outra coisa que é imprescindível para fazer deste homem um homem autenticamente sobrenatural. A reta intenção é necessária, mas não basta. O seu dia deve não só dirigir-se a Deus, como deve ser vivido em união com Ele, para que tenha valor eterno. Em outras palavras, esse homem deve viver em estado de graça santificante. 

Em Cristo, a mais insignificante das ações tinha valor infinito, porque sua natureza humana estava unida à sua natureza divina. Tudo o que Jesus fazia, Deus o fazia. De modo semelhante - mas só semelhante -, o mesmo se passa conosco. Quando estamos em graça, não possuímos a natureza divina, mas participamos da natureza de Deus, compartilhamos a vida divina de uma maneira especial. Em consequência, qualquer coisa que façamos - exceto o pecado -, Deus o faz por nós. Deus, presente na nossa alma, vai dando valor eterno a tudo o que fazemos. Até a mais caseira das ações - limpar o nariz da criança ou trocar uma lâmpada - merece um aumento de graça santificante e um grau mais alto de glória no céu, se a nossa vida está centralizada em Deus. Eis o que significa viver em estado de graça santificante, eis o que significa ser um homem sobrenatural

 


Leo J. Trese -  A Fé Explicada ed. Quadrante, p. 104-9.

sábado, 7 de maio de 2022

Sobre Erros Contemporâneos e o Modo de os Combater



 Santo Padre, Papa Pio IX

Encíclica "Qui pluribus"

Carta Encíclica

A todos os Patriarcas, Primazes, Arcebispos e Bispos: sobre os principais erros contemporâneos e o modo de os combater. 

PIO PP. IX    

(Reinado 1846-1878)

Veneráveis Irmãos: Saudação e Benção Apostólica.

Primeira saudação do Pontífice

1. Já vão muitos anos, Veneráveis Irmãos, exercíamos Nós o múnus pastoral ao vosso lado, múnus pleno de labor e solícitos cuidados, e Nos esforçávamos por apascentar o rebanho a Nós confiado, nas montanhas de Israel, pelas ribeiras e pastos mui exuberantes; agora, porém, pela morte de Nosso esclarecido predecessor Gregório XVI, cuja memória e feitos ilustres e gloriosos, insertos nos fastos da Igreja, a postres e gloriosos, insertos nos fastos da Igreja, a posteridade há de admirar, fomos eleitos, contra toda conjetura e pensamento Nosso, por disposição da divina Providência, e não sem grande temor e perturbação Nossa, para o Sumo Pontificado. O peso do ministério apostólico foi sempre considerado como um fardo; mas nos tempos que fluem mais deve ser considerado como tal, de modo que, ciente de nossa debilidade e considerando os gravíssimos problemas do supremo apostolado, sobretudo em circunstâncias tão agitadas, dever-nos-íamos entregar à tristeza e ao pranto, por não termos posto toda a Nossa esperança em Deus, Salvador nosso, que nunca abandona os que n'Ele esperam e que, para mostrar a virtude de seu poder, lança mão do mais fraco para reger a Igreja, a fim de que a todos se patenteie com mais evidência ser Deus mesmo quem governa e defende a Igreja, em sua admirável providência. Anima-Nos grandemente o consolo de pensar que, ao procurar a salvação das almas, podemos contar com vossa ajuda, Veneráveis Irmãos, os quais, chamamos a trabalhar numa parte do que foi cometido à Nossa solicitude, vos empenhais em cumprir com vosso ministério e em combater o bom combate, com todo cuidado e esmêro. Pelo menos motivo, apenas elevado à Cátedra do Príncipe dos Apóstolos, sem merecê-lo, e após recebermos o encargo, do mesmo Príncipe dos Pastores, de fazer as vezes de São Pedro no pastoreio e governo, não somente dos cordeiros, isto é, de todo o povo cristão, mas também das ovelhas, quer dizer, dos Prelados, nada mais desejamos tanto como falar-vos com afeto íntimo de caridade. E mal tomáramos posse do Sumo Pontificado em Nossa Basílica de Latrão, segundo o costume de Nossos Predecessores, incontinenti vos enviamos esta carta, visando excitar o vosso zelo para que, com vigilância, esforço e porfia maiores, guardando vosso rebanho e por ele velando, lutando com fortaleza episcopal e constância contra o terrível inimigo do gênero humano, como bons soldados de Jesus Cristo, oponhaos uma muralha inexpugnável para a defesa da casa de Israel. 


Os novos erros

2. Não vos é segredo, Veneráveis Irmãos, que nestes nossos tempos calamitosos foi desencadeada uma guerra cruel e temível  contra tudo quanto é católico, por homens que, unidos em perversa sociedade e imbuídos de doutrina malsã, fechando seus ouvidos à verdade, têm propalado e disseminado, por entre o povo, doutrinas falsas de toda espécie, provindas do erro e das trevas. Horroriza-se-Nos e se confrange o coração de dor, ao considerar os erros monstruosos e os múltiplos artifícios inventados para causar dano; as insídias, as maquinações com que esses inimigos da luz e obreiros ardilosos do erro se esforçam por apagar toda piedade, toda justiça, toda honestidade; em depravar os costumes; em calcar aos pés os direitos divinos e humanos; em perturbar a religião católica e a sociedade civil e até mesmo arrancá-las pela raiz, caso lhes fosse possível. Porque sabeis, Veneráveis Irmãos, que esses inimigos do homem cristão, arrebatados por impeto cego de desvairada impiedade, em sua temeridade chegam até, com audácia jamais vista, abrindo sua boca e proferindo blasfêmias contra Deus (Ap 13,6), a ensinar pública e desavergonhadamente que os mistérios de nossa religião sacrossanta são contos inventados pelos homens, que a doutrina da Igreja vai contra o bem-estar da sociedade humana, e até se atrevem a insultar o próprio Cristo Deus.  

E para mais facilmente se rirem dos povos, enganar os incautos e arrastá-los juntamente ao erro, pensando possuir somente eles o segredo da prosperidade, arrogam-se o título de filósofos, como se a filosofia, que se compreende toda a investigação de verdade natural, devesse repelir tudo aquilo que o supremo e clementíssimo autor da natureza - Deus - se dignou manifestar aos homens por singular benefício e misericórdia, a fim de que consigam a verdadeira felicidade.

3. Daqui é que eles, com argumento torcido e falaz, se esforçam por proclamar a força e excelência da razão humana, superpondo-a a toda fé em Cristo e afoitamente vociferam que essa fé se opõe à tal razão humana. Nada mais insensato, nada mais ímpio, nada mais contrário à própria razão poderiam ter eles excogitado. Porque, ainda quando a fé esteja acima da razão, entre elas não há nem oposição e nem desavença alguma, já que ambas procedem da mesma fonte da verdade eterna e imutável, Deus Ótimo e Máximo; e de tal forma se prestam mútuo auxílio, que a reta razão demostra, confirma e defende as verdades da fé; e a fé preserva a razão de erros, ilustra-a, corrobora-a e aperfeiçoa-a, com o conhecimento das verdades divinas.

4. E não é com engano e ousadia menores, Veneráveis Irmãos, que esses inimigos da revelação divina, exaltando o progresso humano, quiseram contrapô-lo temerária e sacrilegamente à religião católica, como se a religião não fosse obra de Deus, mas sim dos homens, ou então fosse algum invento filosófico que se pode aperfeiçoar por vias humanas. A esses sonhadores tão míseros opõem-se diretamente o que Tertuliano objurgava aos filósofos do seu tempo: que falavam de um Cristianismo platônico, estóico, dialético (Tertuliano, De Praescriptione, cap. 8).


A razão e a fé 

5. Sendo verdade que nossa religião santíssima não foi inventada pela razão humana, mas sim manifestada  clementíssimamente por Deus aos homens, facilmente se compreende que essa religião há de haurir sua força da autoridade do mesmo Deus, que, portanto, não pode ser deduzida da razão humana e nem por ela aperfeiçoar-se. Para que não erre e se transvie em assunto de tamanha importância, a razão humana deve investigar diligentemente o fato da revelação divina, para que se certifique ter Deus falado e estar prestando, como diz o Apóstolo (Rm 13,1), razoável obséquio. Quem há que possa ignorar que, quando Deus fala, se lhe deva prestar plena fé e que não há nada tão conforme à razão como assentir e aderir firmemente ao que é certo ter Deus revelado, pois ele não pode enganar e nem ser enganado?

6. Há, contudo, além do mais, muitos argumentos maravilhosos e esplêndidos, nos quais a razão humana pode repousar convencida; argumentos com os quais se prova a divindade da religião de Cristo e que todo princípio de nossos dogmas tem seu fundamento no próprio Senhor dos céus (S. João Crisóstomo, Homilia I in Is.) e que, igualmente, nada há mais certo que nossa fé, nada mais santo, nada mais seguro e que se apóie em princípios mais sólidos. Esta nossa fé, mestra da vida, norma de salvação, inimiga de todos os vícios e mãe fecunda das virtudes, confirmada com o nascimento do seu divino autor e consumador, Jesus Cristo; com sua vida, morte, ressurreição, sabedoria, portentos, vaticínios, refulgindo por toda parte com a luz da doutrina eterna, enriquecida com os tesouros de riquezas celestiais, com os vaticínios dos profetas, com o esplendor dos milagres, com a constância dos mártires, com a glória dos santos, singular em dar a conhecer as leis da salvação em Cristo Nosso Senhor, revigorando-se dia a dia com a crueldade das perseguições, esta nossa fé invadiu o mundo inteiro, percorrendo-o por mares e terras, desde o levante até o poente; arvorando, como único pavilhão, a Cruz; aludindo os ídolos falazes e devassando a escuridão das trevas; havendo derrotado, em toda parte, os inimigos que se lhe opuseram, ilustrou, com a luz do conhecimento divino, os povos todos, os gentios, as nações de índole e costumes bárbaros, por meio de leis e instituições diversas; sujeitou-os ao jugo de Cristo, anunciando-lhes, a todos, a paz e promentendo-lhes o bem verdadeiro. E em tudo isso reluz tão profusamente o fulgor do poder e sabedoria divinos, que a mente humana facilmente compreende ser a fé cristã obra de Deus. Desta forma a razão humana, concluindo, desses argumentos esplêndidos e firmíssimos, ser Deus o autor da mesma fé, não pode penetrar mais; porém, vencida qualquer dificuldade e dúvida, mesmo que remotas, deve adquirir pleno conhecimento, sabendo, com certeza, que tudo quanto a fé propõe aos homens para crer e fazer, há sido revelado por Deus.


A Igreja, mestra infalível

7. Daqui se evidencia claramente em que erro tamanho laboram os que, abusando da razão e tomando como obra humana o que Deus comunicou, ousam explicá-lo a seu talante e interpretá-lo temerariamente, sendo que o próprio Deus constituiu uma autoridade viva para ensinar o sentido verdadeiro e legítimo de sua revelação celeste e estabecê-lo solidamente, a fim de dirimir toda controvérsia em questões de fé e costumes, com juízo infalível, para que os homens não sejam induzidos ao erro por qualquer inconsistente doutrina. Esta autoridade viva e infalível existe somente na Igreja fundada por Cristo Nosso Senhor, sobre Pedro, como cabeça de toda a Igreja, Príncipe e Pastor; cuja fé prometeu nunca haver de fraquejar; que nos Pontífices tem e sempre teve legítimos sucessores, trazendo sua origem ininterrupta desde Pedro, sentados em sua mesma Cátedra, herdeiros também de sua doutrina, dignidade, honra e poder. E porque onde está Pedro aí está também a Igreja (S. Ambrósio in Psal. 40), e porque Pedro fala pelo Romano Pontífice (Conc. Calc., Act. 2), vive sempre em seus sucessores, exerce a jurisdição (Synod. Efes., act. 3) e comunica a verdade da fé aos que a buscam (S. Pedro Crisol., Epist. ad Eutich.); por isso as palavras divinas hão de ser recebidas naquele sentido no qual as conservou e conserva esta Cátedra de S. Pedro, que, sendo mãe e mestra das Igrejas (Conc. Trind. Sess. 7, de Bapt.), sempre tem mantido íntegra a fé de Cristo Nosso Senhor, e a mesma ensinou aos fiéis, mostrando a todos os caminhos da salvação e a doutrina da verdade incorruptível. Visto que esta é a principal Igreja da qual procede a unidade sacerdotal (S. Cyprian. Epist. ad Cronel.), está é a metrópole da piedade, na qual lança raízes a solidez íntegra da religião cristã (Litt. Synod. Ioan. Constant. ad Hormisd. Pontif. et Sozon. Histor., lib. 3, cap. 8), na qual sempre prosperou o principado da Cátedra apostólica (S. August. Epistola 162), à qual, por sua eminente primazia, é necessário que toda a Igreja acorra, isto é, os fiéis que estão em todo o mundo (Iren., Contra Haereses, 1. 3, c. 3), na qual o que não colhe, dispersa (S. Ieron., Epistola ad Damasum Pontificem). Nós, que, por insondável desígnio de Deus, fomos elevados a esta Cátedra da verdade, estimulamos, Veneráveis Irmãos, com veemência no Senhor, o vosso zelo, para que solícita e assiduamente exorteis os fiéis confiados ao vosso cuidado, de modo que, aderindo solidamente a estes princípios, não permitiam ser induzidos ao erro por aqueles que, abomináveis por suas doutrinas, pretendem destruir a fé com o resultado dos seus progressos e querem, impiamente, submeter esta mesma fé à razão, falsear a palavra de Deus e dessa forma injuriar gravemente a Deus, que, com grande compaixão, se dignou atender ao bem e à salvação dos homens com sua religião celestial.


Outra classe de erros

8. Conheceis também, Veneráveis Irmãos, outra espécie de erros e enganos mostruosos, com os quais os filhos deste século atacam a religião cristã, a autoridade divina da Igreja e suas leis, e se empenham em espezinhar os direitos da autoridade sagrada e civil. Tais são as nefandas tentativas contra esta Cátedra Romana de S. Pedro, na qual Cristo pôs o fundamento inexpugnável de sua Igreja. Tais são as seitas clandestinas provindas das trevas para a ruína e destruição da Igreja e do Estado, condenadas pelos Romanos Pontífices, nossos antecessores, com reiterados anátemas em suas cartas apostólicas (Clement. XII, Const. In eminenti; Bento XIV, Const. Providas; Pio VII, Const. Ecclesiam a Iesu Christe; Leão XII, Const. Quo graviora), os quais Nós com pleno poder, confirmamos e ordenamos que se observem com toda diligência. Tais são as dissimuladas Sociedades Bíblicas que, renovando as antigas maneiras dos hereges não cessam de adulterar o significado dos livros sagrados, traduzidos em uma linguagem vulgar qualquer, contra as regras santíssimas da Igreja, interpretados frequentemente por explicações falsas, os distribuem gratuitamente em avultado número de exemplares, com altos gastos, aos homens de qualquer condição, ainda que rudes, a fim de, postergando a divina Tradição, a doutrina dos Padres e a autoridade da Igreja Católica, cada qual interprete a seu bel-prazer o que Deus há revelado, desvirtuando seu sentido genuíno, incorrendo em erros gravíssimos. A tais sociedades Gregório XVI, a quem imerecidamente sucedemos, seguindo o exemplo dos antecessores, reprovou, com suas cartas apostólicas (Gregório XVI, Inter Praecipuas), e igualmente Nós também reprovamos. Tal é o sistema perverso e oposto à luz natural da razão, o qual propugna pela indiferença em matéria de religião, por meio da qual esses inveterados inimigos da religião, obliterando toda distinção entre virtude e vício, verdade e erro, honestidade e vileza, asseveram que se pode alcançar a salvação eterna em qualquer religião, como se acaso pudessem consorciar-se a justiça e a iniquidade, a luz e as trevas, Cristo e Belial. Tal é a vil conspiração tramada contra o celibato clerical que, oh dor! vem sendo apoiada por algumas pessoas eclesiásticas, as quais, esquecidas lastimosamente de sua dignidade, deixam-se seduzir e corrompe miseramente a juventude incauta, propinando-lhe fel do dragão em cálice de Babilônia; tal é a nefanda doutrina do comunismo, contrário ao direito natural, que, uma vez aceita, lança por terra os direitos de todos, a propriedade, a própria sociedade humana; tais as insídias tenebrosas daqueles que, em pele de ovelhas, mas sendo lobos rapaces, insinuando-se fraudulamente com sua aparência de piedade sincera, de virtude e disciplica, intrometem-se humildamente, captam com brandura, atacam delicadamente, matam às ocultas, afastam os homens de toda religião, sacrificam e destroçam as ovelhas do Senhor. Tal, por fim, para não referir tudo o mais, de vosso pleno conhecimento, a propaganda infame, de livros e folhetos que voam por todos os recantos, ensinando os homens a pecar; livros e folhetos que, compostos com arte e imbuídos de enganos e artifício, profusamente esparsos para ruína do povo cristão, semeiam doutrinas pestíferas, depravam o coração e as almas, sobretudo dos menos avisados, e infligem graves prejuízos à religião.

9. Com toda esta amálgama de erros e licenciosidades infrenes, no modo de pensar, falar e escrever, relaxam-se os costumes, deprecia-se a religião santíssima de Cristo, ataca-se a majestade do culto divino, vexa-se o poder desta Sé Apostólica, ataca-se e reduz-se a autoridade da Igreja a torpe subserviência, conculcam-se os direitos dos Bispos, profana-se a santidade do matrimônio, ameaçando ruir o regime de todo poder, e todos os demais males que Nos vemos obrigados a chorar, Veneráveis Irmãos, com pranto de todos, atinentes já à Igreja, já ao Estado. 


Os Bispos, defensores da religião e da Igreja

10. Em tais vicissitudes, de tempo e de acontecimento, para a religião, encarregados da salvação do rebanho do Senhor, nada omitiremos do que esteja ao nosso alcance, dada a obrigação do nosso ministério apostólico; faremos quantas tentativas pudermos, para o bem-estar da família cristã. 

11. Recorremos também ao vosso zelo, virtude e prudência, Veneráveis Irmãos, para que, ajudados do auxílio divino, defendais valentemente, ao Nosso lado, a causa da Igreja Católica, segundo o posto que ocupais e a dignidade de que estais revestidos. Sabeis que vos importa lutar, não ignorando com quantas feridas e com que furor tão grande os inimigos, por toda parte, injuriam e atacam a santa Esposa de Jesus Cristo. E em primeiro lugar sabeis muito bem que é obrigação vossa defender e proteger a fé católica com esforço episcocal e vigiar com sumo cuidado para que o rebanho a vós confiado nela permaneça firme e inamovível, porque todo aquele que a não guardar íntegra e inabalável, perecerá, sem dúvida, para sempre (Do Símbolo Quicumque). Esforçai-vos, portanto, em defender e conservar com diligência pastoral essa fé, e não deixeis de nela instruir a todos, de confirmar os duvidosos, de arguir os que a contradizem; de dar alento aos enfermos na fé, jamais dissimulando coisa alguma e nem permitindo que se transgrida o menor ponto sequer da integridade dessa mesma fé. Com não menor firmeza formentai entre todos a união com a Igreja Católica, fora da qual não há salvação, e a obediência à Cátedra de Pedro, sobre a qual se fundamenta e alicerça firmíssima a mole de nossa religião. Com igual constância procurai guardar as leis santíssimas da Igreja, nas quais florescem e recebem vida a virtude, a piedade e a religião. E como é grande piedade descobrir os esconderijos dos inimigos e neles vencer o próprio demônio a quem servem (S. Leão, Sermo VIII, cap. 4), rogamo-vos que com todo esforço patenteeis ao povo fiel das insídias, os erros, os enganos, as maquinações, e lhe vedeis ler livros perniciosos, exortando-o frequentemente a que, fugindo da companhia dos ímpios e das suas doutrinas como de serpente, evite tudo quanto contraste com a fé, a religião, a integridade dos costumes. Mirando este fim, jamais omitais a pregação do evangelho, para que o povo cristão, cada dia melhormente instruído nos santíssimos deveres da lei cristã, cresça na ciência de Deus, afaste-se do mal, pratique o bem e caminhe pelas sendas do Senhor... E como sabeis que sois enviados de Cristo, que se proclamou manso e humilde de  coração, que não veio para chamar os justos, mais sim os pecadores, dando-nos o exemplo para lhe seguir os passos, aos que encontrardes faltosos nos preceitos de Deus e afastados dos caminhos da justiça e da verdade, tratai-os com brandura e mansidão paternais, aconselhai-os, corrigi-os, rogai-lhes e increpai-os com bondade, paciência e doutrina, porque muitas vezes na correção mais proveito traz a benevolência que a aspereza, mais a exortação que a ameaça, mais a caridade que o poder (Concílio de Trento, Sessão XIII, cap. 1, de Reforma). Procurai também com todo desvelo, Veneráveis Irmãos, que os fiéis pratiquem a caridade, busquem a paz e ponham em prática com diligência o que a caridade e a paz mandam. Desta forma, extirpadas desde a raiz todas as dissensões, inimizades, emulações, contendas, amem-se todos com mútua caridade e todos, buscando a perfeição à própria maneira, tenham o mesmo sentir, o mesmo falar e o mesmo querer em Cristo Nosso Senhor.

12. Inculcai ao povo cristão a obediência e sujeição devidas aos príncipes e poderes constituídos, ensinando, conforme doutrinava o Apóstolo (Rom 12,1-2), que todo poder vem de Deus e os que não obedecem ao poder constituído resistem à ordem de Deus e se condenam a si próprios; e igualmente o preceito de obedecer a esse poder não pode ser violado impunemente por ninguém, a não ser que seja ordenado algo contra a lei de Deus e da Igreja. 


O bom exemplo dos sacerdotes

13. Mas, visto não haver nada tão eficaz para mover outros à piedade e ao culto de Deus como o exemplo e a vida dos que se dedicam ao ministério divino (Concílio de Trento, sessão 22, cap. 1, de Reforma), e por via de regra quais sacerdotes, tal povo, bem vedes, Veneráveis Irmãos, que tendes a trabalhar com o máximo cuidado e diligência, para que no Clero brilhe a gravidade de costumes, a integridade de vida,  a santidade e doutrina, para que se observe a disciplina eclesiástica com esmêro, segundo as prescrições do Direito Canônico, e onde fôra frouxa, retorne ao seu primitivo esplendor. Pelo que, bem sabeis, deveis cuidar, segundo preceito do Apóstolo, em não admitir qualquer candidato ao Sacerdócio, mas sim que inicieis nas sagradas ordens e promovais para tratar os sagrados mistérios aqueles que, examinados diligente e cuidadosamente, e adornados com os ornatos de todas as virtudes e ciência, possam servir de ornamento e utilidades às vossas dioceses e que, afastando-se de tudo quanto é vedado aos clérigos e atendendo à leitura, exortação e doutrina, sejam exemplo aos fiéis na palavra, no procedimento, na caridade, na fé, na castidade (1Tm 4,12), conquistem a veneração de todos, levem o povo cristão à constituição da religião e para tal o excitem e encorajem. Porque é muito melhor - como sabiamente admoesta Bento XIV, Nosso predecessor de feliz memória -  ter poucos ministros, mas bons, idôneos e úteis, do que ter muitos que de nada servirão para edificação do Corpo de Cristo, que é a Igreja (Bento XIC, Ubi primum). 

14. Não ignorais que deveis empregar maior diligência em averiguar os costumes e a ciência daqueles a quem está confiado o cuidado e a direção das almas, para que eles, como bons dispensadores da graça de Deus, apascentem o rebanho cometido ao seu cuidado com a administração dos sacramentos, com a pregação da palavra de Deus, e com o exemplo das boas obras; ajudai-os, instruí-os em tudo quanto se refere à religião, e conduzi-os pela senda da salvação.


Os pregadores de verdade

Efetivamente compreendeis que, com párocos desconhecedores do seu cargo, ou que dele cuidam com negligência, mais a mais vão decaindo os costumes dos povos, afrouxa a disciplina cristã, arruína-se e extingue-se o culto católico, introduzindo-se facilmente na Igreja todos os vícios e depravações.

16. Por que a palavra de Deus, viva, eficaz e mais penetrante que qualquer espada de dois gumes (Hb 4, 5, 12), instituída para a salvação das almas, não se torne infrutífera por culpa dos ministros, não cesseis de inculcar a esses pregadores a palavra divina e de obrigá-los, Veneráveis Irmãos, a que, inteirando-se da gravidade máxima de seu cargo, não exerçam o ministério evangélico em formas elegantes de humana sabedoria, nem no aparato e encanto profanos de uma eloqüencia vã e ambiciosa, mas na manifestação do espírito e da virtude com fervor religioso, para que, expondo a palavra da verdade e não se pregando a si mesmos, senão a Cristo Crucificado, anunciem clara e publicamente os dogmas de nossa religião santíssima, os preceitos segundo as normas da Igreja e a doutrina dos Santos Padres, com estilo grave e digno; expliquem com exatidão as obrigações de cada ofício; afastem a todos os vícios; conduzam à piedade de tal forma que os fiéis, compenetrados salutarmente da palavra de Deus, se apartem dos vícios, pratiquem as virtudes, evitando, assim, as penas eternas e alcançando a glória celestial. Com desvelo pastoral admoestai a todos os eclesiásticos, animai-os cautelosa e assiduamente a que, pensando seriamente na vocação que receberam do Senhor, cumpram diligentemente com a mesma, amem ardentemente com espírito de piedade, recitem devidamente as horas canônicas, segundo preceitua a Igreja, por meio das quais poderão impetrar para si o auxílio divino, para poderem cumprir suas gravíssimas obrigações e tornar Deus propício ao povo a eles confiado.


Formação dos sacerdotes

17. Como é do vosso conhecimento, Veneráveis Irmãos, os ministros aptos da Igreja não podem provir senão os clérigos bem formados e essa formação reta dos mesmos contém uma força potente para o curso da vida; por isso, esforçai-vos, com todo zelo episcopal, em cuidar que os clérigos adolescentes recebam, desde os primeiros anos, uma formação digna, tanto na piedade e sólida virtude, como nas letras e disciplinas sérias, máxime nas sagradas. Por isso nada há que tanto devais tomar a peito, nada há que tanto vos ponha solícitos, com: fundar seminários para clérigos, segundo o mandato dos Padres de Trento (Concílio de Trento, sessão 18, cap. 18), se ainda não os houver; quando instituídos, ampliá-los, se mister, fornecê-los de ótimos dirigentes e mestres, velar com zelo constante para que neles os jovens clérigos se eduquem no temor de Deus, vivam santa e religiosamente na disciplina eclesiástica, recebam formação conforme à doutrina católica, afastados de todo erro e perigo, segundo a tradição da Igreja e os escritos dos santos Padres, nas cerimônias sagradas e nos ritos eclesiásticos, com o que disporeis de operários idôneos e aptos, os quais, dotados do espírito eclesiásticos e preparados nos estudos, estejam capacitados para o cultivo do campo do Senhor e para lutar animosamente nas batalhas do Senhor. E como sabeis que a prática dos Exércitos Espirituais ajuda extraordinariamente para conservar a dignidade da ordem eclesiástica, para consolidar e aumentar a santidade, instai com santo zelo por obra tão salutar, e não cesseis de exortar a todos os que foram chamados para o serviço do Senhor a que frequentemente se retirem a um lugar apropriado, a fim de os praticar, livres das ocupações exteriores, e, entregando-se com fervor mais ardente à meditação das coisas eternas e divinas, poder alimpar-se das manchas contraídas no mundo, renovar o espírito eclesiástico, despojar-se do homem velho com seus atos, revestir-se do novo, que foi criado em justiça e santidade. Quiséramos que vos não parecesse havermo-Nos demorado por demais na formação e disciplina do clero. Pois há muitos que, enfastiados com a avalanche de erros, com sua inconstância e volubilidade, e sentindo a necessidade de professar a nossa religião, mais facilmente abraçam a religião com sua doutrina, preceitos e instituições, com o auxílio de Deus, quando veem que os clérigos se avantajam aos demais em piedade, integridade, sabedoria, exemplo e esplendor de todas as virtudes.


Exortação aos Bispos

18.  Quanto aos mais, Irmãos caríssimos, não duvidamos que todos vós, inflamados da caridade ardente de Deus e dos homens, de amor apaixonado pela Igreja, instruídos nas virtudes angélicas, adornados da fortaleza episcopal, revestidos da prudência, animados unicamente do desejo de cumprir a vontade divina, seguindo as sendas dos Apóstolos e imitando o protótipo de todos os pastores, Cristo Jesus, cuja missão exerceis, iluminando, como convém aos Bispos, o clero e os fiéis com o esplendor de vossa santidade, entranhados de misericórdia, compadecendo-vos dos que erram e são ignorantes, ireis ao encalço, com amor, a exemplo do pastor do Evangelho, das ovelhas desgarradas e perdidas; segui-las-eis e, pondo-as sobre vossos ombros com caridade paternal, fá-las-eis voltar ao redil; ali não cessareis de desvelar-vos cuidadosamente por elas, com conselhos e trabalhos, para que, desobrigando-vos, como deveis, do vosso ofício pastoral, defendais todas as nossas ovelhas queridíssimas, redimidas com o sangue preciosíssimo de Cristo, confiadas à vossa tutela, contra o furor, o ímpeto e a rapacidade dos lobos famintos, as separeis dos pastos venenosos e as leveis aos salutares; e com a palavra, com a obra ou com o exemplo, consigais conduzi-las ao porto da eterna salvação. Tratai varonilmente de procurar a glória de Deus e da Igreja, Veneráveis Irmãos, e todos, unidos, trabalhai com toda presteza, solicitude e vigilância, a fim de que nisso a religião, a piedade e a virtude, vencidos os erros, arrancados os vícios pela raiz, tomem incremento de dia a dia, e todos os fiéis, desfazendo-se das obras das trevas, andem como filhos da luz, em tudo agradando a Deus e produzindo frutos em todo gênero de boas obras. 

19. Não vos descoroçoeis apesar das graves angústias, dificuldades e perigos que necessariamente vos hão de acompanhar em vosso ministério episcopal nos tempos atuais; confortai-vos no Senhor e no poder de sua virtude, o qual, vendo-nos constituídos na união de seu nome, prova os que querem, ajuda os que lutam e coroa os que vencem (S. Cipriano, Epist. 11 ad Nemesianum). E como nada há mais grato, mais agradável e mais desejável para Nós que auxiliar-vos a todos, a quem amamos de todo o coração em Jesus Cristo, com todo o afeto, carinho, conselho e obra, e trabalhar ao vosso lado na defesa e propagação, com todo afinco, da glória de Deus e da fé católica, e salvar as almas, pelas quais estamos pronto, caso necessário, a dar a própria vida, vinde, Irmãos, vos rogamos e pedimos, vinde com grande confiança e ânimo a esta Sé do Beatíssimo Príncipe dos Apóstolos, centro da unidade católica e  ápice do Episcopado, donde brota todo Episcopado e toda autoridade, vinde a Nós, sempre que vos sabeis necessitados do auxílio, da ajuda e da defesa de Nossa Sé. 


Os príncipes

20. Alimentamos também a esperança de que nossos amantíssimos filhos em Cristo, os Príncipes, lembrados em sua piedade e religião que o poder régio não lhes há sido concedido somente para o governo das coisas do mundo mas principalmente para a defesa da Igreja (S. Leão, Epist. 156) e que Nós quando defendemos a causa da Igreja, defendemos a do seu reino e salvação, para que gozem com tranquilo direito de suas províncias (S. Leão, Epístola 43, aliás 34, Ad Theodosium), favorecerão com seu apoio e autoridade nossos votos comuns e defenderão a liberdade e incolumidade da mesma Igreja, para que o império de Cristo se defenda com sua destra (S. Leão, ibidem). 

Para que tudo o que foi exposto se realize próspera e felizmente recorramos, Veneráveis Irmãos, ao trono da graça, e unânimemente roguemos com súplicas férvidas, com humildade de coração, ao Pai das misericórdias e Deus de toda consolação, que, pelos méritos de seu Filho, se digne cumular nossa fragilidade de carismas celestiais e com a onipotência de sua virtude derrote os que contra nós investem, aumente por toda parte a fé, a piedade, a devoção, a paz, com a qual a santa Igreja, desfeitos todos os erros e adversidades, possa desfrutar da liberdade tão ansiada e que haja um só rebanho e um único pastor. E por que o Senhor se mostre mais propício aos nossos rogos e atenda as nossas súplicas, roguemos à Intercessora junto d'Ele, a Santíssima Mãe de Deus, a Virgem Imaculada Maria, que é nossa Mãe dulcíssima, medianeira, advogada e esperança fidelíssima, cujo patrocínio é o mais valioso junto de Deus. Invoquemos também o Príncipe dos Apóstolos, a quem o próprio Cristo entregou as chaves dos céus e a quem constituiu pedra de sua Igreja, contra a qual as portas do inferno jamais hão de prevalecer, e o seu co-apóstolo Paulo, todos os Santos da corte celeste, que já são coroados e possuem a palma, para que impetrem do Senhor a abundância desejada da divina propiciação para todo o povo cristão.

Por fim, recebei a Benção Apostólica, promissora de todas as bençãos celestiais e penhor de Nosso amor para convosco, a qual vo-la damos do íntimo de Nosso coração, Veneráveis Irmãos, e a todos os clérigos e fiéis confiados ao vosso cuidado. 

Dado em Roma, em Santa Maria Maior, aos 9 de novembro do ano de 1846, primeiro ano de Nosso Pontificado.