quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Trecho 4 - Tratado da Conformidade com a Vontade de Deus



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Epíteto e Atho, dois bem-aventurados mártires de Jesus Cristo, quando sofreram o tormento, queimados com fachos por ordem do tirano, e dilacerados com ganchos de ferro, disseram somente: "Senhor, seja feita em nós a vossa vontade". E quando chegaram ao lugar da execução, exclamaram em altas vozes: "Bendito sejais, ó Deus Eterno, porque a vossa vontade se cumpriu amplamente em nós". Cesário relata (Liv 10,6) que certo religioso, que ainda que exteriormente não fosse diferente dos demais, tinha, contudo, chegado a um tal grau de santidade que pelo mero toque de seus hábitos curava aqueles que estavam doentes. O Superior, admirado disto, perguntou-lhe como fazia ele estes milagres, não vivendo mais exemplarmente do que os outros: ao que o religioso respondeu que também se admirava, e não sabia a razão disso: "Mas quais são as vossas devoções?", perguntou-lhe o abade. O bom religioso replicou que poucas eram, ou para melhor dizer, nenhuma, mas que sempre tinha cuidado de entregar a sua vontade à vontade de Deus, e que Nosso Senhor lhe havia concedido a graça de abandonar inteiramente a sua vontade à vontade divina. "A prosperidade não me eleva, nem a adversidade me abate, porque eu tudo recebo como vindo da mão de Deus, e para este fim dirijo todas as minhas preces, para que a sua vontade se cumpra perfeitamente em mim". O Superior lhe replicou: "Não vos ressentistes vós ontem contra o inimigo, que tanto nos prejudicou, roubando-nos os nossos mantimentos, e lançando-nos o fogo na nossa propriedade, destruindo-nos o nosso gado e a nossa seara?" "Não", foi a sua resposta, "pelo contrário, dei graças a Deus como costumo fazer em iguais desgraças; conhecendo que Deus faz ou permite tudo para a sua maior glória e nosso maior bem; e por esta razão sempre estou contente, suceda o que suceder". Ouvindo isto o abade, não se admirou mais de que ele fizesse milagres. Aquele que assim fizer não só vem a ser um grande santo, mas goza de uma paz perpétua. Afonso, o grande, rei de Aragão, príncipe, o mais sábio, perguntou-se quem ele pensava que era o homem mais feliz, respondeu: "Aquele que em tudo se conforma com a divina vontade, e que recebe os bens e os males como se viessem das mãos de Deus". Àqueles que amam a Deus, todas as coisas concorrem para bem (Rm 8,28). Aqueles que amam a Deus vivem sempre satisfeitos, porque todo o seu prazer é cumprir a divina vontade, mesmo nas coisas que lhe são desagradáveis, tanto que as inquietações se mudam em deleites pelo pensamento de que, aceitas voluntariamente, agradem a seu amado Senhor. "Tudo quando acontecer ao homem justo, o não entristecerá" (Pr 12,21). E, com efeito, que maior felicidade pode o homem experimentar do que o cumprimento de seus desejos? Então, quando se deseja o que Deus quer, tem cada um tudo quanto deseja, pois que (exceto o pecado) tudo quanto suceder no mundo é pela vontade de Deus. Conta-se nas vidas dos padres, que certo lavrador colhia sempre maior quantidade de frutos do que seus vizinhos, e perguntando-se o motivo, respondeu que não se admirassem porque as estações andavam sempre a seu arbítrio. "Como assim", disseram os outros; "porque", respondeu ele, "nunca desejo outro tempo senão aquele que Deus manda, e como eu quero o que Deus quer, Ele também me faz a vontade, dando-me uma boa colheita". - "As almas resignadas", diz Salviano, "quando se sentem humilhadas, confessam a sua humilhação; quando são pobres, sofrem voluntariamente a sua pobreza"; em uma palavra, resignam-se a tudo quanto lhes acontece, e por isso são sempre felizes durante a vida. Se chegar o calor, o frio, ou a chuva, aquele que se conforma à vontade do Senhor diz: "Eu desejo que haja calor, e frio, ou chuva, porque essa é a vontade de Deus". Se a pobreza, a perseguição ou a doença o afligem, ou mesmo a morte, ele dirá: "eu desejo ser pobre, perseguido ou doente, porque esta é a vontade de Deus". É esta a gloriosa liberdade que os filhos de Deus gozam, a qual vale mais do que todos os reinos e principados deste mundo: está é a sólida paz que os santos desfrutam; que excede a toda compreensão (Ef 3,19). E todos os prazeres sensuais, festas, banquetes, honras e mundanas gratificações são vaidade e caducidade, e, enquanto fascinam e entretém por alguns momentos, afligem o espírito, onde só pode haver a verdadeira felicidade. Aqui, exclamava Salomão, depois de ter esgotado o gozo das delícias do mundo: (Eclo 4,16). "O louco", diz o Espírito Santo, "muda como a lua, mas o homem justo continua em seu juízo, assim como o sol" (Eclo 27,12). O insensato, isto é, o pecador, muda como a lua, hoje está no crescente, amanhã no minguante, hoje está alegre, amanhã triste, hoje meigo, amanhã furioso como um tigre: e por quê? Porque a sua felicidade depende da prosperidade e adversidade que ele pode encontrar e, então, muda conforme as circunstância. Mas o homem justo é como o sol, sempre igual na sua serenidade, sejam os sucessos quais forem; porque a sua felicidade está na conformidade com a vontade divina, e por esta conformidade goza inalterável paz. "Paz na terra aos homens de boa vontade", disse o Anjo aos pastores (Lc 2,14). E quem são estes homens de boa vontade? São aqueles que estão unidos à divina vontade, a qual é sempre soberanamente boa e perfeita. Tal é a boa, aceita e perfeita vontade de Deus (Rm 12,2). Porque Deus não pode desejar coisa alguma que não seja a melhor e a mais perfeita.


Santo Afonso Mª de Ligório - Ed. Biblioteca Católica

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