domingo, 25 de setembro de 2016

Eles são assim...


São nove os temperamentos em que se classificam os maridos. A uma categoria pertencerá também o teu. Conhecendo teus caracteres, te será mais fácil uma acomodação prudente ou um contorno mais indicado em certas ocasiões.
Eis os temperamentos: o linfático, o sanguíneo, o colérico, o melancólico, o nervoso, o sanguíneo- bilioso, o sanguíneo- linfático, o sanguíneo- melancólico e o muscular. Analisaremos apenas os cinco principais, sob a orientação de Dubois.

O  linfático - É lento e lerdo nos seus movimentos. Nascido com meia de atraso, nunca mias tira essa diferença na vida. Não possui nem vícios nem virtudes em destaque. Não é nem brasa nem gelo. Tem um carater calmo, conciliador, amante de suas comodidades, apreciador de bons quitutes. Acha natural que todos o sirvam com devotamento, mas nunca sentirá vontade de imitar esse gosto. Achará natural que a esposa se canse em servi-lo e estranhará que ela lhe peça que se incomode. Gosta mais de ver na esposa uma Marta solícita do que uma Maria que o contempla com elevo. - Diante de tal marido é preciso que a esposa seja firme e resoluta para acordá-lo, pô-lo em movimento, sacudir-lhe o topor. Seja destemida para lhe afugentar impressionismos e medos de doenças, de infelicidades.

O sanguíneo - Tem o rosto alegre, uma prosa amena, uma inteligência viva, ao lado de uma memória pronta, mas cigana. Seu modo de julgar é superficial. Não se pode confiar muito nele. Leviano, facilmente leva uma empresa à ruina e, porque gosta do prazer, sobretudo do carnal, lhe sacrificará sem mais remorsos a honra e a reputação. Consideração alguma lhe fará romper com uma relação ilícita e infeliz. Por ser inconstante, um nada bastará para esquecê-la. É-lhe inacessível a virtude sólida, embora lhe mereça admiração e aplausos. A esposa deve ser engenhosa para conter nos limites do dever uma natureza tão rica em recursos. Procurará dar duração a um ardor tão generoso, moderando-o. Esse ardor está pronto a servir a esposa, consagrando-lhe tempo, crédito, bolsa e pessoa. Tudo isso o marido sanguíneo põe à disposição da esposa, porém muito depressa se esqueçe das belas juras e promessas. Erra, por conseguinte, a esposa que levantar uma briga por causa de uma promessa esquecida. Tal esquecimento é tão peculiar à natureza do sanguíneo! Não procure uvas nessa urtiga. 

O colérico - Costuma ter uma fisionomia rude em seus traços, tem uma vontade tenaz, desconhecedora de obstáculos, desejosa de mandar e dominar. Nele predomina o amor ao mundo, como no sanguíneo o amor ao prazer e no linfático o amor ao sossego. É o temperamento de um chefe, de um guia. Com tal marido, a mulher precisa renunciar aos carinhos frequentes, às atenções delicadas. Tudo isso poderá encontrar com mais facilidade em temperamentos menos inclinados à atividade externa. Não poderá mandar em tal marido, mas em troca nele encontrará um sólido apoio, porque realmente pode apoiá-la quem é capaz de impor-se e mandar a outros homens. O dever da esposa é salvaguardar a vida afetiva dessa natureza retesada pela luta e consumida pela ambição. Saiba também orientar essa energia para uma finalidade nobre e inspirar-lhe sacrifícios por amor a Deus.

O melancólico - É bem mais difícil a convivência com o temperamento melancólico. Marido que o possui é pessimista, é dono de uma fantasia funebre e exaltada. Com os amigos é fiel, mas é misterioso com os outros. Vive desconfiado, todo enciumado no seu amor e gosta da vingança. É do tipo conspirador. Sua religião é sem alegria e seus prazeres são cruéis. Torna-se um peso para si próprio e para os outros. Se a vida lhe corre mal, pensa facilmente em suicídio. Tarefa da esposa ao lado de tal temperamento é distraí-lo, alegrá-lo, ocupá-lo. Para isso precisa pôr em movimento toda as reservas do espírito e do coração para encontrar consolações eficazes e encorajamentos constantes que inspirem confiança a essa natureza atormentada. Afaste dele todas as coisas que possam impressioná-lo. 

O nervoso - Caracteriza-se por uma sensibilidade excessiva. Costuma ser o temperamento dos artistas. Mas martiriza quem o possui. O nervoso ama com excesso, com sinceridade e devotamento. Exige, porém, igual amor e reconhecimento. A esposa cujo marido tem semelhante matiz no temperamento deve compreendê-lo, favorecer-lhe a confiança e expansão, sem nunca insistir sobre desacordos que possam surgir entre ela e ele. 

Essa divisão de temperamentos não existe com contornos bem definidos. Há, em geral, misturas e tinturas várias. Daí a necessidade do estudo contínuo, da observação diária por parte da esposa, a fim de bem conhecer o marido. Desta forma ficará ao par da fisionomia moral do esposo e evitará erros de tática no cumprimento dos deveres conjugais e domésticos. Conhecendo as qualidades do teu marido, bem como os seus defeitos, terás, leitora, tua vida mais garantida contra surpresas. Servi-te-ás das primeiras sem provocar os segundos. Eis aí a tua tarefa diária. Atenções e intuições diárias te levarão a um feliz resultado. Sobretudo quando procederes como cristã que reza, reflete e é sincera no exame de si mesma. 
É teu marido um vulção de violência? Deixa-o deitar fogo e lava, conservando-te silenciosa, impassível durante a tormenta. Terminada a irrupção, poderás vir com suave e meiga voz expor teus projetos e tuas objeções. 
Nunca estudes teu marido com a sombria preocupação de dominá-lo para teu proveito. Tal usurpação te faria infeliz. Seria contra o plano de Deus que, dando ao homem uma companheira, a quer submissa e obediente. Diz acertadamente Dubois: "A esposa é o coração que anima a cabeça. Saiba permitir que a cabeça dirija o coração". 

Fonte: Livro as Três Chamas do Lar.  Vol I

sábado, 20 de agosto de 2016

Motivos que os Cristãos têm a mais que os infiéis para amar a Deus.

Os fiéis, ao contrário, sabem o quanto precisam de Jesus crucificado, mas mesmo admirando e recebendo o amor que Ele tem por nós, que está acima de todo entendimento, não demonstram nenhuma confusão em dar nada além do que eles mesmos, por menor que sejam, em retorno a uma caridade e a uma condescendência tão grandes; mas é tão fácil para eles amar mais do que se sentirem eles mesmos mais amados; porque àquele a quem se dá menos amor, esse o sentirá também bem menos. Os judeus não mais que os pagãos, não sentem a excitação pelos mesmos aguilhões do amor que oprimem a Igreja e fazem com que ela diga: "E fui ferido por amor"; ou ainda: "Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, porque desfaleço de amor" (Cânticos 2,5) [...] ela vê o Filho Unigênito do Pai carregando a sua cruz, o Deus de toda majestade atingido por golpes e cuspidas, o Autor da vida e da glória pregado, transpassado, cheio de opróbios, dando por Seus amigos Sua alma abençoada. Vendo tudo isso, ela sente a espada de dois gumes do amor penetrar mais fundo em seu coração e ela clama: "Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, porque desfaleço de amor". As maçãs que a Esposa introduziu no jardim de Seu amado tem prazer em colher da árvore da vida, têm gosto do maná do Céu e a cor do sangue de Cristo. E então ela vê a morte golpeada até a morte e aquilo que a fez magnificar o cortejo de seu Vencedor, ela ainda vê este subir triunfante, de debaixo da terra para sobre a tera e da terra para os céus, seguido de uma grande multidão de cativos, de modo que somente ao nome de Jesus, todo joelho se dobra nos céus, na terra e debaixo da terra (Filipenses 2,10). A terra, debaixo da antiga maldição, produzia somente espinheiros e abrolhos; revigorada, então, por uma nova benção, é coberta de flores. Então a esposa lembra-se deste versículo: "O Senhor é a minha força e o meu escudo; nele confiou o meu coração, e fui socorrido; assim o meu coração salta de prazer, e com o meu canto o louvarei" (Salmos 28,7), recobra o ânimo com os furtos da paixão que ela colheu da árvore da cruz, e com as flores da ressureição cujo perfume delicioso convida o Amado a renovar as Suas visitas. 

Enfim ela exclama: "Eis que és formoso, ó amado meu, e também amável; o nosso leito é verde" (coberto de flores) (Cânticos 1,16). Falando deste leito, ela deixa claro o que deseja, e, acrescentando que ele está coberto de flores, ela mostra no que estão baseadas suas esperanças; não é sobre a atração que as flores, colhidas em um campo abençoado por Deus, têm para o seu Amado, porque é o que sentem por Cristo que quis ser concebido e alimentado em Nazaré. Este Esposo celeste, atraído pelo perfume que emana delas, tem prazer em entrar no quarto do coração, quando o encontra cheio de frutas e perfumado pelo aroma das flores. E Ele vem apressadamente e tem prazer em habitar na alma que a Ele contempla em meditação, cuidadosamente dedicada e colhe os frutos de Sua paixão e cultiva as flores de Sua ressureição.

Ora estes frutos da última colheita, isto é, de todos os séculos que se foram sob o império da morte e do pecado, que amadureceram na plenitude dos tempos, são as lembranças de Sua paixão. Mas é no esplendor de Sua ressureição que devemos ver as novas flores dos novos tempos que a graça faz reflorescer para um segundo verão; no final dos tempos, na ressureição real, elas darão inumeráveis frutos:"Porque eis que passou o inverno; a chuva cessou, e se foi; aparecem as flores na terra, o tempo de cantar chega, e a voz da rola ouve-se em nossa terra" (Cânticos 2,11-12). Ela quer dizer, falando assim, que o verão apareceu com Aquele que fez derreter o gelo da morte para renascer em temperatura primaveril de uma nova vida, dizendo: "Eis que faço novas todas as coisas" (Apocalipse 21,5). Seu corpo, semeado na morte, refloresceu na ressureição, e, ao perfume que dEle emana, vimos logo nos nossos vales e planícies, o que estava árido, morto ou congelado, cobrir-se de verde, renasce em vida e volta a obter calor. 

O frescor destas flores. O renovar destes frutos e a beleza deste campo, de onde exalam os mais doces perfumes encantam também o Pai cujo Filho fez novas todas as coisas, e lhe inspiram esta exclamação: "Eis que o cheiro do meu Filho é como o cheiro do campo que o Senhor abençoou" (Gênesis 27,27). Sim, um campo cheio de flores, pois é de Sua plenitude que recebemos tudo o que temos. Mas a Esposa, ao se agradar dEle, vem colher em sua simplicidade flores e frutos para adornar a morada íntima de sua consciência, para que ao chegar o seu Amado, seu pequeno leito do coração exale os perfumes mais suaves. Portanto, se nós queremos que Cristo faça repetidamente em nós Sua morada, é preciso que nossos corações estejam cheios da fiel lembrança da misericórdia e do poder cujas provas recebemos em Sua morte e em Sua ressureição. É o pensamento de Davi, quando disse: "Deus falou uma vez; duas vezes ouvi isto: que o poder pertence a Deus. A ti também, Senhor, pertence a misericórdia". (Salmos 62,11-12) Jesus Cristo provou superabundantemente, pois após morrer por nós por nossos pecados, Ele ressuscitou para nos justificar, subiu aos céus para nos proteger, e nos envia o Espírito Santo para nos consolar; e, mais tarde Ele voltará para a consumação da salvação. Ora eu vejo em Sua morte a prova da Sua misericórdia, na ressureição a prova do Seu poder, e em todo o restante eu as encontro, as duas, reunidas. 

Se a Esposa pede que a suportemos com flores aromáticas e que a fortaleçamos com frutos cheirosos, eu acho que é porque ela sente que o amor pode perder calor e força; mas ela só terá estímulos até ser introduzida no quarto de Seu amado, sentindo-se coberta de beijos há muito desejados e possa exclamar: "A sua mão esquerda esteja debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abrace" (Cânticos 2,6). Mas então ela sentirá e verá por si mesma o quanto estas provas de amor que Seu amado lhe dava da mão esquerda, para assim dizer, pois Ele as dava sem contar nos dias em que estava entre nós, cedem em doçura aos abraços da sua mão direita e os são inferiores, e ela entenderá as Suas palavras. "O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveitará" (João 6,63), e ela penetrará no sentido destas palavras: "Meu espírito é mais doce que o mel e minha herança mais agradável que o mel nas prateleiras". Se em seguida dissermos: "A memória de meu nome passará de séculos em séculos" é para mostrar que os eleitos que ainda têm sede da presença do Esposo, têm ao menos a lembrança dEle para se consolarem, enquanto durar este século, durante o qual as gerações passam e se sucedem. Se está escrito: "Proferirão abundantemente a memória da tua grande bondade" (Salmos 145,7), certamente ouve-se daqueles cujo o salmista disse anteriormente: "Uma geração louvará as tuas obras à outra geração" (Salmos 145,4). Portanto os que vivem na terra possuem para si somente a lembrança do Esposo, e os que nos céus reinam, se alegram de Sua presença; esta última é a glória dos eleitos que já chegaram à salvação, a outra é a consolação dos que ainda estão a caminho.

Um Tratado sobre o Amor de Deus, São Bernardo de Claraval

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Por que amar a Deus?


O quanto Deus merece o amor do homem por causa dos bens do corpo e da alma: como devemos reconhecê-los; não devemos usá-los contra Aquele que no-los deu.


Qualquer um que entendeu o que está escrito acima também vê, eu acho, porque isto é, por qual motivo devemos amar a Deus. Se isto não é visto pelos infiéis, Deus tem como confundir a ingratidão deles nos bens, sem contar o quanto preenche o corpo e a alma. Não é dEle, de fato, que o homem tem recebido o pão que o alimenta, a luz que o ilumina, e o ar que ele respira? Mas seria loucura contar os bens que eu acabo de declarar inumeráveis e que me basta citar os mais importantes como o pão, o ar e a luz; se os coloco em primeiro lugar, não é porque os acho os mais excelentes, pois interessam somente ao corpo, mas são os os mais necessários. Sobre os bens de primeira ordem, é na alma, nesta parte do nosso ser que vence sobre a outra, que nós devemos procurá-los; são a excelência, a inteligência e a virtude [...].

Estes três bens aparecem cada um sob dois aspectos ao mesmo tempo: a excelência aparece na prerrogativa própria à natureza humana e no temor que o homem inspirou sem cessar a todos os seres que vivem na terra; a inteligência, não só percebe a dignidade do homem, mas entende também que para estar em nós, todavia ela não vem de nós; enfim a virtude, em sua dupla tendência, nos faz por um lado buscar com fervor e de outro abraçar com força, uma vez encontrado, Aquele a Quem queremos pertencer. Também de nada vale a inteligência sem a excelência que pode até prejudicar sem a virtude, como podemos provar com o seguinte raciocínio: Ninguém pode se gloriar do que tem; mas se, sabendo, ele ignora que o que ele tem não vem dele, ele se gloria, mas não o faz em Cristo, e é a ele que o apóstolo diz: "E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te glorias, como se não o houveras recebido?" (1 Cor 4,7) Ele não diz simplesmente: "Por que te glorias?", mas ele acrescenta: "Como se não o houveras recebido" para mostrar que ele é repreensível, não por se gloriar do que tem, mas por se gloriar como se não o tivesse recebido. Assim com razão esta glorificação é considerada vaidade, já que não se apoia no fundamento sólida da verdade. O apóstolo a distingue da verdadeira glória, dizendo: "Aquele que se gloria glorie-se no Senhor" (1 Cor 1,31), isso é, na verdade: porque Deus é a verdade.

Portanto, há duas coisas que precisamos saber; primeiro o que nós somos, e depois que não o somos por nós mesmos; então nós não nos gloriamos de coisa nenhuma, ou a glória que estaremos nos atribuindo será vaidade; enfim, se nós mesmos não nos conhecemos, está escrito, nós seremos confundidos com o grupo de nossos semelhantes (Cânticos 1,6-7). É de fato o que acontece, porque quando um homem digno não conhece nem mesmo a sua posição, o comparamos com razão, por tal ignorância, aos animais que são como os companheiros de sua corrupção e de sua vida decadente neste mundo. Portanto, não se conhecendo a ela mesma, a criatura que a razão distingue dos bichos, começa a se confundir com elas, porque ela ignora sua própria glória que é totalmente interna, cede aos chamados de sua curiosidade e se preocupa somente com sua beleza exterior e sensível; ela se torna também igual às outras criaturas, porque não sente que recebeu algo a mais do que elas. Assim é necessário combater a ignorância que faz com que talvez nos subestimemos mais do que convém. Mas evitemos com mais cuidado ainda esta outra ignorância que leva a nos atribuir além do que nós temos, como acontece quando nos enganamos em nos imputar o bem, qualquer que seja ele, que vemos em nós mesmos. Mas o que precisamos odiar e fugir mais do que estes dois tipos de ignorância, é a presunção pela qual em conhecimento de causa e propósito deliberado nós nos gloriamos do bem que está em nós, como se viesse de nós, não temendo arrancar de outrem a  glória que nós bem sabemos que não nos é devida pelas coisas que estão em nós, mas que não vêm de nós. No primeiro caso, nós não nos gloriamos de nada, no segundo nos gloriamos, mas não em Cristo, e no terceiro nós não pecamos mais por ignorância, mas nós usurpamos conscientemente, reivindicando para nós mesmos, o que pertence a Deus. Ora, esta audácia comparada à segunda ignorância parece tanto mais grave e mais perigosa; se uma desconhece a Deus, a outra o menospreza; mas comparada à primeira, parece ainda pior e mais detestável, se esta ignorância nos assemelha aos brutos, esta audácia nos associa aos demônios. Pois apenas o orgulho, o maior dos males, pode se servir dos bens que ele recebeu, como se ele não os tivesse recebido, e desviar em proveito próprio a glória que um benfeitor deve achar em seus benfeitos. 

Também à excelência e  inteligência é preciso unir o fruto que é a virtude; é pela virtude que buscamos e possuímos o Autor liberal de todas as coisas, Aquele a quem devemos, em tudo, render a glória que Lhe pertence; de outra forma seriamos rudemente punidos por não ter feito o que sabíamos que deveríamos fazer. Por que isso? Porque aquele que age desta forma, não quis adquirir a inteligência para fazer o bem, mas ao contrário, meditou sobre a sua própria iniquidade (Salmos 36, 4-5), e ele tentou, como um servo infiel, desviar e até trazer a proveito próprio a glória que seu excelente Mestre deveria recolher em bens, sabendo ele mesmo perfeitamente, pela virtude da inteligência, que ele mesmo não era a fonte. É, portanto, bastante evidente que a excelência, sem a inteligência, é inútil, e que a inteligência, sem a virtude, nos leva a perdição. Mas para o homem que possui a virtude, não seria a inteligência maléfica e nem a excelência inútil, ele clama e louva a Deus simplesmente nestes termos: "Não a nós, SENHOR, não a nós, mas ao teu nome dá glória, por amor da tua benignidade e da tua verdade" (Salmos 115,1). O que significa: Senhor, nós não Te atribuímos nem a inteligência nem a excelência, nós atribuimos tudo ao Teu nome, porque é dEle que nós recebemos tudo. 

Mas nós nos afastamos demais do nosso desígno, querendo provar que mesmo os que não conhecem a Cristo, sabem nem pela lei natural, pelos bens do corpo e da alma, que devem amar, também eles, a Deus, por causa do próprio Deus. De fato, para resumir em algumas palavras o que dissemos acima, qual é o infiel que não sabe que recebeu somente dAquele que faz o Seu sol nascer sobre bons e também sobre os maus, e faz cair chuva sobre os santos e também sobre os ímpios, todos os bens necessários à sua vida, dos quais já falei, como o alimento, a luz e o ar? Qual o homem, tão ímpio quanto seja, que atribuirá a excelência particular à espécie humana, que ele vê brilhar em sua alma, a outro a não ser ao que disse em Gênesis: "Façamos o homem a nossa imagem e semelhança" (Gênesis 1,26)? Quem verá o autor da inteligência em outro que não nAquele que ensina tudo aos homens? E de que mão pensaria ele receber ou ter recebido o dom da virtude, se não do Deus das virtudes? O Senhor merece, portanto, ser amado, pelo o que Ele é, pelo infiel, ainda que pouco O conheça, assim mesmo que não conheça a Cristo; também aquele que não ama a Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças, não tem desculpas [...]. 

São Bernardo de Claraval - O Tratado sobre o amor de Deus











sábado, 16 de julho de 2016

O casamento perfeito




Non tantum caro sed sipiritus unus erat.
"Eram um todo, tanto almas como corpos"

(Epitáfio de dois conjugues cristãos)




Punhamos de parte as concepções não civilizadas e civilizadas não cristãs, para expormos a ideia cristã do casamento. E não como se vive, em cada caso particular, mas como era e é considerado, imposto e organizado pela religião católica e como esta se esforça por fazê-lo viver. Deixemos também as formas neo-pagãs propostas pelo amor livre, a fim de expormos o esplendor humano da concepção cristã do casamento. 
O casamento é a comunidade total de vida de dois seres humanos, de sexo diferentes, comunidade resultante dum livre dom recíproco, feito por amor.

O casamento é a comunidade de vida total: é uma união de carne, de espírito, de alma (totalidade de intensidade), até a morte (totalidade de duração).

União de carne: esta é um dos elementos que distingue o amor da amizade. A amizade é viável entre pessoas do mesmo sexo, o amor não. A amizade é intimidade do coração, de espírito e alma; o amor também, mas, além disso, é coabitação completa e contínua numa família, e é intimidade carnal. Consiste, portanto, numa amizade mais íntima e total, porque se apodera de todo ser, físico e psíquico, e permite os enriquecimentos particulares, inerentes à sexualidade física. 

União de coração: comporta todos os elementos sentimentais e afetivos do amor, os que constituem essa doçura e embriaguez de se reverem, de viverem lado a lado, de sentirem alegria juntos um do outro, de aderirem um ao outro, de se complementarem um ao outro, de desabrocharem um para o outro, de mutuamente se desejarem a felicidade. Esta união de coração, duplicando a união da carne, distingue o amor humano do amor animal, a esposa da comparsa ocasional. 

União de espírito: termos que englobam todos os elementos intelectuais do amor: o acordar das concepções, das ideias, dos juízos, das maneiras de ver e pensar. Dizemos acordar numa troca amigável e amorosa e não o depotismo dum cônjugue autoritário sobre um cônjugue diminuído ou aniquilado¹. Esta união de espírito, junta à união da carne e de coração, distingue, a um novo título, o amor humano do amor animal, a esposa da mulher de um dia.

 União de alma: entendamos por esta todas as profundezas do ser, tanto natual como sobrenatual, todos os elementos tão profundamente enraizados na estrutura íntima dos indivíduos que deixam de ser claramente exprimíveis. É uma espécie de osmose, de aderência íntima, de consonância vivida, de intimidade supra-sensível, de pertença um do outro. Um vive de tal maneira no outro que as suas alegrias tornam-se as alegrias dele, os seus sucessos, os sucessos dele, como também os reveses dum, os reveses do outro, os perigos dum, os perigos do outro. Pertencem um ao outro; melhor: um é, de algum modo, o outro, suportando os dois as mesmas provações, sofrendo os dois os mesmos lutos, fiéis sempre, na dor como na alegria. E esta união de alma, reforçando as outras, distingue o esposo e a esposa do amante e da amante. Estes últimos, muitas vezes, são fiéis, unicamente na prosperidade. De ordinário, só os verdadeiros esposos permanecem unidos, mesmo nas provações.   

União até a morte: é o termo que marca a totalidade da união na duração. Amaram-se sem reserva; irão lado a lado, através das alegrias e das provações da vida, através dos atritos, das desilusões, dos possíveis choques, até ao declínio das forças, companheiros de ardor, na juventude, de trabalho, na idade madura, de solidão, na velhice. 
E esta união efetiva-se pelo livre dom que um ao outro se fazem, dom inspirado no amor. Há reciprocidade no dom. Damo-nos com as nossas riquezas materiais, forças físicas, recursos sentimentais, intelectuais e humanos; damo-nos e recebemos tudo o que o outro tem de riquezas semelhantes; damo-nos para sermos felizes, por meio de alguém e para tornar alguém feliz. O casamento não é a pura posse de outrem; não é a busca da nossa felicidade somente: isso seria egoísmo; não é também simples doação ao outro; é, e deve ser, 'união', isto é, posse e doação, ao mesmo tempo. A liberdade do dom total que fazemos de nós e o amor que dita este dom total constituem a grandeza do casamento, o seu esplendor humano. 

Não podemos imaginar uma concepção mais alta do casamento. É precisamente essa a que o cristianismo tentou inculcar aos homens. No entanto, está bem longe de ser realizada e vivida por todos, na sua perfeição. Muitas dela tem uma concepção mais egoísta e mais comesinha. Algumas buscam no casamento a sua própria liberdade e satisfação sentimental, de preferência à felicidade do esposo; aspiram, sobretudo, a ser rodeadas, aduladas e lisongeadas. Todavia, quase sempre, tem o desejo de se dedicar ao marido e aos filhos. Dificilmente encontramos uma rapariga de coração tão seco, tão egoísta e pouco feminino que só pensasse em si mesma. 
Dar-se totalmente, e para sempre, é viver um casamento tal como Deus o quis. Se as noivas tem esse amor e escolherem bem o eleito do seu coração, hão de fundar um lar profunda e intensamente feliz. Nele distribuirão sem medida a alegria e a felidade e lá a encontrarão também, por acréscimo. 

1. Não vamos consagrar um capítulo especial à autoridade masculina no lar. Que significa a asserção: o marido é o chefe do lar? Não implica nele superioridade alguma de natureza. Não há entre um homem e uma mulher um grau diferente de humanidade mas somente diferenças fisiológicas e psicológicas numa mesma humanidade. O homem e a mulher são diferentes, não desiguais; complementares, não subordinados, como pessoas humanas. Mas, no lar, como em toda a sociedade, tem de haver uma autoridade. O temperamento psicológico masculino é habitual e naturalmente mais apto e mais inclinado a exercer esta autoridade, o temperamento feminino mais expontâneamente disposto a aceitá-la. É esta a razão porque esta autoridade, indispensável no lar, pertence, por sua natureza, ao marido. De mais a mais, há ocasião para repartir judiciosamente os setores segundo as aptidões dos sexos. A autoridade masculina não tem o direito de se transformar numa absorção da personalidade feminina, numa dominação despótica: deve ser uma firmeza amante e delicada, exercendo-se, sobretudo, por via de conolusões, por troca de pontos de vista em comum. É neste sentido que, segundo a sã razão, como segundo o ensinamento cristão, o marido é o chefe da mulher. É-o não por superioridade humana, mas por indicações psicológicas das suas disposições nativas e por necessidade duma autoridade familiar, pois que a vida se encarrega de fazer adaptações e retificações necessárias. 

Fonte: A intimidade conjugal - O livro da esposa. Pierre Dufoyer


quinta-feira, 7 de julho de 2016

As riquezas do amor





"O amor é, por essência, único, constante, indefectível. São os homens que o traem." (Cmardonne)

Para corações de mulher, o amor é uma realidade maravilhosa. É a ele que aspiram, mais ou menos conscientemente, todas as raparigas, a partir dos primeiros anos de sua formação física. Sentem intensamente a necessidade de amar e ser amadas. É a idade, para as melhores ou mais preservadas, das amizades ardentes com tal ou tal companheira de estudo, das dedicações profundas e entusiastas a esta ou àquela professora; para as mais expostas, é a idade do convívio com os rapazes; para todas, dos sonhos sentimentais, das necessidades imprecisas, das impressões vivas de felicidade ou de solidão dolorosa, da expectativa de não sei que de grande, de belo, que deve torná-las prodigiosamente felizes. Saibam ou ignorem seu nome, é no Amor que pensam, é por ele que estão esperando. 
Mas ei-las noivas. O amor concreto nasceu-lhes nos corações e ficam totalmente sob o encanto dele. O futuro não lhes oferece dúvida alguma. Será feliz. Sentem-se seguras daquele que escolheram. É grande, belo, forte. Teriam outras falhado no seu lar. Contam-se casos... Mas elas, apesar de tudo, não hão de falhar no seu. Tem a convicção íntima disso. O seu amor irá crescendo; a sua união será deliciosa, envolvendo o marido em tanta ternura, tanto calor de  coração, e ele, em troca, será tão bom, tão dedicado, e sustê-las-á tão bem com sua força que a felicidade será durável. <<Amanhã, os dois, educaremos os nossos filhos: serão gentis, inteligentes, dóceis... e, ainda por cima, crianças encantadoras>> Tais os projetos e os sonhos de todas as noivas... Como o amor é cheio de encantos! 
Seria uma tolice velas de crepe tão belos sonhos que são a alegria, o sol dos meses de noivado. De  modo nenhum maldiremos o amor. Se não houver traição por parte de qualquer um dos cônjugues, será mais belo ainda na sua realidade concreta, embora ligeiramente diferente do que se havia sonhado. 
Mas para que seja esse belo e grande amor que enche de sol a vida, é necessário, em primeiro lugar, ter escolhido bem o companheiro de viagem, não pela estatura, vigor físico e ar forte e decidido..., qualidades superficiais, mas pelo seu valor profundo e real, consciência, sentido do dever, coragem no trabalho, delicadeza.
Em seguida, não devemos ficar numa concepção um tanto romântica e irreal do amor, mas duplicar a sua grande riqueza sentimental nativa com uma visão clara da inteligência e com uma firme decisão da vontade de amar sempre, aconteça o que acontecer, para além das decepções parciais, dos choques inevitáveis, dos sofrimentos inelutáveis, o esposo que tivermos escolhido. Amar implica o saber perdoar e também sofrer. 
O amor é grande e nobre, quando, vivido na sua plenitude, permanece fiel às suas exigências. Então é um dom total de si e um apelo total do outro. 
Como um dom total de si para tornar o outro feliz, aspira a devotar-se plenamente ao ser amado, julga nulos os sacrifícios feitos pela sua felicidade. A noiva é já felicíssima, ao pensar que poderá aninhar, acarinhar, cercar duma ternura sem reservas o amado de sua alma. Não encara limitação alguma de tempo ao seu amor: é para sempre que se lhe entrega. 
Ao mesmo tempo que dom total, o amor é um apelo total do outro: a noiva é atraída pela força e energia do noivo, conta com ele para apoiar a sua fragilidade; deseja dessendentar-se na sua ternura. Ser amada, não é uma das aspirações mais ardentes da mulher?  Tem necessidade do noivo para derramar sobre ele os tesouros de afeto e de amor que tem dentro de si; é-lhe tão necessário que, sem ele, a vida torná-se-ia insípida, nunca seria feliz...
O amor não tolera qualquer limite, nem à amplitude do dom nem à sua duração. Todo o advérbio o trai. Diz <<Eu amo-te>>, simplesmente; teria consciência de negar a si mesmo, se dissesse <<Eu amo-te agora>>. <<Amo-te por algum tempo>>; afrouxaria dizendo: <<Amo-te muito>>; só pode dizer: <<Amo-te>>, envolvendo neste laconismo, toda a intensidade, toda a duração, e negando a restrição. O amor não prevê o divórcio, e se há noivos que o preveem, ignoram o que é amar. 
O amor é total e é por isso que exige a intimidade dos corpos, dos corações e dos espíritos: a vida em comum. Sofre com as reticências, com os segredos ciosamente guardados, com as inquietações que passam no olhar, com as rugas que se cavam na fronte e que o noivo ou esposo se nega a explicar, com os recantos de sombra e mistério reservados no coração; tudo quer saber da vida anterior do bem-amado e dos seus pensamentos presentes;  quer ser o único bem, exige a plenitude do coração, receia todo rival, aspira à posse total, decisiva e definitiva, à unificação, à identificação com o ser amado. 
Tal é, no esplendor nativo, em toda a radiante espontaneidade, o amor dos noivos. 
E, contudo, seria para desejar que este amor se não reduzisse unicamente ao sentimento expontâneo, por magnífico que seja. <<A grande, a trágica ilusão das almas amantes, é julgarem que a força e profundeza do estado afetivo oferecem uma garantia da sua duração>> (Klages). Basta olhar à nossa volta: quantos lares não começaram por felizes noivados, na febre do amor, e depois foram arrefecendo! O amor, baseado unicamente no sentimento, sofre esta lenta usura que corrói todas as coisas humanas. Se o amor se funda apenas na linha, na esbeltez, na juventude do noivo, no simples encanto das suas qualidades físicas masculinas, no atrativo espontâneo que delas resulta,  com elas passará também. 
Sem dúvida que são necessários essa atração e esse afeto sentimental entre os noivos e esposos. Devemos amar-nos, para vir-mos a desposarmos. Mas é necessário, além disso, que este amor seja fundado na razão e, para esse efeito, ter escolhido o noivo pelas suas qualidades profundas de consciência, de coragem no trabalho... que duram mais do que a linha e a cabeleira! 
É preciso construir o amor sobre a vontade. Todas as esposas conhecem decepções. <<Desposa-se um noivo e vive-se com um marido. Não é absolutamente o mesmo homem>> (Tinayre). Para que a desilusão sentimental originada por essas decepções não varra o amor, temos que estar decididas a nutrir em nós uma afeição forte, tenaz, que perdoará, sofrerá com paciência e fará os esforços de adaptação necessários. 
Temos que fundar o amor sobre a Fé. A fidelidade de coração como de corpo, é um verdadeiro dever de estado do qual devemos dar contas a Deus. Somos todas para o nosso esposo e para o nosso lar: << Doravante, não procurarei mais a quem agradar, mas sim agradar a quem escolhi>> (Alain). 
Tudo isso é evidente para as noivas; tudo isso lhes parece naturalíssimo. É o que conseguem entrever no fogo do seu amor nascente. Todavia, o dom conjugal não será completo, não será amor seguramente durável, se a este ardor de sentimentos não vem juntar-se uma clara decisão da vontade; decisão de não se deixar desconcertar pelas borrascas e de amar fielmente, através dos sacrifícios possíveis e dos eventuais desencantamentos. <<Um amor não é verdadeiramente grande e durável senão na medida em que se nutre das próprias dores e decepções semeadas em seu caminho>> (Thibon). 
Eis o genuino grande Amor, aquele que a noiva deve esforçar-se por manter e fazer crescer dentro de si: amor quente do coração, amor claro da inteligência, amor forte da vontade, amor- missão divina. Só ele é o amor humano em toda a sua plenitude, o amor perfeito. 

Fonte: Livro A intimidade conjugal - o livro da esposa.








quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

O encontro de Jesus e da alma na Sagrada Comunhão








A Santíssima Trindade dá-se à alma que a ama. Com Ela, todos os tesouros aí penetram e habitam. Mas esta doação é tão espiritual, tão acima dos sentidos, e o homem vive tanto do sensível! Jesus encontrou o meio de afastar esse obstáculo e mesmo de se dar ainda mais.

Esse meio infalível é a Eucaristia. É preciso que o bom Mestre tenha o coração muito terno para se ter lembrado da Eucaristia. Como terá estremecido ao pensar no inconcebível esquecimento em que o deixaríamos nos nossos tabernáculos, mas também como se regozijou à vista de tantas almas que o seu amor eucarístico faria felizes até o fim dos séculos.

Senhor! Que seríamos sem Vós, sem a vossa presença real na Eucaristia? Que existência triste e vazia teríamos! Nas horas de cansaço, onde repousaríamos? Nos momentos de tristeza, onde encontraríamos consolação? E quando a nostalgia da pátria para a qual caminhamos nos atormentasse, para onde voltaríamos sem a Eucaristia?

Partilhais assim, de algum modo, das nossas penas e alegrias. A nossa alma derrama-se a todo o instante no vosso Coração. Cada manhã, vindes habitar conosco e de certa maneira fazer vossa a nossa carne e o nosso sangue, misturar o vosso Corpo Sagrado com o nosso barro, fazer correr em nossas veias o vosso divino Sangue. Maravilhosa e fecunda união, em que o vosso Coração purifica, transforma e diviniza o nosso!

Cristão fervoso, esforça-te por receber com frequência o teu Deus na Sagrada Eucaristia e serás forte. Olharás de frente as dificuldades e os contratempos na tua luta por espalhar o reino de Cristo. A quantas dedicações e heroísmos te entregarás!

Sacerdote zeloso, no meio dos teus labores apostólicos, entre os indiferentes e os incrédulos deste mundo, às voltas com embaraços, resistências e incompreensões de toda a sorte, lembra-te de que cada manhã, à tua voz, Jesus desce às tuas mãos consagradas para comunicar-se por teu intermédio às almas dEle sedentas, e te sentirás corajoso e incansável na jornada. 

E tu, alma simples, quem quer que sejais, que passa pelo mundo nas pontas dos pés, silenciosa e ignorada, empenhada em árduo e penoso trabalho, levanta os olhos para o Sacrário. Seja Ele o teu refúgio nas tuas horas boas e más. Jesus aí está por tua causa. Quando instituiu o seu Sacramento, o seu divino olhar distinguiu-te entre todas as outras almas; o seu Coração vibrou com as tuas alegrias e condoeu-s das tuas penas. Agora que estás diante dEle, chega-te sem temor. Tens direito a ser fortificada e a ter um Confidente. Jesus conhece-te e ama-te. 

Divino Amigo das nossas almas! Nós Vos adoramos com respeito e amamos com fervor. Inclinamo-nos diante de Vós com veneração e Vos abraçamos com ternura. À vista da vossa grandeza e do nosso nada, prosternamo-nos aos vossos pés com humildade e, confiantes, apoiamos a fronte no nosso Sagrado Coração, porque sois o Amigo das nossas almas, nosso Irmão bem-amado. Nós Vos demos tudo, Senhor, e em troca Vos possuímos todo. 


Fonte: O dom de si - Joseph Schrijvers

sábado, 2 de janeiro de 2016

Aborto



Que é o aborto?


A resposta a essa pergunta, até há vinte e cinco ou trinta anos atrás, era muito simples. Cometer aborto significava matar uma criança não-nascida, matar um ser humano cuja fraqueza peculiar consistia na sua incapacidade de sobreviver fora do seio materno. E havia duas avaliações morais para esse ato:

1) que era um homicídio justificável - em certos casos. Essa era a posição de muitos não-católicos, embora não fosse de forma alguma a de todos; 
2) que era um homicídio injustificável, isto é, que sempre constituía assassinato, e portanto nunca seria lícito. Essa era a posição católica, compartilhada pela Igreja ortodoxa grega e por muitas outras religiosas e não-religiosas. 

As razões que apoiavam a primeira afirmação - o homicídio justificável - eram simples: no caso extremo (o único contemplado) de conflito entre a vida da mãe e a vida do filho, a vida da mãe tinha mais valor, e a vida do filho deveria ser sacrificada para que a mãe pudesse sobreviver. O caso extremo seria o de uma gravidez que, se chegasse ao fim, acabaria por causar a morte da mãe e talvez a do filho também. 
Que pensar desta posição? Duas coisas: a) pode-se aceitar com certa facilidade que era inspirada por um sincero sentimento humanitarista; b) que os princípios nos quais se baseava - o de que uma vida humana vale mais do que outra, e o de que se pode matar uma pessoa inocente a fim de salvar outra - tinham inevitavelmente de abrir as portas à atitude que se vem generalizando nos nossos dias em relação ao aborto: a atitude daqueles que advogam o aborto on demand, sem outra justificava além do fato de que a mãe - ou talvez o Estado - o pede. 
Quanto a posição católica, basta dizer por ora que se baseia no princípio claro de que todo o ser humano recebe a vida diretamente de Deus, e que somente Deus a pode tirar, a menos que a pessoa abra mão do seu direito à vida por uma agressão criminosa voluntária. Não é possível imaginar ninguém mais inocente do que uma criança não-nascida; não se pode, portanto, matá-la diretamente por causa alguma.
Era esta a situação quanto ao aborto há não muitos anos, uma situação global em que era fácil indicar e circunscrever os pontos de concordância e os pontos de discordância. Havia concordância entre os dois lados sobre a natureza do aborto: significava matar uma criança, era um homicídio, porque o ser no seio materno é um ser humano. E havia discordância quanto à licitude desse homicídio: para alguns, era sempre ilícito; para outros, era justificável e lícito em certos casos graves. Vale a pena acrescentar que, mesmo nos países em que prevalecia este último ponto de vista e a legislação civil reconhecia a legalidade do aborto nesses casos extremos, essa mesma legislação proibia e punia os abortos realizados sem que se verificassem essas circunstâncias excepicionais. 


A posição atual

Se examinarmos a situação atual, veremos que se dão, não duas, mas três respostas à pergunta sobre o que é o aborto:

1) que é um homicídio injustificável; ou seja, é a posição católica, reafirmada por certo pelo Concílio Vaticano II - em termos mais fortes -, que diz (na Constituição sobre a Igreja no Mundo Moderno, n. 51) que o aborto é um "crime abominável";
2) que é um homicídio justificável em algumas circunstâncias, ou seja, a posição - já comentada - de certos não-católicos;
3) que não é um homicídio de forma alguma! Esta é a posição de que desejo ocupar-me especialmente, pois via de regra é a posição dos pró-abortistas modernos e é a posição ideológica - a nova base "moral" - com que procuram justificar o que não pode ser justificado.

A reformulação do problema

O aborto, dizem os novos reformistas liberais, não é de modo algum um homicídio, por uma razão muito simples: o que se mata não é um ser humano, o que se está no útero não é humano.
É evidente que esta suposição significa reformular por inteiro o problema do aborto. E a reformulação é tão radical que, se aceitássemos a base de que parte, o aspecto problemático da questão praticamente desapareceria para muitas pessoas, e o aborto torna-se-ia um assunto - segundo pensam - quase que inteiramente destituído de dificuldades de natureza moral.

Por que a reformulação?

Talvez a primeira coisa a fazer com relação a esta nova posição seja perguntarmo-nos por que e como surgiu em tão poucos anos. Não é difícil encontrarmos a resposta.
Não há quem não goste de sentir-se humanitário. Os "liberais" da atual escola moral positivista não só gostam de sentir-se humanitários, mas também de poder proclamar-se como tais.
O sentido humanitário liberal dos não-católicos de trinta anos atrás aceitava sem demasiada dificuldade que a vida de uma criança não-nascida fosse sacrificada para salvar a vida da mãe. Os anos passaram e, com os anos, intervieram dois fatores essenciais. Um é que os avanços da Medicina praticamente eliminaram o caso extremo que obrigava a escolher a vida da mãe ou a vida do filho. Apesar disso - e aqui está o segundo fator -, a procura pelo aborto aumentou. Houve muitos motivos para esse aumento, entre os quais algumas "recomendações" de natureza mais ou menos médica: a fraca saúde da mãe, a tensão que uma gravidez representa para seus nervos, etc. Mas o motivo principal relaciona-se simplesmente com o crescimento da mentalidade favorável ao controle de natalidade. Apesar de virem envolvidas em referências aparentemente desinteressadas aos problemas populacionais do mundo, as justificativas para o aborto em todos os casos individuais - pelo menos nos países mais desenvolvidos - quase sempre se reduzem à incapacidade de ver a criança com amor. Afinal de contas, é a incapacidade de amar que faz um casal pensar na criança não-nascida como um peso - o peso da gravidez e dos cuidados que exigirá mais tarde - e que leva os pais a temer que, se a criança nascer, terão que renunciar a algum conforto material; é a incapacidade de amar que faz com que a mãe não queira carregar e dar à luz a criança que concebeu. 

Transformar o feto numa "coisa"

Matar uma criança para salvar a vida da mãe não repugnava ao sentido humanitário de alguns liberais de trinta anos atrás. Mas matar uma criança para salvar a conveniência da mãe (a sua relutância em arcar com a gravidez) - ou para salvar o bem-estar dos outros filhos ou a posição financeira da família -, querer que se aceite isso é pedir demasiado ao sentido humanitário seja de quem for, por mais liberal que se possa ser. 
A solução encontrada foi muito simples. É demais sacrificar a vida de uma criança por um capricho da mãe, ou por causa do padrão de vida da família, ou pelo bem-estar da sociedade?... Então não se sacrifique a vida da criança, mas tão-somente a vida de um "feto". Conclua-se, além disso (segundo a feliz teoria de alguns), que o feto não é humano (conclua-se, digo, porque na verdade não se pode prová-lo), e que portanto não se está cometendo nem um homicídio nem um infanticídio, mas única e exclusivamente um "feticídio" - que não é mais significativo na ordem moral do que matar alguns micróbios (igualmente corpos estranhos e indesejáveis) por meio de uma injeção de penicilina.
Aqui está a nova visão moral da questão do aborto. Teremos de enfrentar a objeção (parecem dizer os novos moralistas) de que o aborto é um homicídio? Realmente, pelo menos nos casos que nos interessam, seria difícil justificar um homicídio... Mas então não percamos tempo tentando justificá-lo. Digamos com toda a simplicidade que não é um homicídio, pois aquilo que se aborta não tem natureza humana, e portanto não é um membro da nossa raça humana, é uma coisa. E já que as coisas não possuem direitos, o problema desaparece totalmente. 


Aborto em dois estágios

O que esta visão nos oferece é, digamos assim, um aborto em dois estágios: é uma operação física precedida de uma operação metafisíca, um aborto físico com um pré-requisito metafísico - a supressão de identidade do ser vivo que está no útero. Uma vez realizada essa operação metafísica (verdadeiramente indolor, contanto que se aplique um pouco de anestesia à consciência da pessoa...), a operação farmacológica ou cirúrgica necessária para suprimir o que "resta" no útero não oferece especial dificuldade, já que esse "resto"- devidamente expurgardo da raça dos homens e privado do seu status humano e dos seus direitos - já não é um ser humano, não é senão uma coisa não-humana. 
Compreendamos o raciocínio claramente. O argumento essencial dos abortistas modernos não é (exceto nos dois casos que examinaremos mais adiante) que tenham sido descobertas novas indicações ou razões para o aborto, novas razões de peso que até hoje eram desconhecidas. O seu argumento é diferente, e é importante, repito, compreendê-lo bem. Eles não dizem que existam mais razões do que as conhecidas até agora para matar o que está no ventre materno. O que dizem é que o que está no útero tem menos importância do que antes se pensava; tem menos valor. Não tem valor humano e não possui direitos humanos.


O argumento católico

O argumento católico como um todo - e afirmo que, seja qual for o ângulo pelo qual se considere o assunto, é o único argumento verdadeiramente racional, verdadeiramente científico e verdadeiramente humanitário- sustenta que a criança não-nascida já é um ser humano e goza de todos os direitos próprios de qualquer ser humano, dos quais o principal é o direito à vida; além disso, sustenta que a situação particular como ser humano indefeso lhe confere o direito a uma proteção especial por parte da lei civil.
É interessante recordar que as Nações Unidas, em sessão plenária de novembro de 1959, aprovaram unanimemente a declaração dos direitos da criança nos seguintes termos: "A criança, em virtude da sua falta de maturidade fisíca e intelectual, necessita de especial proteção e cuidados, incluindo a adequada proteção legal, tanto antes como depois do seu nascimento". Esta declaração foi renovada depois da Conferência Internacional dos Direitos Humanos, em Teerã, em maio de 1968.


Fonte: Livro Amor e Casamento - de Comark Burke
Editora: Quadrante