sábado, 2 de janeiro de 2016

Aborto



Que é o aborto?


A resposta a essa pergunta, até há vinte e cinco ou trinta anos atrás, era muito simples. Cometer aborto significava matar uma criança não-nascida, matar um ser humano cuja fraqueza peculiar consistia na sua incapacidade de sobreviver fora do seio materno. E havia duas avaliações morais para esse ato:

1) que era um homicídio justificável - em certos casos. Essa era a posição de muitos não-católicos, embora não fosse de forma alguma a de todos; 
2) que era um homicídio injustificável, isto é, que sempre constituía assassinato, e portanto nunca seria lícito. Essa era a posição católica, compartilhada pela Igreja ortodoxa grega e por muitas outras religiosas e não-religiosas. 

As razões que apoiavam a primeira afirmação - o homicídio justificável - eram simples: no caso extremo (o único contemplado) de conflito entre a vida da mãe e a vida do filho, a vida da mãe tinha mais valor, e a vida do filho deveria ser sacrificada para que a mãe pudesse sobreviver. O caso extremo seria o de uma gravidez que, se chegasse ao fim, acabaria por causar a morte da mãe e talvez a do filho também. 
Que pensar desta posição? Duas coisas: a) pode-se aceitar com certa facilidade que era inspirada por um sincero sentimento humanitarista; b) que os princípios nos quais se baseava - o de que uma vida humana vale mais do que outra, e o de que se pode matar uma pessoa inocente a fim de salvar outra - tinham inevitavelmente de abrir as portas à atitude que se vem generalizando nos nossos dias em relação ao aborto: a atitude daqueles que advogam o aborto on demand, sem outra justificava além do fato de que a mãe - ou talvez o Estado - o pede. 
Quanto a posição católica, basta dizer por ora que se baseia no princípio claro de que todo o ser humano recebe a vida diretamente de Deus, e que somente Deus a pode tirar, a menos que a pessoa abra mão do seu direito à vida por uma agressão criminosa voluntária. Não é possível imaginar ninguém mais inocente do que uma criança não-nascida; não se pode, portanto, matá-la diretamente por causa alguma.
Era esta a situação quanto ao aborto há não muitos anos, uma situação global em que era fácil indicar e circunscrever os pontos de concordância e os pontos de discordância. Havia concordância entre os dois lados sobre a natureza do aborto: significava matar uma criança, era um homicídio, porque o ser no seio materno é um ser humano. E havia discordância quanto à licitude desse homicídio: para alguns, era sempre ilícito; para outros, era justificável e lícito em certos casos graves. Vale a pena acrescentar que, mesmo nos países em que prevalecia este último ponto de vista e a legislação civil reconhecia a legalidade do aborto nesses casos extremos, essa mesma legislação proibia e punia os abortos realizados sem que se verificassem essas circunstâncias excepicionais. 


A posição atual

Se examinarmos a situação atual, veremos que se dão, não duas, mas três respostas à pergunta sobre o que é o aborto:

1) que é um homicídio injustificável; ou seja, é a posição católica, reafirmada por certo pelo Concílio Vaticano II - em termos mais fortes -, que diz (na Constituição sobre a Igreja no Mundo Moderno, n. 51) que o aborto é um "crime abominável";
2) que é um homicídio justificável em algumas circunstâncias, ou seja, a posição - já comentada - de certos não-católicos;
3) que não é um homicídio de forma alguma! Esta é a posição de que desejo ocupar-me especialmente, pois via de regra é a posição dos pró-abortistas modernos e é a posição ideológica - a nova base "moral" - com que procuram justificar o que não pode ser justificado.

A reformulação do problema

O aborto, dizem os novos reformistas liberais, não é de modo algum um homicídio, por uma razão muito simples: o que se mata não é um ser humano, o que se está no útero não é humano.
É evidente que esta suposição significa reformular por inteiro o problema do aborto. E a reformulação é tão radical que, se aceitássemos a base de que parte, o aspecto problemático da questão praticamente desapareceria para muitas pessoas, e o aborto torna-se-ia um assunto - segundo pensam - quase que inteiramente destituído de dificuldades de natureza moral.

Por que a reformulação?

Talvez a primeira coisa a fazer com relação a esta nova posição seja perguntarmo-nos por que e como surgiu em tão poucos anos. Não é difícil encontrarmos a resposta.
Não há quem não goste de sentir-se humanitário. Os "liberais" da atual escola moral positivista não só gostam de sentir-se humanitários, mas também de poder proclamar-se como tais.
O sentido humanitário liberal dos não-católicos de trinta anos atrás aceitava sem demasiada dificuldade que a vida de uma criança não-nascida fosse sacrificada para salvar a vida da mãe. Os anos passaram e, com os anos, intervieram dois fatores essenciais. Um é que os avanços da Medicina praticamente eliminaram o caso extremo que obrigava a escolher a vida da mãe ou a vida do filho. Apesar disso - e aqui está o segundo fator -, a procura pelo aborto aumentou. Houve muitos motivos para esse aumento, entre os quais algumas "recomendações" de natureza mais ou menos médica: a fraca saúde da mãe, a tensão que uma gravidez representa para seus nervos, etc. Mas o motivo principal relaciona-se simplesmente com o crescimento da mentalidade favorável ao controle de natalidade. Apesar de virem envolvidas em referências aparentemente desinteressadas aos problemas populacionais do mundo, as justificativas para o aborto em todos os casos individuais - pelo menos nos países mais desenvolvidos - quase sempre se reduzem à incapacidade de ver a criança com amor. Afinal de contas, é a incapacidade de amar que faz um casal pensar na criança não-nascida como um peso - o peso da gravidez e dos cuidados que exigirá mais tarde - e que leva os pais a temer que, se a criança nascer, terão que renunciar a algum conforto material; é a incapacidade de amar que faz com que a mãe não queira carregar e dar à luz a criança que concebeu. 

Transformar o feto numa "coisa"

Matar uma criança para salvar a vida da mãe não repugnava ao sentido humanitário de alguns liberais de trinta anos atrás. Mas matar uma criança para salvar a conveniência da mãe (a sua relutância em arcar com a gravidez) - ou para salvar o bem-estar dos outros filhos ou a posição financeira da família -, querer que se aceite isso é pedir demasiado ao sentido humanitário seja de quem for, por mais liberal que se possa ser. 
A solução encontrada foi muito simples. É demais sacrificar a vida de uma criança por um capricho da mãe, ou por causa do padrão de vida da família, ou pelo bem-estar da sociedade?... Então não se sacrifique a vida da criança, mas tão-somente a vida de um "feto". Conclua-se, além disso (segundo a feliz teoria de alguns), que o feto não é humano (conclua-se, digo, porque na verdade não se pode prová-lo), e que portanto não se está cometendo nem um homicídio nem um infanticídio, mas única e exclusivamente um "feticídio" - que não é mais significativo na ordem moral do que matar alguns micróbios (igualmente corpos estranhos e indesejáveis) por meio de uma injeção de penicilina.
Aqui está a nova visão moral da questão do aborto. Teremos de enfrentar a objeção (parecem dizer os novos moralistas) de que o aborto é um homicídio? Realmente, pelo menos nos casos que nos interessam, seria difícil justificar um homicídio... Mas então não percamos tempo tentando justificá-lo. Digamos com toda a simplicidade que não é um homicídio, pois aquilo que se aborta não tem natureza humana, e portanto não é um membro da nossa raça humana, é uma coisa. E já que as coisas não possuem direitos, o problema desaparece totalmente. 


Aborto em dois estágios

O que esta visão nos oferece é, digamos assim, um aborto em dois estágios: é uma operação física precedida de uma operação metafisíca, um aborto físico com um pré-requisito metafísico - a supressão de identidade do ser vivo que está no útero. Uma vez realizada essa operação metafísica (verdadeiramente indolor, contanto que se aplique um pouco de anestesia à consciência da pessoa...), a operação farmacológica ou cirúrgica necessária para suprimir o que "resta" no útero não oferece especial dificuldade, já que esse "resto"- devidamente expurgardo da raça dos homens e privado do seu status humano e dos seus direitos - já não é um ser humano, não é senão uma coisa não-humana. 
Compreendamos o raciocínio claramente. O argumento essencial dos abortistas modernos não é (exceto nos dois casos que examinaremos mais adiante) que tenham sido descobertas novas indicações ou razões para o aborto, novas razões de peso que até hoje eram desconhecidas. O seu argumento é diferente, e é importante, repito, compreendê-lo bem. Eles não dizem que existam mais razões do que as conhecidas até agora para matar o que está no ventre materno. O que dizem é que o que está no útero tem menos importância do que antes se pensava; tem menos valor. Não tem valor humano e não possui direitos humanos.


O argumento católico

O argumento católico como um todo - e afirmo que, seja qual for o ângulo pelo qual se considere o assunto, é o único argumento verdadeiramente racional, verdadeiramente científico e verdadeiramente humanitário- sustenta que a criança não-nascida já é um ser humano e goza de todos os direitos próprios de qualquer ser humano, dos quais o principal é o direito à vida; além disso, sustenta que a situação particular como ser humano indefeso lhe confere o direito a uma proteção especial por parte da lei civil.
É interessante recordar que as Nações Unidas, em sessão plenária de novembro de 1959, aprovaram unanimemente a declaração dos direitos da criança nos seguintes termos: "A criança, em virtude da sua falta de maturidade fisíca e intelectual, necessita de especial proteção e cuidados, incluindo a adequada proteção legal, tanto antes como depois do seu nascimento". Esta declaração foi renovada depois da Conferência Internacional dos Direitos Humanos, em Teerã, em maio de 1968.


Fonte: Livro Amor e Casamento - de Comark Burke
Editora: Quadrante


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