133. O pecado. - O pecado mortal é o domínio da satisfação humana ao ponto de infrigir de modo grave e formal um preceito divino. É a completa e radical perturbação da ordem essencial da minha criação; é a destruição da vida de Deus em mim; é a desordem em toda a sua horrível perversidade. Coloco-me acima de Deus e calco aos pés a sua glória, imolando-a ao meu prazer. Todos aqueles que pecam estão privados da glória de Deus (Rm 3,23).
É preciso chorar esse mal com aquelas lágrimas que a Escritura chama tão apropriadamente "sem consolo" (Tob 10,4). Assim chorava Jeremias: "Considerai, pois, se jamais aconteceu coisa semelhante! Acaso um povo troca de deuses? - e esses nem são deuses! Mas meu povo trocou a mim, seu Deus e sua glória, por ídolos que nada valem! Espantai-vos disso, ó Céus, horrorizai-vos e abalai-vos profundamente - oráculo do Senhor" (Jr 2,10-12).
134. A recuperação. - Os primeiros esforços da piedade se dirigem contra essa abominação, e sua primeira honra será triunfar dela. Não importa o quanto custe, ela se empenhará em reduzir a satisfação à sua ordem de submissão e de serviço, sem permitir-lhe nenhuma usurpação de seu percurso estará concluída quando ela tiver elevado e fortificado suficientemente o espírito, o coração e os sentidos para que a glória divina seja considerada, amada e buscada preferenciamente a qualquer prazer desordenado capaz de ofender mortalmente a Deus.
Se o prazer não é, em si mesmo ou em suas circunstâncias, proibido pela lei de Deus, e se ele pode conviver com a glória divina, eu me contentarei com situá-lo em seu lugar e restituir-lhe seu papel auxiliar. Mas, se um preceito exige o seu sacrifício, eu o sacrificarei sem nenhuma chance de conciliação, ainda que isso me custe a vida. Esse é o preço da primazia dos direitos de Deus sobre a existência: nenhuma satisfação, nem mesmo a da vida, pode prevalecer sobre eles.
135. O hábito. - Quando me encontro na disposição de reorientar e de sacrificar, se necessário, qualquer satisfação, de preferência a cometer voluntariamente qualquer falta grave; quando, nessas circunstâncias, consigo agir com prontidão e facilidade; quando essa disposição torna-se solidamente estabelecida, então cheguei ao primeiro grau de piedade.
Mas ao alcance dessa disposição só estará completo quando ela tiver conquistado todas as minhas potencialidades, sendo capaz de governá-las e defendê-las de forma suficientemente poderosa para que nenhuma criatura, nenhuma circunstância consiga fazer penetrar o inimigo, a menos que ocorra algum imprevisto. O pecado mortal já não pode ter lugar, nem no espírito, nem no corpo (Rm 6,12). "Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu entendimento, com todo o teu coração, com toda a tua alma e todas as tuas forças".
Se eu disse: "a menos que ocorra algum imprevisto", é porque a pobre fraqueza humana faz com que essas misérias sejam sempre possíveis, mesmo com as melhores e mais fortes disposições. Mas esses acidentes passageiros não impedem que o hábito adquirido subsista, nem fazem a alma decair do estado a que chegou. Ao falar em estado de alma ou em grau de virtude, nunca devemos ter em conta os simples sobressaltos das faltas resultantes da pura fragilidade.
136. Atos e hábito. - Esse grau, como os seguintes, não se caracteriza pelo maior ou menor número de atos praticados, mas pela unidade e perfeição atingidas pela disposição. Com efeito, a alma só pode atingir um estado definido na medida em que conquista a unidade de sua disposição característica. Bem sei que essa disposição se adquire pela repetição dos atos; mas a repetição dos atos, embora contribua poderosamente para formar o hábito, não é o hábito em si. Este tem sua raiz natural nas tendências da alma, e sua raiz sobrenatural nas graças infusas. E não se desenvolve apenas pelo meu trabalho humano, mas sobretudo pelo trabalho de Deus em mim, como veremos na segunda Parte. Portanto, na elaboração da minha vida concorrem, em primeiro lugar, as tendências naturais; depois, as graças sobrenaturais; em seguida, a ação providencial, e por fim a minha ação pessoal. A piedade é o resultado final desses quatro fatores. (...)
138. Altura desse primeiro grau. - Trata-se já de um grau de piedade, uma vez que é pelo conhecimento, amor e busca de Deus que se evita o pecado. Onde essas três coisas estão unidas: conhecimento, amor e busca de Deus, a piedade sempre está presente. Por mais débeis que sejam os inícios, não deixam de fazer parte da grande disposição que é o resumo e a unidade dinâmica da vida cristã.
Além disso, não é tarefa de um dia chegar, não simplesmente a evitar de fato o pecado mortal e sentir-me disposto a evitá-lo a todo custo, mas a cultivar, fundamentar e forticar essa disposição, de forma a ter facilidade e prontidão para os sacrifícios realmente necessários, mesmo o da própria vida, para evitar o pecado mortal, e de forma que essa facilidade e prontidão se estabeleçam nos sentidos, no coração, no espírito, em todo o meu ser.
Terei chegado a esse ponto? Não me vejo, às vezes, claudicando entre dois partidos? Terei compreendido até que ponto o Senhor é meu Deus e de que forma devo segui-lo? (1Rs, 18,21). Em minha luta contra o pecado, já resisti até o sangue? (Hb 12,4). Poderei dizer, ó meu Deus, que já galguei ao menos o primeiro degrau? Estou seguro disso? Meu espírito, meu coração, meus sentidos... terão eles facilidade e prontidão para rejeitar o pecado, a simples ideia do pecado? Já vivi no pecado... tê-lo-ei eliminado por completo? Já estive mergulhado no atoleiro... estarei realmente liberto e completamente limpo? Que sou eu, meu Deus? De que me glorifico, eu que não passo de um amontoado de terra e cinza? (Eclo 10,9). Que piedade é a minha, se ainda não cheguei ao primeiro degrau?!...
Fonte: Livro A vida interior- de François de Sales Pollien, Joseph Tissot
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