quinta-feira, 27 de março de 2025

Morte do pecador




 Santo Afonso Mª de Ligório

Angustia superveniente, pacem requirent, et non erit; conturbatio super conturbationem veniet. 

Sobrevindo a aflição, procurarão a paz e a não encontrarão; virá confusão sobre confusão (Ez 7,25-26).


PONTO I

Os pecadores afastam a lembrança e o pensamento da morte, e procuram a paz (ainda que jamais a encontrem), vivendo em pecado. 

Quando, porém, se virem em face da eternidade e nas agonias da morte, já não poderão escapar aos tormentos de sua má consciência, nem encontrar a paz que procuram. Pois, como pode encontrá-la uma alma carregada de culpas, que, como víboras, a mordem? Que paz poderão gozar pensando que em breve deverão comparecer ante Cristo Jesus, cuja lei e amizade desprezaram até então? "Confusão sobre confusão" (Ez 7,26). 

O anúncio da morte próxima, a idéia de se separar para sempre de todas as coisas do mundo, os remorsos da consciência, o tempo perdido, o tempo que falta, o rigor do juízo de Deus, a eternidade infeliz que espera o pecador, todas estas coisas produzirão perturbação terrível que acabrunha e confunde o espírito e aumenta a desconfiança. E neste estado de confusão e desespero, o moribundo passará à outra vida. 

Abraão, confiando na palavra divina, esperou em Deus contra toda a esperança humana, e por este motivo foi insigne o seu merecimento (Rm 4,18). Mas os pecadores, por desdita sua, iludem-se quando esperam, não só contra a esperança, mas também contra a fé, quando desprezam as ameaças que Deus faz aos obstinados. Receiam a morte infeliz; mas não temem levar a vida má. Quem lhes dá, pois, a certeza de que não hão de morrer subitamente feridos por um raio? E ainda que tivessem nesse momento tempo de se converter, quem lhes assegura que realmente se converterão? Santo Agostinho teve de lutar doze anos para vencer suas más inclinações. Como é que um moribundo, que teve quase sempre a consciência manchada, poderá fazer facilmente uma conversão verdadeira, no meio dos sofrimentos, das dores de cabeça e da confusão da morte? Digo conversão verdadeira, porque então não o bastará dizer e prometer com os lábios, mas será preciso que palavras e promessas saiam do fundo do coração. Ó Deus, que confusão e susto os do pobre enfermo que se descuida de sua consciência, quando se vir oprimido pelo peso dos pecados, do temor do juízo, do inferno e da eternidade! Que confusão e angústia produzirão nele tais pensamentos, quando se achar desfalecido, a mente obscurecida, e entregue às dores da morte já próxima! Confessar-se-á, prometerá, chorará, pedirá perdão a Deus, mas sem saber o que faz. Nesse caos de agitação, de remorso, de agonia e ansiedade, passará à outra vida. 

Diz com razão um autor que as súplicas, as lágrimas e promessas do pecador moribundo são comparáveis às do indivíduo que se vê assaltado por um inimigo que lhe aponta o punhal ao peito e o ameaça de morte. Infeliz quem cai de cama na inimizade de Deus, e dali passa para a eternidade!


AFETOS E SÚPLICAS

Ó chagas de Jesus, vós sois a minha esperança! Desesperaria do perdão de minhas culpas e salvação eterna, se não vos mirasse como fonte de graça e misericórdia, por meio da qual Deus derramou todo o seu sangue, a fim de purificar minha alma de tantas faltas cometidas. 

Adoro-vos, pois, ó sacrossantas chagas! e em vós confio. Detesto e amaldiçôo mil vezes os prazeres indignos com que ofendi a meu Redentor e miseravelmente perdi sua amizade. Contemplando-vos renasce minha esperança, e se encaminham para vós as minhas afeições. 

Ó amantíssimo Jesus, mereceis que todos os homens vos amem de todo o coração; e, apesar de que eu tanto vos haja ofendido e desprezado vosso amor, vós me haveis suportado e até convidado a procurar o perdão. Ah, meu Salvador, não permitais que vos torne a ofender e que me condene. Que tormento sofreria no inferno à vista do vosso sangue e dos atos de misericórdia que por mim fizestes! Eu vos amo, Senhor, e quero amar-vos sem cessar. Dai-me a perseverança; desenraizai do meu coração todo o amor que não seja o vosso e infundi em minha alma o firme desejo e a verdadeira resolução de não amar no futuro senão a vós, ó meu Sumo Bem. 

Ó Maria, Mãe amorosa, guiai-me até Deus, e fazei que seja todo seu antes de morrer!


PONTO II

Não uma só, senão muitas serão as angústias que hão de aflingir o pobre pecador moribundo. Ver-se-á atormentado pelos demônios, porque estes terríveis inimigos empregam nesse transe todos os seus esforços para perder a alma que está prestes a sair desta vida. Sabem que lhes resta pouco tempo para apoderar-se dela e que, escapando-se agora, jamais será sua (Ap 12,12). Não estará ali apenas um só, mais muitos demônios hão de rodear o moribundo para o perder. Dirá um: "Nada temas, que te restabelecerás". Outro exclamará: "Tu, que durante tantos anos foste surdo à voz de Deus, esperas agora que ele tenha misericórdia de ti?" "Como - intervém outro - poderás reparar os danos que fizestes, restituir as reputações que prejudicastes?" Outro, enfim, dirá: "Não vês que todas as tuas confissões foram nulas, sem contrição, sem propósito? Como podes agora renová-las? Por outro lado, o moribundo se verá rodeado por suas culpas. Estes pecados, como outros tantos verdugos - disse São Bernardo, acercar-se-ão dele e lhe dirão: "Somos a tua obra, e não te deixaremos. Acompanhar-te-emos à outra vida, e contigo nos apresentaremos ao eterno Juiz". Quisera então o moribundo desembaraçar-se de tais inimigos, mas para consegui-lo seria preciso detestá-los e converter-se de Deus de todo o coração. O espírito, porém, está coberto de trevas, e o coração endurecido. "O coração duro será oprimido de males no fim; e quem ama o perigo, nele perecerá" (Eclo 3,27). 

Afirma São Bernardo que o coração, obstinado no mal durante a vida, se esforçará, no momento da morte, para sair do estado de condenação; mas não chegará a livrar-se dele, e, oprimido por sua própria malícia, terminará a sua vida no mesmo estado. Tendo amado o pecado, amava também o perigo da condenação. É por isso justamente que o Senhor permitirá que ele pereça nesse perigo, no qual quis viver até a morte. Santo Agostinho disse que aquele que não abandona o pecado antes que o pecado abandone a ele, dificilmente poderá na hora da morte detestá-lo como é devido, pois tudo o que fizer nessa emergência, o fará obrigadamente. 

Quão infeliz é o pecador obstinado que resiste à voz divina! O ingrato, ao invés de se entregar e enternecer à voz de Deus, se endurece mais e mais, à semelhança da bigorna sob os golpes do martelo (Jó 41,15). Para seu justo castigo, achar-se-á neste estado, na hora da morte, às portas da eternidade. "O coração duro será oprimido de males no fim". Por amor às criaturas - disse o Senhor - os pecadores me voltaram as costas. À hora da morte recorrerão a Deus, e Deus lhes dirá "Agora recorreis a mim? Pedi socorro às criaturas, já que foram elas os vossos deuses" (Jr 2,27). Deste modo falar-lhe-á o Senhor, porque, mesmo que a Ele se dirijam, não será com verdadeira disposição de se converterem. Dizia São Jerônimo que ele tinha por certo, pois a experiência lho manifestara, que não alcançaria bom fim aquele que até ao fim houvesse levado vida má. 


AFETOS E SÚPLICAS

Socorrei-me e não me abandoneis, amado Salvador meu! Vejo minha alma ferida pelos pecados; as paixões me violentam, oprimem-me os maus hábitos. Prosto-me a vossos pés. Tende piedade de mim e livrai-me de tantos males. "Em vós, Senhor, esperei; não seja confundido eternamente" (Sl 30,2). Não permitais que se perca uma alma que em vós confia (Sl 73,19). Pesa-me de vos ter ofendido, ó infinita Bondade! Confesso que hei cometido muitas faltas, mas a todo custo quero emendar-me. Se não me ajudardes, porém, com vossa graça, estarei perdido. Recebei, Senhor, este rebelde que tanto vos ultrajou. Refleti que vos custei o sangue e a vida. Pelos merecimentos de vossa paixão e morte, recebei-me em vossos braços e dai-me a santa perseverança. 

Estava já perdido, e me chamastes. Já não quero resistir, e me consagro a vós. Prendei-me ao vosso amor, e não permitais que me perca, perdendo de novo vossa graça. Jesus meu, não o permitais! Não o permitais, ó Maria, Rainha de minha alma; enviai-me a morte, e ainda mil mortes, mas que não perca de novo a graça do vosso divino Filho!


PONTO III

Caso digno de admiração! Deus não cessa de ameaçar o pecador com o castigo de uma morte infeliz. "Virá um dia em que me invocarão e então já não os atenderei" (Pr 1,28). Esperam, porventura, que Deus dê ouvidos a seu clamor quando estiver na desgraça? (Jó 27,9). Rir-me-ei de sua morte e escanecerei de sua miséria (Pr 1,26). "Rir-se Deus significa não querer de usar de misericórdia" (São Gregório).

"A mim pertence a vingança, e eu lhes darei a paga a seu tempo, quando seu pé resvalar" (Dt 32,15). O mesmo ameaça o Senhor em outros lugares da Escritura, e, não obstante, os pecadores vivem tão tranquilos e seguros, como se Deus lhes houvesse prometido o perdão e o paraíso na hora da morte. É verdade, sempre que o pecador se converter Deus prometeu perdoar. Mas não disse que o pecador se converterá no transe da morte. Pelo contrário, repetiu muitas vezes que aquele que vive em pecado, em pecado morrerá (Jo 8,21-24) e que, se na morte o procurar, não o encontrará (Jo 7,34). É mister, pois, procurar a Deus, enquanto o podemos encontrar (Is 55,6), porque virá tempo em que já não será possível encontrá-lo. Pobres pecadores! pobres cegos que se contentam com a esperança de se converter na hora da morte, quando já não o poderão fazer! Disse Santo Ambrósio: "Os ímpios não aprenderão a praticar o bem, senão quando já não é tempo". Deus quer que todos os homens se salvem; mas castiga os pecadores obstinados. 

Se infeliz, em estado de pecado, fosse acometido repentinamente por mal violento e perdesse os sentidos, que compaixão não inspiraria a todos os que o vissem morrer sem sacramentos e sem sinal de contrição! E que contentamento teriam todos se ele, voltando a si, pedisse a absolvição, fazendo atos de arrependimento! Mas, não é um louco aquele que, tendo tido tempo de pôr em ordem a sua consciência, permanecesse no pecado, ou voltasse a pecar, expondo-se assim ao perigo de ser surpreendido pela morte quando, talvez, não pudesse arrepender-se? Espantamo-nos ao ver morrer alguém de repente, e, contudo, quantas pessoas se expõem voluntariamente ao perigo de morrer assim, estado em pecado! "Peso e balança são os juízos do Senhor" (Pr 16,11). Não fazemos caso das graças que o Senhor nos dá; mas Ele as conta e mede, e quando as vê desprezadas até ao limite que fixa sua justiça, abandona o pecador no pecado, e o deixa morrer neste estado. Desgraçado daquele que difere a conversão até ao último dia! Como diz Santo Agostinho: "Penitentia, quae ab infirmo petitur, infirma est". E São Jerônimo dizia que, cem mil pecadores que teimam viver no pecado até a morte, apenas um só se salvará no momento supremo. São Vicente Ferrer afirmava que a salvação de um desses pecadores seria um milagre maior que a ressureição de um morto. Que arrependimento se pode esperar na hora derradeira de quem viveu amando o pecado até àquele instante? Conta Belarmino que, assistindo a um moribundo e tendo-o exortado a fazer o ato de contrição, lhe respondeu o enfermo que não sabia o que era contrição. Tratou Belarmino de lho explicar, mas disse-lhe o doente: "Padre, não compreendo, nem estou agora capaz de entender essas coisas". E nesse estado faleceu, "dando visíveis sinais de sua condenação", segundo o testemunho escrito de Belarmino. É para o pecador justo castigo - disse Santo Agostinho - o esquecer-se de si próprio na morte, depois de ter esquecido a Deus durante a vida. 

O Apóstolo dá-nos este aviso: "Não vos enganeis, de Deus não se pode zombar. Aquilo que o homem semeia, isto também colherá. Aquele que semeia em sua carne, da carne colherá corrupção" (Gl 6,7). Seria zombar de Deus o viver no desprezo de sua leis e alcançar depois eterna recompensa e glória. "Mas Deus não pode ser burlado". O que nesta vida se semeia, recolhe-se na outra. Aquele que semeia proibidos prazeres carnais, não recolhe, por conseguinte, senão corrupção, miséria e morte eterna. 

Cristão, aquilo que se diz relativamente aos outros, aplica-se também a ti. Se te visses no transe da morte, abandonado dos médicos, privado do uso dos sentidos e já agonizando: quanto não rogarias a Deus que te concedesse ainda um mês, uma semana de vida para regular as contas de tua consciência?! Deus te dá agora esse tempo preciso. Agradece-lhe, pois, e remedeia sem demora o mal que tens feito, aplicando todos os meios precisos para te achares em estado de graça quando a morte vier, porque então já não será tempo de o fazer. 


AFETOS E SÚPLICAS

Ah, meu Deus! Quem, como vós, teria tido tanta paciência para comigo? Se não fosse infinita vossa bondade, não ousaria esperar perdão. 

Mas o meu Deus morreu para me perdoar e para me salvar, ordena-me, pois, que tenha esperança: nele esperarei... Se me espantam e me condenam os meus pecados, vossos merecimentos e promessas me animam. Prometestes a vida da graça a quem voltar a vossos braços. 

Convertei-vos e vivei (Ez 18,32). Prometestes abraçar o que a vós acudir: Convertei-vos a mim e eu me voltarei para vós (Zc 1,3). Dissestes que não sabeis desprezar o que se arrepende e se humilha (Sl 50,19).

Aqui me tendes, Senhor: a vós recorro; reconheço-me merecedor de mil infernos e arrependo-me de vos ter ofendido. Proponho firmemente não tornar a ofender-vos, mas amar-vos sempre. Não permitais que continue ingrato a tanta bondade. Pai eterno, pelos méritos da obediência de Jesus Cristo, que morreu para vos satisfazer, fazei com que obedeça à vossa vontade até à morte. Amo-vos, meu Sumo Bem; e pelo amor que vos tenho quero obedecer-vos em tudo. Dai-me a santa perseverança; dai-me vosso amor, e nada mais vos peço. Maria, minha mãe, rogai por mim. 


_______________________________________

Santo Afonso Mª de Ligório - Preparação para a morte













domingo, 23 de março de 2025

Incerteza da hora da morte




 Santo Afonso Mª de Ligório


Estote parati, quia qua hora non putatis, Filius hominis veniet.

Estai previnidos, porque na hora em que menos pensais virá o Filho do Homem (Lc 12,40).

PONTO I

É certíssimo que devemos morrer, mas não sabemos quando. 

"Nada há mais certo que a morte. - diz Idiota - porém nada mais incerto que a hora da morte". 

Meu irmão, estão fixados ano, mês, dia, hora e momento em que terás que deixar este mundo e entrar na eternidade; porém nós o ignoramos. Nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de estarmos sempre bem preparados, nos disse que a morte virá como um ladrão, oculto e de noite (1Ts 5,2). Outras vezes nos exorta a que estejamos vigilantes, porque, quando menos o esperamos, virá Ele a julgar-nos (Lc 12,40). Disse São Gregório que Deus nos oculta, para nosso bem, a hora da morte, a fim de que estejamos sempre preparados para morrer. Disse São Bernardo: a morte pode levar-nos em qualquer momento e em qualquer lugar; por isso, se queremos morrer bem e salvar-nos, é preciso que a estejamos esperando em qualquer tempo ou lugar. 

Ninguém ignora que deve morrer; mas o mal está em que muitos vêem a morte a tamanha distância que a perdem de vista. Mesmo os anciãos mais decrépitos e as pessoas mais enfermas não deixam de alimentar a ilusão de que hão de viver mais três ou quatro anos. Eu, porém, digo o contrário: Devemos considerar quantas mortes repentinas vemos em nossos dias. Uns morrem caminhando, outros sentados, outros dormindo em seu leito. É certo que nenhum deles julgava morrer tão subitamente, no dia em que morreu. Afirmo, ademais, que de quantos no decorrer deste ano morreram em sua própria cama, e não de repente, nenhum deles imaginava que havia de acabar sua vida neste ano. São poucas as mortes que não chegam inesperadas. 

Assim, pois, cristão, quando o demônio te provocar a pecar, pretextando que amanhã confessarás, dize-lhe: Quem sabe se não será hoje o último dia de minha vida? Se esta hora, se este momento, em que me apartasse de Deus, fosse o último para mim, de modo que já não restasse tempo para reparar a falta, que seria de mim na eternidade? Quantos pobres pecadores tiveram a infelicidade de ser surpreendidos pela morte ao recrearem-se com manjares intoxicados e foram precipitados no inferno? "Assim como os peixes caem no anzol, assim são colhidos os homens pela morte num momento ruim". (Ecl 9,12). O momento ruim é exatamente aquele em que o pecador ofende a Deus. 

Diz o demônio que tal desgraça não nos há de suceder; mas é preciso responder-lhe: E se suceder, que será de mim por toda a eternidade?


AFETOS E SÚPLICAS

Senhor, não é este o lugar em que devia me achar agora, mas sim no inferno, tantas vezes merecido por meus pecados. Mas São Pedro me adverte que "Deus nos espera com paciência e amor, não querendo que ninguém se perca, mas que todos se convertam à penitência" (2Pd 3,9). Por isso, meu Deus, tivesse paciência extremada para comigo e me suportastes. Não quereis que me perca, mas que, arrependido e penitente, me converta a Vós. Sim, meu Senhor, retorno a vós, prosto-me a vossos pés e peço misericórdia. Para me perdoardes, Senhor, é preciso grande e extraordinária misericórdia (Sl 51,3), porque vos ofendi com pleno conhecimento do que fazia. Outros pecadores também vos ofenderam, mas não dispunham luzes que me outorgastes. 

Apesar disso, mandais que me arrependa de minhas culpas e espero o vosso perdão. Pesa-me, meu querido Redentor, de todo o coração de vos ter ofendido e espero o perdão pelos merecimentos de vossa Paixão. 

Ó meu Jesus, que sois inocente, que quisestes morrer qual réu na cruz e derramar todo o vosso sangue para lavar minhas culpas! Ó sangue inocente, lavai as culpas de um penitente! Ó Pai Eterno, perdoai-me por amor a Cristo Jesus! Atendei-lhe as súplicas agora que, como meu advogado, intercede por mim. O perdão, porém, não me basta, ó Deus digno de amor infinito; desejo ainda a graça de amar-vos. Amo-vos, ó Soberano Bem, e vos ofereço para sempre meu corpo, minha alma, minha vontade, minha liberdade. Doravante, não só quero evitar as ofensas graves, mas também as mais leves, e fugir de toda a ocasião. Livrai-me, por amor de Jesus, de toda ocasião em que possa ofender-vos. Livrai-me do pecado, e castigai-me depois como quiserdes. 

Aceito todas as enfermidades, dores e perdas que vos aprouver enviar-me, contanto que não perca vosso amor e vossa graça. Prometestes dar tudo que vos for pedido (Jo 16,24). Rogo-vos que me concedais somente a perserverança e o vosso amor. 

Ó Maria, Mãe de Misericórdia, rogai por mim, que confio em vós! 


PONTO II

O Senhor não nos quer ver perdidos. Por isso, com ameaça de castigo, não cessa de advertir-nos que mudemos de vida. "Se não vos converterdes, vibrará sua espada" (Sl 7,13). Vede - disse em outra parte - quantos emerdar, e a morte repentina os surpreendeu quando não esperavam, quando viviam despreocupados, julgando terem ainda muitos anos de vida (1Ts 5,3). Disse-nos também: "Se não fizerdes penitência, todos haveis de perecer". Por que tantos avisos do castigo antes de inflingi-lo, senão porque quer que nos corrijamos e evitemos morte funesta. Quem dá aviso para que nos acautelemos, não tem a intenção de matar-nos - disse Santo Agostinho. 

É mister, pois, que preparemos nossas contas antes que chegue o dia do vencimento. Se durante a noite de hoje devesses morrer, e ficasse decidida assim a tua salvação eterna, estarias bem preparado? Quanto não darias, talvez, para obter de Deus a trégua de mais um ano, um mês, um dia sequer! Por que agora, já que Deus te concede tempo, não pões em ordem tua consciência? Acaso não pode ser este teu último dia de vida? "Não tardes em te converter ao Senhor, e não o adies, porque sua ira poderá irromper de súbito e no tempo da vingança te perderás" (Ecl 5,7). Para salvar-te, meu irmão, deves abandonar o pecado. 

E se algum dia hás de abandoná-lo, por que o não deixas desde já? (Santo Agostinho) Esperas, talvez, que chegue a morte? Mas esse instante não é tempo do perdão, senão da vingança. "No tempo da vingança, te perderás". 

Se alguém te deve soma considerável, tratas de assegurar o pagamento por meio de obrigação escrita, firmada pelo devedor; dizes: Quem sabe o que pode suceder? Por que, então, deixas de usar da mesma precaução, tratando-se da alma, que vale muito mais que o dinheiro? Por que não dizes também: quem sabe o que pode ocorrer? Se perderdes aquela soma, não estará ainda tudo perdido e ainda que com ela perdesse todo o patrimônio, ficaria a esperança de o poder recuperar. Mas se, ao morrer, perdesse a alma, então, sim, tudo estaria irremediavelmente perdido, sem esperança de recobrar coisa alguma. 

Cuidas de arrolar todos os bens de que és possuidor, com receio de que se percam quando sobrevier a morte repentina. E se a morte imprevista te achasse na inimizade para com Deus? Que seria de tua alma na eternidade? 


AFETOS E SÚPLICAS

Ah! Meu Redentor, derramastes todo o vosso sangue, destes a vida para salvar a minha alma, e eu, quantas vezes a perdi, confiando em vossa misericórdia! Abusei de vossa bondade para vos ofender; mereci, por isso, que me deixásseis morrer e precipitásseis no inferno. 

Estamos, pois, como que numa competição. Vós usando piedade comigo, eu vos ofendendo; vós a correr para mim; eu fugindo de vós; vós, dando-me tempo para reparar o mal que pratiquei, eu, valendo-me desse tempo para acrescentar injúria a injúria. Senhor, fazei-me conhecer a grandeza das ofensas que vos fiz, e a obrigação que tenho de amar-vos. 

Ah! Meu Jesus! Como podeis amar-me ao ponto de ir à minha procura, quando eu vos repelia? Como cumulastes de tantos benefícios a quem de tal modo vos ofende? De tudo isto vejas quando desejais não me ver perdido. Arrependo-me de ter ultrajado a vossa infinita bondade. 

Aceitai, pois, esta ovelha ingrata que volta a vossos pés. Recebei-a e ponde-a aos ombros para que não fuja mais. Não quero apartar-me de vós, mas amar-vos e pertencer-vos inteiramente. E desde que seja vosso, gostosamente aceitarei qualquer trabalho. Que desgraça maior poderia afligir-me do que viver sem vossa graça, afastado de vós, que sois meu Deus e Senhor, que me criou e que morreu por mim? Ó malditos pecados, que fizestes? Induziste-me a ofender a meu Salvador, que tanto me amou. 

Assim como vós, meu Jesus, morrestes por mim, assim deverei eu morrer por vós. Morrestes pelo amor que me tendes. Eu deverei morrer de dor por vos ter desprezado. Aceito a morte como e quando vos aprouver enviá-la. Mas, já que até agora pouco ou nada vos hei amado, não quisera morrer assim. Dai-me vida para que vos ame antes de morrer. 

Para isso, renovai meu coração, feri-o, inflamai-o com o vosso santo amor. Atendei-me, Senhor, por aquela ardentíssima caridade que vos fez morrer por mim. Amo-vos de toda a minha alma. Não permitais que vos perca. Dai-me a santa perseverança. Dai-me o vosso amor. 

Maria Santíssima, minha Mãe e meu refúgio, sede minha advogada!


PONTO III

"Estai preparados" - o Senhor não disse que nos preparemos ao aproximar-se a morte, mas que estejamos preparados. No transe da morte, nesse momento cheio de perturbação, é quase impossível pôr em ordem uma consciência embaraçada. Isto nos diz a razão. Nesse sentido Deus também advertiu-nos, dizendo que não virá então perdoar, mas vingar o desprezo que fizéssemos da sua graça (Rm 12,19). 

"Justo castigo - disse Santo Agostinho - para aquele que não quis salvar-se quando pôde; agora, quando quer, não o pode". Dirá todavia alguém: Quem sabe? talvez nesse momento me converta e me salve. 

Mas quem é tão néscio e se lança num poço dizendo: Quem sabe? atirando-me, talvez fique com vida e não morra? Ó meu Deus, que é isto? Quanto o pecado cega o espírito e faz perder até a razão! Quando se trata do corpo, os homens falam como sábios, e como loucos, quando se trata da alma. 

Meu irmão, quem sabe se esta reflexão que lês será o último aviso que Deus te envia? Preparemo-nos sem demora para a morte, a fim de que não nos encontre de improviso. Santo Agostinho disse que o Senhor nos oculta a última hora da vida com o fim de que todos os dias estejamos preparados para morrer (Hom. XIII). São Paulo nos previne que devemos procurar a salvação não só temendo mas tremendo (Fl 2,12). Conta Santo Antonino que certo rei da Sicília, para manifestar a um particular o grande medo com que se sentava no trono, o fez sentar à mesa com uma espada suspensa sobre sua cabeça por um fio delgado, de sorte que o convidado, vendo-se nessa terrível situação, mal podia levar à boca uma migalha de alimento. Todos estamos em semelhante perigo, já que dum instante para outro pode cair sobre nós a espada da morte, resolvendo o negócio da eterna salvação. 

Trata-se da eternidade. "Se a árvore cair para o norte ou para o sul, em qualquer lugar onde cair aí ficará" (Ec 11,3). Se na morte nos acharmos na graça de Deus, qual não será a alegria da alma vendo que tudo está seguro, que já não pode perder a Deus e que, para sempre, será feliz? Mas, se a morte surpreende a alma em estado de pecado, que desespero se apoderará do pecador ao dizer: "Então erramos" (Sb 5,6), e para minha desgraça já não há remédio em toda a eternidade! Foi este receio que fez exclamar o Beato P.M. Ávila, apóstolo da Espanha, quando lhe anunciaram a aproximação da morte: "Oh! Se tivesse um pouco mais de tempo para me preparar para a morte! Foi por isso que o Abade Agatão, ainda que morresse depois de haver exercido a penitência durante muitos anos, dizia: "Que será de mim? Quem conhece os juízos de Deus?" Também Santo Arsênio tremia à vista da morte e, perguntando-lhe os seus discípulos a causa, respondeu: "Meus filhos, já não é novo em mim esse temor: tive-o sempre, em toda a minha vida". Mais que ninguém tremia o Santo Jó, dizendo: "Que será de mim quando Deus se levanta para me julgar, e que lhe direi se me interrogar?" (Jó 31,14). 


AFETOS E SÚPLICAS

Ó meu Deus! Quem me tem amado mais do que vós? E quem vos desprezou e ofendeu mais do que eu? Ó sangue, ó chagas de Cristo, sois minha esperança! Pai Eterno, não olheis meu pecados. Fitai as chagas de Jesus Cristo; contemplai vosso Filho muito amado, que morre de dor por mim e vos implora que me perdoeis. Pesa-me do íntimo de minha alma, meu Criador, de vos ter ofendido. Criastes-me para que vos ame, e vivi como se me tivésseis criado para vos ofender. Pelo amor de Jesus Cristo, perdoai-me e dai-me a graça do vosso amor. 

Se outrora resisti à vossa santa vontade, agora já não quero resistir, mas fazer tudo o que me ordenais. Ordenais que deteste os ultrajes que vos fiz: detesto-os de todo o coração. Ordenais que me resolva a não vos tornar a ofender; pois bem, faço o firme propósito de antes perder mil vezes a vida do que a vossa graça. Ordenais que vos ame de todo o coração; pois bem, de todo o coração vos amo e a nada quero amar senão a vós. De hoje em diante, sereis o único amado de minha alma, o meu único amor. Peço-vos o dom da perseverança, e de vós o espero obter. Pelo amor de Jesus Cristo, fazei com que vos seja sempre fiel e possa dizer com São Boaventura: "Um só é meu amado; um só é meu amor." Não quero que minha vida sirva para vos desagradar, senão para chorar as ofensas que vos fiz e para vos amar muito. 

Ó Maria, minha Mãe, intercedei por todos os que a vós se recomendam e rogai também a Jesus por mim!

_______________________________________

Santo Afonso Mª de Ligório - Preparação para a morte.










 

sexta-feira, 14 de março de 2025

Certeza da morte

 


Santo Afonso Mª de Ligório


Statutum est hominibus semel mori. 
Foi estabelecido aos homens morrer uma só vez (Hb 9,27). 

PONTO I

A sentença de morte foi escrita para todo gênero humano: É homem, deves morrer. Dizia Santo Agostinho "Só a morte é certa; os demais bens e males nossos são incertos". É incerto, se o recém-nascido será rico ou pobre, se terá boa ou má saúde, se morrerá moço ou velho. Tudo isto é incerto, mas é indubitavelmente certo que deve morrer. 

Magnatas e reis também serão ceifados pela morte, a cujo poder não há força que resista. Resiste-se ao fogo, à água, o ferro, ao poder dos príncipe, mas não se pode resistir à morte. Conta Vicente de Beauvais que um rei da França, achando-se no termo da vida, exclamava: "Com todo o meu poder, não posso conseguir que a morte espere mais uma hora". Quando chega esse momento, não poderemos retardá-lo nem por um instante sequer. 

Por muitos anos, querido leitor, que ainda tenhas de viver, há de chegar um dia, e nesse dia uma hora, que te será a última. Tanto para mim, que escrevo, como para ti, que lês este livro, está decretado o dia, o instante, em que nem eu poderei mais escrever nem tu ler. "Quem é o homem que viverá e não verá a morte?" (Sl 89,49). Está proferida a sentença. Nunca existiu homem tão néscio que se julgasse isento da morte. O que sucedeu a teus antepassados, também sucederá a ti. De quantas pessoas, que, no princípio do século passado, viviam em tua pátria, nenhuma existe com vida. Até os príncipes e monarcas deixarão este mundo. Não subsistirá deles mais que um mausoléu de mármore com inscrição pomposa que somente serve para nos patentear que dos grandes deste mundo só resta um pouco de pó resguardado por aquelas lajes. São Bernardo pergunta: "Dizei-me: onde estão os amadores do mundo? E responde: Nada deles resta, senão cinza e vermes". 
É mister, portanto, que não procuramos essa fortuna perecedora, mas a que não tem fim, já que nossas almas são imortais. De que te serviria ser feliz neste mundo, - ainda que a verdadeira felicidade não se pode encontrar numa alma que vive afastada de Deus - se depois tens de ser desgraçado eternamente? Já tens preparado tua casa a teu gosto, mas reflete que cedo terás de deixá-la para ir apodrecer numa cova. Talvez alcançaste uma dignidade que te torna superior aos outros, mas a morte virá e te igualará aos mais vis e plebeus deste mundo. 


AFETOS E SÚPLICAS
      
Infeliz de mim, que durante tantos anos só pensei em ofender-vos, ó Deus de minha alma! Passaram-se já esse anos; a minha morte talvez esteja tão próxima, e não acho em mim senão remorso e arrependimento. 
Ah, Senhor, tivesse eu sempre vos servido! Quão insensato fui! Em tantos anos de vida, não adquiri méritos para a outra vida, mas, ao contrário, me endividei para com a justiça divina! Meu amado Redentor, dai-me agora luz e ânimo para acertar minhas contas. 
Talvez a morte não esteja longe; quero preparar-me para este momento decisivo da minha felicidade ou da minha desgraça eterna. Mil graças dou-vos por terdes esperado até agora por mim. Já que me haveis dado tempo para remediar o mal cometido, aqui estou, meu Deus, dizei-me o que desejais que faça por vós. Quereis que me arrependas das ofensas que fiz? Arrependo-me delas e as detesto de toda a minha alma. Quereis que me empregue em amar-vos os anos e os dias que me restam de vida? Pois bem, assim o farei, Senhor. Ó meu Deus, já no passado mais de uma vez formei essa mesma resolução, mas minhas promessas se converteram depois em outros tantos anos de infidelidade. Não, meu Jesus, não quero mostrar-me ingrato a tantos benefícios que me dispensastes. Se agora, pelo menos, não mudar de vida, como é que na hora da morte poderei esperar perdão e alcançar a glória? Tomo, pois, nesta hora, a firme resolução de dedicar-me verdadeiramente ao vosso serviço. Mas vós, Senhor, ajudai-me e não me abandoneis. Já que não me abandonastes quando vos ofendi, espero com maior confiança vosso socorro agora que estou resolvido a sacrificar tudo para vos agradar. 
Permitir que vos ame, ó Deus digno de infinito amor! Recebei o traidor que, arrependido, se prosta a vossos pés e vos pede misericórdia. Amo-vos, meu Jesus, de todo o meu coração e mais que a mim mesmo. Sou vosso; disponde de mim e de tudo que me pertence, como vos aprouver. 
Concedei-me a perseverança em vos obedecer; dai-me vosso amor, e fazei de mim o que quiserdes. 
Maria, mãe, refúgio e esperança minha, a vós me recomendo; a vós entrego a minha alma; rogai a Jesus por mim. 


PONTO II

É certo, pois que todos fomos condenados à morte. Todos nascemos - disse São Cipriano - com a corda ao pescoço, e a cada passo que damos mais nos aproximamos da morte. Meu irmão, assim como foste inscrito no livro do batismo, assim, um dia, o serás no registro dos mortos. Assim como, às vezes, mencionas teus antepassados, dizendo: meu pai, meu tio, meu irmão, de saudosa memória, o mesmo dirão de ti os teus descendentes. Como muitas vezes tens ouvido planger os sinos pela morte de outros, assim outros ouvirão os que tocam por ti. 
Que dirias de um condenado à morte que se encaminhasse ao patíbulo galhofando e rindo-se, olhando para todos os lados e pensando em teatros, festins e divertimentos? E tu, neste momento, não caminhas também para a morte? E em que pensas? Contempla nessas sepulturas teus parentes e amigos, cuja sentença já foi executada. Que terror se apodera de um condenado, quando vê seus companheiros pendentes na forca e já mortos! Observa esses cadáveres; cada um deles diz: "Ontem, a mim; hoje, a ti" (Eclo 38,23). O mesmo te repetem, todos os dias, os retratos de teus parentes já falecidos, os livros, as casas, os leitos, as roupas que deixaram. 
Que loucura extrema, não pensar em ajustar as contas da alma e não aplicar os meios necessários para alcançar uma boa morte, sabendo que temos de morrer, que depois da morte nos está reservada uma eternidade de gozo ou de tormento, e que desse ponto depende o sermos para sempre felizes ou desgraçados! Temos compaixão dos que morrem repentinamente e não se acham preparados para a morte e, contudo não tratamos de nos preparar, a fim de não nos acontecer o mesmo. Cedo ou tarde, quer estejamos apercebidos, quer de improviso, pensemos ou não na morte, ela há de vir; e a toda hora, a cada instante nos vamos aproximando do nosso patíbulo, ou seja da última enfermidade que nos deve tirar deste mundo. 
Em cada século, as casas, as praças, as cidades enchem-se de novos habitantes. Os antigos estão no túmulo. Assim como para esses passaram os dias da vida, assim virá o tempo em que nem tu nem eu, nem pessoa alguma das que vivemos atualmente, existirá na terra. Todos estaremos na eternidade, que será para nós, ou intérmino dia de gozo, ou noite eterna de tormentos. Não há aqui meio termo. É certo, e é de fé que um ou outro destino nos espera. 

AFETOS E SÚPLICAS

Meu amado Redentor! Não me atreveria a aparecer diante de vós, se não vos visse pregado à cruz, despedaçado, escarnecido e morto por minha causa. Grande é minha ingratidão, porém maior é ainda vossa misericórdia. Muito grande foram meus pecados, maiores são vossos méritos. Em vossas chagas, em vossa morte ponho minha esperança. 
Mereci o inferno desde o primeiro momento do meu pecado e, apesar disso, voltei a ofender-vos mil e mil vezes. E vós, não só me haveis conservado a vida, mas com extrema bondade e amor me ofereceste o perdão e a paz. Como posso recear que me afasteis agora que vos amo, e que não desejo senão vossa graça? 
Sim, amo-vos de todo o coração, ó meu Senhor, e meu único anseio é amar-vos. Adoro-vos, e pesa-me de ter-vos ofendido, não tanto porque mereci o inferno, como por ter desprezado a vós, meu Deus, que tanto me amais. Abri, pois, meu Jesus, o tesouro de vossa bondade, e acrescentai misericórdia a misericórdia. Fazei com que eu não tome a ser ingrato para convosco e mudai completamente o meu coração, a fim de que seja todo vosso, e inflamado sempre pelas chamas do vosso amor, já que outrora vos menosprezou, preferindo os vis prazeres deste mundo. 
Espero alcançar o paraíso, para vos amar sempre; e ainda que ali não poderei tomar lugar entre os inocentes, colocar-me-ei ao lado dos penitentes, desejando, entre estes, amar-vos mais que os inocentes. 
Para glória da vossa misericórdia, veja o céu como arde em vosso amor um pecador que tanto vos ofendeu. Tomo hoje a resolução de entregar-me todo a vós, e de só pensar em vos amar. Ajudai-me com vossa luz e graça, a fim de que cumpra este desejo, inspirado também por vossa bondade. 
Ó Maria, mãe da perseverança, alcançai-me a graça de ser fiel à minha promessa! 


PONTO III

A morte é certa. Tantos cristãos sabem-no, o crêem, o vêem e, entretanto, vivem no esquecimento da morte como se nunca tivessem de morrer! Se depois desta vida não houvesse nem paraíso nem inferno, seria possível pensar menos na morte do que se pensa atualmente? Daí procede a má vida que levam. 
Meu irmão, se queres viver bem, procura passar o resto dos teus dias sem perder de vista a morte. Quanto aprecia com acerto as coisas e dirige suas ações sensatamente aquele que as aprecia e dirige pela ideia de que se deve morrer! (Eclo 41,3). A lembrança da morte - disse São Lourenço Justiniano - desprende o coração de todas as coisas terrenas. Todos os bens do mundo se reduzem a prazeres sensuais, riquzezas e honras ( 1Jo 2,16). Aquele, porém, que considera que em breve não será mais que pó e que, em baixo da terra, servirá de pasto aos vermes, despreza todos esses bens. 

Foi efetivamente pensando na morte que os santos desprezaram os bens terrestres. Por este motivo, São Carlos Borromeu conservava sobre sua mesa um crânio humano; tinha a morte continuamente diante dos olhos. O cardeal Barônio tinha gravado no anel esta inscrição: "Memento mori": Lembra-te que tens de morrer. O venerável Pe. Juvenal Ancina, bispo de Saluzzo, gravara numa caveira essas palavras: "Fui o que és, serás o que sou". Um santo ermitão, a quem perguntaram na hora da morte por que se mostrava tão contente, respondeu: Tantas vezes tive a morte diante dos olhos, que agora, quando se aproxima, não vejo coisa nova. 
Que loucura seria a de um viajante que só cuidasse de ostentar o luxo e grandezas nas localidades por onde teria de passar, sem pensar sequer que depois teria de viver miseravelmente no lugar onde durante toda a sua vida ia residir? E não será igualmente demente aquele que procura ser feliz neste mundo, onde são poucos os dias que tem de passar, e se arrisca a ser desgraçado no outro, onde viverá eternamente? Quem pede emprestado um objeto, pouca afeição lhe pode ter, porque sabe que em breve o tem de restituir. Os bens da terra são todos dados de empréstimo; é, pois, grande loucura tomar-lhes afeição, porque dentro de pouco tempo temos de abandoná-los. A morte de tudo nos privará. Todas as nossas propriedades e riquezas acabar-se-ão com o último suspiro, com o funeral, com o trajeto ao túmulo. A casa que mandastes construir passará às mãos de outrem; o túmulo será morada do seu corpo até ao dia do juízo, depois do qual passará ao céu, ou ao inferno, onde tua alma já lhe terá precedido. 


AFETOS E SÚPLICAS
  
Tudo, portanto, se há de acabar para mim na hora da morte? Nada me restará, meu Deus, senão o pouco que fiz por vosso amor? Que estou esperando? Que a morte venha e me encontre no estado miserável de culpas em que me acho atualmente? Se morresse neste momento, bem inquieto ficaria, e bem aflito quanto à vida passada. Não, meu Jesus, não quero morrer assim. Agradeço-vos por me terdes dado tempo para amar-vos, chorar meus pecados. Quero começar desde já. 

Pesa-me de todo o coração o ter-vos ofendido, e amo-vos sobre todas as coisas, Suprema Bondade, mais que a minha própria vida. Dou-me todo a vós, meu Jesus; abraço-vos, vos aperto ao coração e desde este momento vos recomendo minha alma (Sl 31,6). Não quero esperar, para vo-la dar, até ao momento em que se lhe ordene sair deste mundo. Não quero guardar minha súplica para quando me chamardes. "Ó Jesus, sede para mim Jesus". Salvai-me agora, perdoai-me e concedei-me a graça do vosso amor! Quem sabe se esta consideração, que hoje leio, seja o último aviso que me dais e a derradeira misericórdia para comigo? Estendei a vossa mão, meu Amor, e fazei-me sair da minha tibieza. 

Dai-me eficaz fervor e amorosa obediência a tudo que queres de mim. 

Ó Pai Eterno, pelo amor de Jesus Cristo, concedei-me a santa perseverança e o dom de amar-vos durante o resto de minha vida. 

Ó Maria, mãe de misericórdia, pelo amor que tendes ao vosso Jesus, alcançai-me estas duas graças, a perseverança e o amor!

______________________________________________________________

Santo Afonso Mª de Ligório, Preparação para a morte.  


















































 








domingo, 9 de março de 2025

Brevidade da vida



 Santo Afonso Mª de Ligório 


Quae est vita vestra? Vapor est ad modicum parens. 

Que é nossa vida? É vapor que aparece por um instante. (Tg 4,14). 


Ponto I

Que é nossa vida? Assemelha-se a um tênue vapor por que o ar dispersa e desaparece completamente. Todos sabemos que temos de morrer. Muitos, porém, se iludem, imaginando a morte tão afastada que jamais houvesse de chegar. Jó, entretanto, nos adverte que a vida humana é brevíssima: "O homem, vivendo breve tempo, brota como flor e murcha (Jó 14,1-2). Foi esta a mesma verdade que Isaías anunciou por ordem do Senhor. "Clama - disse-lhe - que toda carne é erva... verdadeira erva é o povo; seca a erva, cai a flor" (Is 40,6-8). A vida humana é, pois, semelhante à de uma planta. Chega a morte, seca a erva; acaba a vida e murcha, cai a flor das grandezas e dos bens terrenos. 

A morte corre ao nosso encontro mais rápido que um corredor. E nós, a cada instante, corremos para ela (Jo 9,25). A cada passo, a cada respiração chegamos mais perto da morte. "Este momento em que escrevo - disse São Jerônimo - faz-me caminhar para a morte." "Todos temos de morrer, e nós deslizamos como água sobre a terra, a qual não volta para trás. (2Sm 14,14). Vê como corre o regato para o mar; suas águas não retrocedem; assim, meu irmão, passa teus dias e cada vez mais te acercas da morte. Prazeres, divertimentos, faustos, lisonjas e honras, tudo passa. E o que fica? "Só me resta o sepulcro" (Jó 17,1). Seremos lançados numa cova e, ali, entregues à podridão, privados de tudo. No transe da morte, a lembrança de todos os gozos que em vida desfrutamos e bem assim das honras adquiridas só servirá para aumentar a nossa mágoa e nossa desconfiança em obter a salvação eterna. Dentro em breve, o pobre mundano terá que dizer: minha casa, meus jardins, esses móveis preciosos, esses quadros raríssimos, daqueles vestuários já não serão para mim! "Só me resta o sepulcro."

Ah! com que dor profunda há de olhar para os bens terrestres aquele que os amou apaixonadamente! Mas essa mágoa já não valerá senão para aumentar o perigo em que se acha a salvação. A experiência nos tem provado que tais pessoas, apegadas ao mundo, mesmo no leito da morte, só querem que se lhes fale de sua enfermidade, dos médicos que se possam consultar, dos remédios que os aliviem. Mas, logo que se trata da alma, enfadam-se e pedem para descansar, porque lhes dói a cabeça e não podem ouvir conversação. Se, por acaso, respondem, é confusamente e sem saberem o que dizem. Muitas vezes, o confessor lhes dá a absolvição, não porque os acha bem preparados, mas porque já não há tempo a perder. Assim costumam morrer aqueles que pensam pouco na morte. 

AFETOS E SÚPLICAS

Meu Senhor e meu Deus de infinita majestade! Envergonho-me de aparecer ante da vossa presença Quantas vezes injuriei vossa honra, preferindo à vossa graça um indigno prazer, um ímpeto de cólera, um pouco de barro, um capricho, um fumo leve! Adoro e beijo vossas santas chagas, que vos inflingi com meus pecados. Pelas mesmas espero meu perdão e salvamento. Fazei-me conhecer, ó Jesus, a gravidade da ofensa que cometi, sendo como sois a fonte de todo bem e eu vos abandonei para saciar-me em águas corruptas e envenenadas. Que me resta de tantas ofensas, senão angústias, remorsos e méritos para o inferno? "Meu pai, não sou digno de chamar-me vosso filho" (Lc 15,21). Não me abandoneis, pai. 

Verdade é que não mereço a graça de chamar-me vosso filho. Mas morrestes para salvar-me. Dissestes, Senhor: "Convertei-vos a mim e eu me voltarei para vós" (Zc 1,3). Renuncio, pois, a todas as minhas satisfações. Deixo o mundo quantos prazeres se me podem oferecer e me converto a vós. 

Perdoai-me, pelo sangue que derramastes por mim. Senhor, arrependo-me e vos amo sobre todas as coisas. Não sou digno de amar, mas vós, que mereceis tanto amor, não desprezeis o amor de um coração que em outro tempo vos desprezava. A fim de que vos amasse, não me deixaste morrer quando me achava em estado de pecado. 

Quero amar-vos na vida que me resta, e não amar a nada mais que a vós. Assisti-me, meu Deus; dai-me o dom da perseverança e o vosso santo amor. 

Maria, meu refúgio, recomendai-me a Jesus Cristo. 


PONTO II

Exclamava o Rei Ezequias: "Minhas vida foi cortada como por tecelão. Quando estava urdindo, ele me cortou" (Is 38,12). Quantas pessoas andam preocupadas a tecer a teia de sua vida, ordenando e combinando com arte seus mundanos desígnios, quando os surpreende a morte e rompe tudo! Ao pálido resplendor da última luz todas as coisas deste mundo se obscurecem: aplausos, prazeres, pompas e grandezas. 

Grande segredo o da morte! Sabe mostrar-nos o que não veem os amantes do mundo. As mais cobiçadas fortunas, os postos mais elevados, os triunfos mais estupendos, perdem todo o seu esplendor considerados à vista do leito mortuário. Convertem-se então em indignação contra nossa própria loucura as idéias que tínhamos formado de certa felicidade ilusória. A sombra negra da morte cobre e obscurece até as dignidades régias. 

Durante a vida, nossa paixões nos apresentam os bens do mundo de modo mui diferente do que são. A morte, porém, lhes tira o véu e os mostra na sua realidade: fumo, logo, vaidade e miséria. Meu Deus, para que servem depois da morte riquezas, domínio e reinos, quando ao morrer, temos apenas necessidade de um ataúde de madeira e de uma mortalha para cobrir o corpo? Para que servem honras, se apenas nos darão um cortejo fúnebre ou pomposas exéquias, que de nada nos aproveitarão se a alma está perdida? Para que serve formosura do corpo, se não restam mais que vermes, podridão espantosa e, pouco depois, pó infecto? Ele me reduziu a ser como a fábula do povo, e sou um lúbrico diante deles (Jó 17,6). 

Morre um ricaço, um governador, um capitão, e por toda a parte sua morte será apregoada. Mas, se viveu mal, virá a ser censurado pelo povo, exemplo da vaidade do mundo e da justiça divina, e escarmento para muitos. Na cova será confundido com os cadáveres dos pobres. "Grandes e pequenos ali estão" (Jó 3,19). De que lhe serviu a garlhadia do seu corpo, se agora não passa de um montão de vermes? De que lhe valeu a autoridade que possuía, se agora seus restos mortais estão condenados a apodrecer numa vala e sua alma arrojadas nas chamas do inferno? Oh, que desdita ser para os demais objeto de semelhantes reflexões, e não as haver feito em benefício próprio! Persuadamo-nos, portanto, que, para remediar as desordens da consciência, não é apropriado o tempo da morte, mas sim o da vida. 

Apressemo-nos a pôr as mãos à obra naquilo que então não poderemos fazer. Tudo passa e fenece depressa (1Cor 7,29). Procuremos agir de modo que tudo nos sirva para conquistar a vida eterna. 


AFETOS E SÚPLICAS

Ó Deus de minha alma, ó bondade infinita! Tende compaixão de mim, que tanto vos tenho ofendido. Sabia que, pecando perdia vossa graça, e quis perdê-la. Dizei-me, Senhor, o que devo fazer para recuperá-la. 

Se quereis que me arrependa dos meus pecados, deles me arrependo de todo o coração, e tanto que quisera morrer de dor por havê-los cometido. Se quereis que espere o vosso perdão, espero-o pelos merecimentos do vosso sangue. Se quereis que vos ame sobre todas as coisas, tudo deixo, renuncio a todos os prazeres que o mundo pode me oferecer, e vos amo mais que todos os bens, ó amabilíssimo Salvador meu! Se quereis, enfim, que vos peça alguma graça, ouso pedir-vos as seguintes: que não permitais que vos torne a ofender e que me concedais que vos ame verdadeiramente; depois fazei de mim o que quiseres. 

Maria, esperança minha, alcançai-me estas duas graças. É de vós que as espero. 


PONTO III

Que grande loucura expor-se ao perigo de uma morte infeliz e começar com ela uma eternidade desditosa, por causa dos breves e miseráveis deleites desta vida tão curta! Oh, quanta importância tem esse último instante, esse último suspiro, esta última cena! Vale uma eternidade de gozos ou de tormentos. Vale uma vida sempre feliz ou sempre desgraçada. Consideremos que Jesus Cristo quis morrer vítima de tanta amargura e ignomínia para nos obter morte venturosa. Com este fito nos dirige tantas vezes seu convite, dá-nos suas luzes, nos admoesta e ameaça, tudo para que procuremos concluir a hora derradeira na graça e na amizade de Deus. 

Até um pagão, Antístenes, a quem perguntaram qual era a maior dita deste mundo, respondeu que era uma boa morte. Que dirá, pois, um cristão, a quem a luz da fé ensina que nesse momento começa a eternidade e se toma um dos dois caminhos, o do eterno sofrimento ou o da eterna alegria? Se numa bolsa metessem dois bilhetes: um com a palavra inferno, outro com a palavra glória, e tivesses que tirar à sorte um deles para seguir imediatamente ao lugar indicado, que precaução não tomarias para tirar o que desse entrada para o céu? Os desgraçados, condenados a jogar a vida, como tremem ao estender a mão para lançar os dados, dos quais depende sua vida ou morte. 

Com que espanto te verás próximo desse momento solene em que poderás dizer a ti mesmo: Deste momento depende minha vida ou minha morte eterna! Decide-se agora se hei de ser eternamente feliz ou desesperado para sempre. Refere São Bernardino de Sena que certo príncipe, ao expirar, dizia atemorizado: Eu, que tantas terras e palácios possuo neste mundo, não sei, se morrer esta noite, que mansão irei habitar! Se crês, meu irmão, que hás de morrer, que existe eternidade, que se morre só uma vez, e que, dado este passo em falso, o erro é irreparável para sempre e sem esperança de remédio: por que não te decides, desde o momento em que isto lês, a praticar quanto puderes para te assegurar uma boa morte? Era a tremer que Santo André Avelino dizia: Quem sabe a sorte que me estará reservada na outra vida: salvar-me-ei? Tremia um São Luís Beltrão de tal maneira que, em muitas noites, não lograva conciliar o sono, acabrunhado pelo pensamento que lhe dizia: Quem sabe se te condenarás? E tu, meu irmão, que de tantos pecados és culpado, não tremes? Apressa-te em tomar o remédio oportuno; decide entregar-te inteiramente a Deus, e começa, desde já, uma vida que não te aflija, mas proporcione consolo na hora da morte. Dedica-te à oração; frequenta os sacramentos, evita ocasiões perigosas e, se tanto for preciso, abandona o mundo para assegurar tua salvação, persuadido de que, quando esta se trata, não há confiança que baste. 


AFETOS E SÚPLICAS

Quanta gratidão vos devo, meu amado Salvador! Como pudestes prodigalizar tantos benefícios a um traidor e ingrato para convosco? Criaste-me, e criando-me, já prevíeis quantas ofensas vos havia de fazer um dia. Remiste-me, morrendo por mim, e, já então, víeis toda a ingratidão com que havia de proceder. Apenas entrando no mundo, afastei-me de vós; entreguei-me à morte, à corrupção, mas vós, por vossa graça, me restituístes à vida. Estava cego e me abristes os olhos. Tinha-vos perdido, e fizestes que vos tornasse a encontrar. Era vosso inimigo e me oferecestes vossa amizade.

Ó Deus de misericórdia, fazei-me conhecer o muito que vos devo e que chore as ofensas que vos fiz. Vingai-vos de mim, dando-me dor profunda pelos meus pecados; mas não me castigueis, privando-me de vossa graça e de vosso amor.

Ó Pai Eterno, abomino e detesto acima de tudo os ultrajes que fiz. 

Tende piedade de mim, por amor de Jesus Cristo! Olhai vosso Filho morto na cruz, e desça sobre mim o seu sangue divino para lavar a minha alma. Ó Rei do meu coração, venha o vosso Reino. Estou resolvido a repelir toda a afeição que não seja por vós. Amo-vos sobre todas as coisas; vinde reinar em minha alma. Fazei que eu vos ame como o único objeto de meu amor. Desejo agradar-vos quanto me for possível no tempo de vida que me resta. Abençoai, meu Pai, este meu desejo, e concedei-me a graça de permanecer sempre unido a vós. Consagro-vos todas as minhas afeições e doravante só quero ser vosso, ó meu tesouro, minha paz, minha esperança, meu amor, meu tudo! Tudo espero de vós pelos merecimentos de vosso Filho. 

Ó Maria, minha Rainha e minha Mãe, ajudai-me pela vossa intercessão! Mãe de Deus, rogai por mim. 

___________________________________________________

Santo Afonso Mª de Ligório, Preparação para a morte.      







terça-feira, 4 de março de 2025

Tudo se acaba com a morte - ponto III

 




Davi compara a felicidade na vida presente ao sonho de um homem que desperta (Sl 72,20), e, comentando estas palavras, escreve um autor: "Parecem grandes os bens deste mundo; mas, na realidade, nada são, e duram pouco, semelhante ao sonho, que se esvai. O pensamento de que com a morte tudo se acaba, inspirou a São Francisco de Borja a resolução de dar-se inteiramente a Deus. Incubiram-no de acompanhar o cadáver da imperatriz Isabel de Granada. Quando abriram o ataúde, foi tal o aspecto horrível que ofereceu e o cheiro que exalou, que afugentou toda a gente. Só São Francisco, guiado pela luz divina, ficou a contemplar nesse cadáver a vaidade do mundo, e olhando-o disse: "Sois, então, a minha imperatriz? Sois aquela, que diante da qual tantos grandes reverentes te ajoelharam? Isabel, para onde foi a vossa majestade, vossa beleza? É assim - concluiu ele de si para consigo - que acabam as grandezas e as coroas do mundo! Não sirvo mais a um senhor que me possa ser roubado pela morte! E desde então se consagrou inteiramente ao amor do Crucificado, fazendo voto de abraçar o estado religioso quando sua esposa morresse, o que depois efetivamente cumpriu, entrando na Companhia de Jesus. 

Tinha razão, portanto, esse homem desiludido, quando escreveu sobre um crânio humano: "Quem pensa na morte, tudo lhe parece vil." 

Quem medita na morte, não pode amar a terra. Por que, entretanto, há tantos desgraçados que amam este mundo? Porque não pensam na morte. Míseros filhos de Adão - diz-nos o Espírito Santo, - por que não arrancais do coração os afetos terrenos, que fazem amar a vaidade e a mentira? (Sl 4,3). O que aconteceu a teus antepassados, sucederá também a ti; eles moraram nesta mesma casa, dormiram nesse mesmo leito, mas já não existiu: o mesmo acontecerá a ti. 

Entrega-te, pois, a Deus, meu caro irmão, antes que chegue a morte. 

Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje (Ecl 9, 10); porque o dia presente passa e não volta; e amanhã a morte poderia apresentar-se e nada te permitiria fazer. Procura, sem demora, libertar-te do que te afasta de Deus. Rompe, sem tardança, com todo laço que te prende aos bens da terra, antes que a morte os venha arrebatar. Bem-aventurados os que, ao morrer, já se acham mortos para as afeições terrenas (Ap 14,13). Estes não temem a morte, antes a desejam e abraçam alegremente. 

Em vez de separá-los dos bens que amam, une-os ao Sumo Bem, que é o único objeto digno de amor e que os tornará eternamente felizes. 


AFETOS E SÚPLICAS

Agradeço-vos, meu amado Redentor, o terdes esperado por mim. 

Que teria sido de mim, se me tivésseis dado a morte quando tão afastado de vós me encontrava? Benditas sejam para sempre a misericórdia e paciência com que me trataste! Rendo-vos sinceras graças pelos dons e luzes com que me enriquecestes. Não vos amava, nem me importava então ser amado por vós. Agora, vos amo de todo o coração e a pena que mais me acabrunha é ter desagradado à vossa infinita bondade.

Atormenta-me esta dor: tormento, entretanto, que é doce, pois me traz esperança de que já me perdoastes! Oxalá, dulcíssimo Jesus, tivesse morrido mil vezes, antes de vos ter ofendido! Tremo só em pensar que no futuro possa tornar a vos ofender. Ah, Senhor: Fazei-me antes morrer da morte mais dolorosa do que permitir que de novo perca a vossa graça. Já fui escravo do inferno; agora sou vosso servo, ó Deus de minha alma! Disseste que amais a quem vos ama (Pe 8,17). Amo-vos, pois, sou vosso e vós sois meu. 

Como ainda posso perder-vos futuramente, peço-vos a graça de antes morrer que de novo vos perder. Se tantos benefícios me dispensastes sem que eu os pedisse, já não receio que me negueis este que vos peço agora. Não permitais que vos perca. Concedei-me vosso amor e nada mais desejo.  

Maria, minha esperança, intercedei por mim. 


____________________________________________

Preparação para a morte, Santo Afonso de Ligório 


Da anunciação de Maria - II

 



Ponto II - De como Deus não poderia exaltá-la mais que exaltou

Para compreender a altura a que foi alçada Maria, necessitar-se-ia de compreender quão sublime é a altura e a grandeza de Deus. Bastará somente, pois, dizer que Deus fez dessa Virgem a sua mãe para entender que Deus não pôde exaltá-la mais do que a exaltou. Bem afirmou S. Arnoldo de Chartres que Deus, fazendo-se filho da Virgem, estabeleceu-a acima de todos os santos e anjos. De modo que, fora Deus, ela é sem comparação mais alta que todos os espíritos celestes, como fala S. Efrém e o confirma S. André de Creta. S. Anselmo, diz: "Senhora, não tendes quem vos seja igual, porque todo o resto está ou acima ou abaixo de vós; Deus apenas é superior a vós, e todos os outros vos são inferiores. É tanta, em suma, retoma S. Bernardino, a altura dessa Virgem que só Deus a pode e sabe compreender. 

E aumenta o espanto a qualquer um - adverte S. Tomás de Vilanova - que os sagrados Evangelistas, que se estenderam tanto em registrar os louvores de um Batista, de uma Madalena, tenham sido tão parcos em descrever as qualidades de Maria. "Contentam-se", responde o santo, "em dizer que da Virgem nasceu Jesus", "Que mais procuras", segue falando o mesmo, "que digam os Evangelistas das grandezas dessa Virgem? Baste para ti que declarem ser ela a Mãe de Deus. Se escreveram, portanto, o ápice, a totalidade das suas qualidades, não foi necessário que os saíssem descrevendo por partes". "E como não?", retoma S. Anselmo: "dizer de Maria isto somente, que ela é Mãe de um Deus, supera toda altura dizível ou pensável abaixo de Deus". E Pedro de Celles à mesma consideração ajunta: "Qualquer nome que lhes dês, seja Rainha do Céu, seja Senhora dos Anjos, seja qualquer outro título de honra, não alcançarás jamais honrá-la tanto quanto como chamá-la apenas Mãe de Deus". A razão é evidente, pois, como ensina o Angélico, quanto mais uma coisa se aproxima do seu princípio tanto mais recebe a sua perfeição; e por isso, sendo Maria a criatura mais próxima a Deus, ela participou mais do que todas as outras da graça, da perfeição e da grandeza. Daqui tira Suarez a razão por que a dignidade de Mãe de Deus é de ordem superior a toda outra dignidade criada, uma vez que aquela pertence de certo modo à ordem da união com uma pessoa divina, com a qual se liga necessariamente. Donde afirma S. Dionísio, o cartuxo, que depois da união hipostática não há outra mais próxima do que a Mãe de Deus. É essa, ensina S. Tomás, a mais alta união que pode uma pura criatura ter com Deus. E Santo Alberto Magno afirma que ser Mãe de Deus é a dignidade imediata à dignidade de ser Deus. Donde diz que Maria não poderia ser mais unida a Deus do que foi a não ser com tornar-se ela própria Deus. Afirma S. Bernardino que a SS. Virgem para ser Mãe de Deus precisou ser alçada a uma certa igualdade com as pessoas divinas por uma quase infinidade de graças. E sendo que os filhos moralmente falando, são considerados iguais aos pais, de modo que entre eles são comuns os bens, comuns as honras, daí diz S. Pedro Damião que se Deus habita de diversos modos nas criaturas, em Maria habitou pelo modo singular da identidade, fazendo-se igual a ela. Daí exclama com aquele célebre dito: "Por isto cale tamanha dignidade. Mora Deus na Virgem, com a qual possui uma só natureza".

Por isso afirma S. Tomás que Maria, tendo sido feita Mãe de Deus, por razão dessa união tão estreita com um bem infinito, recebeu uma certa dignidade infinita, que o Pe. Suarez chama de infinita em seu gênero. Pois a dignidade de divina mãe é a maior dignidade que pode conferir-se a uma pura criatura, ensinando o Angélico que, tal como a humanidade de Jesus Cristo, embora pudesse ter recebido de Deus uma graça habitual maior, - pois como a graça habitual é um dom criado, devemos confessar que tenha uma essência finita e é em qualquer criatura limitada à medida da sua capacidade, o que, todavia, não impede que a divina potestade faça outra criatura de maior capacidade - não obstante, quanto à união com uma pessoa divina, recebeu a maior das virtudes. Assim, por outro lado, a Santíssima Virgem não pôde receber uma dignidade maior do que ser Mãe de Deus. O mesmo escreveu S. Tomás de Vilanova: "Certamente há condição de mãe a que Deus exaltou Maria foi a mais alta possível, de modo que não a poderia alçar mais. E o confirma Santo Alberto Magno: "O Senhor deu à Santíssima Virgem o mais alto de que era capaz uma pura criatura, a saber, a maternidade de Deus". 

Daí que S. Boaventura tenha escrito aquela célebre frase, que Deus pode fazer um mundo maior, um céu mais amplo, mas que não há modo de fazer uma criatura mais excelsa senão tornando-a sua mãe. Mas a própria divina Mãe exprimiu melhor do que todos a altura a que Deus a sublimara, dizendo: porque realizou em mim maravilhas aquele que é poderoso (Lc 1,49). E por que a SS. Virgem não declarou quais eram essas grandes coisas concedidas por Deus? Responde S. Tomás de Vilanova que Maria não as desdobrou porque eram tão grandes que não era possível desdobrá-las. 

Donde teve razão S. Bernardo em dizer que é por essa Virgem, que havia de ser a sua mãe, que Deus criou o mundo inteiro; e S. Boaventura, em dizer que o mundo persevera graças a Maria, aderindo nisso às palavras dos Provérbios que a Igreja aplica a Maria: junto a ele estava eu como artífice (Pr 8,30). Acrescentou S. Bernardo que Deus por amor de Maria não destruiu o homem depois do pecado de Adão. Daí que é com razão que a S. Igreja canta, a respeito de Maria. Escolheu a melhor parte (In off. Ass. B.M.), visto que essa virgem Mãe não apenas escolheu as melhores coisas, mas dentre as melhores escolheu a melhor parte, dotanto-a o Senhor em sumo grau - como declara Santo Alberto Magno - de todas as graças e dons gerais e particulares conferidos a todas as outras criaturas; tudo em consequência da dignidade que lhes foi concedida de divina mãe. 

De modo que Maria foi menina, mas de tal condição teve apenas a inocência, mas não o defeito da incapacidade; pois desde o começo da sua vida teve ela sempre o uso perfeito da razão. Foi virgem, mas sem a ignomínia de estéril. Foi mãe, mas sem perder a virgindade. Foi bela, belíssima, melhor dizendo, como declara Ricardo de S. Vitor com S. Jorge da Nicomédia e S. Dionísio Areopagita, o qual - segundo supõem muitos - se regalou uma vez de ver a sua beleza, e disse se a fé não o tivesse ensinado que aquela era uma criatura, a teria adorado por Deus; e o próprio Senhor revelou a S. Brígida que a beleza de sua mãe superou a beleza de todos os homens e anjos quando se fez ouvir à santa a falar com Maria. Foi belíssima, retomo eu, mas sem impuros, e o que é mais, incutia pensamentos de pureza, como declara "mirra que impede a podridão", como a ela se refere a S. Igreja. Na vida ativa operava, mas sem que o operar a distraísse da união com Deus. Na contemplativa recolhia-se em Deus, mas sem descuidar as coisas temporais e a caridade devida ao próximo. Tocou-lhe a morte, mas sem as suas agonias e sem a corrupção do corpo. 

Logo concluamos. Essa divina Mãe é infinitamente inferior a Deus, mas é imensamente superior a todas as criaturas. E se é impossível encontrar um filho mais nobre que Jesus, é impossível também encontrar uma mãe mais nobre que Maria. Sirva isso aos devotos dessa Rainha de motivo não apenas para alegrar-se por sua grandezas, mas também para crescer em confiança no seu poderosíssimo patrocínio, pois, sendo Mãe de Deus, diz o Pe. Suarez que ela tem um certo direito sobre os seus dons para impetrá-los àqueles para quem ela roga. Por outro lado diz S. Germano que Deus não pode não atender as preces dessa Mãe, uma vez que não pode não reconhecê-la por sua verdadeira e imaculada mãe. De modo que a vós, ó Mãe de Deus e mãe nossa, não falta poder para socorrer-nos; não falta nem mesmo vontade. Pois vós já sabeis, direi com o vosso abade de Celles, que Deus não vos criou só para si, mas vos deu aos anjos para os restaurar, aos homens para os reparar, aos demônios para os subjulgar, uma vez que por meio de vós nós recuperamos a divina graça, e por vós o inimigo sai vencido e abatido. 

E se desejamos comprazer à divina Mãe, saudemo-la muitas vezes com a Ave Maria. Apareceu um dia Maria a S. Matilde e lhe disse que não se podia honrá-la melhor do que com essa saudação. E dali alcançaremos ainda por cima singulares graças dessa mãe de misericórdia, como se verá no seguinte exemplo. 

EXEMPLO

É célebre o incidente que relata o Pe. Paulo Segneri no seu Cristão Instruído (P. 3, Rag. 34). Foi confessar-se em Roma com o Pe. Nicolau Zucchi um jovem carregado de pecados desonestos e maus hábitos. O confessor o acolheu com caridade e, compadecido de sua miséria, lhe disse que a devoção a Nossa Senhora podia livrá-lo daquele maldito vício; donde lhe impôs por penitência que até a próxima confissão, toda manhã e toda noite, ao levantar-se e deitar-se na cama, rezasse uma Ave Maria à Virgem, oferecendo-lhe os olhos, as mãos, e todo o seu corpo e rogando-lhe que o guardasse como possessão sua, e beijasse três vezes o chão. O jovem praticou essa penitência, e a princípio resultou uem pouca correção. Mas o padre continou a inculcar-lhe que não a deixasse jamais, encorajando-o a confiar no patrocínio de Maria. 

Durante esse tempo o penitente partiu com outros companheiros e passou muitos anos rodando o mundo. Assim que retornou a Roma, foi de novo encontrar seu confessor, o qual, com júbilo e maravilhamento, encontrou-o todo transformado e livre das antigas imundícies. "Filho", lhe disse, "como obtiveste de Deus tão bela transformação?" Respondeu o jovem: "Padre, Nossa Senhora por aquela pequena devoção que me ensinastes obteve-me a graça". 

Mas não terminam aqui as maravilhas. O mesmo confessor contou do púlpito o fato; ouviu-o um capitão que já havia muitos anos mantinha uma torpe relação com uma mulher e propôs-se também ele a fazer a mesma devoção para livrar-se daquelas terríveis correntes que o mantinham escravo do demônio - propósito necessário a todos os pecadores para que a Virgem os possa ajudar. Assim também ele abandonou o costume e mudou de vida. E depois? A fim de seis meses ele tolamente e confiando demais nas próprias forças quis ir um dia encontrar aquela mulher para ver se ela também mudara de vida. Mas ao achegar-se à porta da casa onde havia claro risco de voltar a cair, sentiu-se por uma força invisível repelir para trás, e encontrou-se tão distante da casa quanto era longa aquela rua, e acabou deixado na frente da sua própria casa; reconheceu então com uma luz clara que Maria assim o livrara da sua perdição. Do que se percebe como é solícita a nossa boa Mãe não apenas para tirar-nos do pecado, se nós com esse bom propósito a ela nos recomendamos, mas também para livrar-nos do perigo de novas quedas. 


ORAÇÃO

Ó Virgem imaculada e santa, ó criatura a mais humilde, a maior diante de Deus! Vós fostes tão pequena aos vossos olhos, mas tão grande aos olhos do vosso Senhor, que vos exaltou a ponto de escolher-vos por mãe e daí de fazer-vos a Rainha do céu e da terra. Agradeço pois ao Deus que tanto vos ergueu, e me alegro convosco em ver-vos tão unida a Deus quanto é permitido a uma pura criatura. Diante de vós, que sois tão humilde apesar de tantas qualidades, me envergonho de comparecer eu, miserável tão soberbo e com tantos pecados. Mas ainda assim, miserável quanto eu seja, quero também eu saudar-vos: Ave, Maria, gratia plena [Ave Maria, cheia de graça]: Vós sois cheia de graça, impetrai uma parte dessa graça também para mim. Dominus tecum [O Senhor é convosco]: o Senhor que esteve sempre convosco desde o primeiro momento de vossa infância agora estreitou-se ainda mais a vós fazendo-se vosso Filho. Benedicta tu in mulieribus [Bendita sois vós entre as mulheres]: Ó mulher bendita entre todas as mulheres, obtende também para nós a divina bênção. Et benedictus fructus ventris tui [e bendito é o fruto do vosso ventre]: Ó planta beata que destes ao mundo fruto tão nobre e santo! Sancta Maria Mater Dei [Santa Maria, Mãe de Deus]: Ó Maria, eu confesso que vós sois a verdadeira Mãe de Deus, e por essa verdade estou pronto a dar mil vezes a vida. Ora pro nobis peccatoribus [rogai por nós pecadores]: Mas se vós sois a Mãe de Deus, sois ainda a mãe da nossa salvação e de nós, pobres pecadores, já que para salvar os pecadores é que Deus se fez homem; e fez-vos sua mãe, a fim de que as vossas preces tenham a virtude de salvar qualquer pecador. Eia, pois, ó Maria, rogai por nós. Nunc et in hora mortis nostrae [agora e na hora de nossa morte]: Rogai sempre; rogai agora que em vida estamos em meio a tantas tentações e perigos de perder Deus; porém mais ainda rogai na hora de nossa morte, quando estivermos a ponto de partir deste mundo e de ser apresentados ao divino tribunal; a fim de que, salvando-nos pelos méritos de Jesus Cristo e pela vossa intercessão, possamos chegar um dia, sem mais perigo de perder-nos, e saudar-vos e louvar-vos com o vosso Filho no céu por toda a eternidade. Amém. 


____________________________________

Glórias de Maria, Santo Afonso Maria de Ligório. Ed. Minha Biblioteca Católica 2019.