23 de abril
Jorge [Georgius] vem de geos, que quer dizer "terra", e de orge "cultivar", de forma que o nome significa "cultivando a terra", isto é, sua carne. No seu livro Sobre a Trindade, Agostinho afirma que a boa terra pode estar tanto no alto das montanhas como nas encostas temperadas das colinas ou nas planícies. O primeiro tipo convém ao pasto, o segundo às vinhas, o terceiro aos cereais. De forma semelhante, o beato Jorge foi como a terra alta por desprezar as coisas baixas e exaltar as puras, foi como a terra temperada devido à descrição do vinho da eterna alegria, foi como a terra plana pela humildade que produz frutos de boas obras. Jorge também pode vir de gerar, "sagrado", e de gyon, "areia", Jorge foi pesado pela gravidade dos costumes, miúdo por sua humildade, seco pela isenção de volúpia carnal. O nome pode ainda derivar de gerar, "sagrado", e gyon, "luta", significado "lutador sagrado" porque lutou contra o dragão e contra o carrasco. Jorge ainda pode resultar de gero, que quer dizer "peregrino", de gír, "cortado", e de ys, "conselheiro", porque foi peregrino em seu desprezo pelo mundo, cortado em seu martírio e conselheiro na prédica do reino de Deus. Sua legenda foi considerada apócrifa pelo concílio de Nicéia devido às discrepâncias entre os relatos. O calendário de Beda diz que ele foi martirizado na cidade persa de Diáspolis, outrora chamada Lida, e situada perto de Jope. Outras versões dizem que ele sofreu o martírio sob os imperadores Diocleciano e Maximiano. Outro autor afirma que foi na época do imperador persa Diocleciano e na presença de oitenta reis. Outros, ainda, pretendem que foi sob o governador Daciano, no tempo de Diocleciano e Maximiano.
Jorge, tribuno nascido na Capadócia¹, foi certa vez a Silena, cidade da província da Líbia. Ali perto havia um lago, grande como um mar, no qual se escondia um pestífero e enorme dragão que muitas vezes afungentou o povo armado que tentara atacá-lo. Para acalmá-lo e impedir que se aproximasse das muralhas da cidade, que não protegiam de seu hálito empestado que matava muita gente, os habitantes davam-lhe todos os dias duas ovelhas. Quando começou a não haver ovelhas em quantidade suficiente, o conselho municipal decidiu que se daria uma ovelha e um humano, sorteando-se para tanto rapazes e moças, sem excetuar ninguém. Depois de algum tempo também faltou gente, e o sorteio designou a filha única do rei para ser entregue ao dragão.
Contristado, o rei propôs: "Peguem todo meu ouro e prata, a metade de meu reino, mas não deixem minha filha morrer assim". Furioso, o povo respondeu: "Foi você, rei, que promulgou este edito, e agora que todos os nossos filhos estão mortos, quer salvar sua filha? Se não fizer com sua filhs o que ordenou para os outros, queimaremos sua casa e você". Ao ouvir essas palavras, o rei pôs-se a chorar sua filha, dizendo: "Ai, como sou infeliz! Ó meiga filha, o que posso fazer por você? O que posso dizer? Nunca poderei vê-la casada?". E, voltando-se para o povo: "Eu imploro a vocês, deem-me oito dias para chorar minha filha".
O povo aceitou, mas ao cabo de oito dias dirigiu-se, furioso, ao rei: "Prefere perder seu povo, que sua filha? Estamos todos morrendo por causa do sopro do dragão". Então o rei, vendo que não poderia livrar a filha, fez que ela vestisse trajes reais e beijou-a entre lágrimas, dizendo: "Ai, como sou infeliz! Minha doce filha, eu esperava convidar muitos príncipes para suas bodas, decorar seu palácio com pedras preciosas, ouvir músicas de vários instrumentos, e no entanto você vai ser devorada pelo dragão". Ele a beijou e a deixou partir, dizendo: "Ó minha filha, queria ter morrido antes para não perdê-la assim!". Ela então se jogou aos pés de seu pai para pedir a benção, e depois de abençoada em lágrimas dirigiu-se para o lago.
O bem-aventurado Jorge passava casualmente por lá, e vendo-a chorar perguntou a razão. Ela respondeu: "Bom rapaz, monte depressa em seu cavalo e fuja, se não quiser morrer como eu". Jorge: "Não tenha medo, minha filha, e diga-me o que toda aquela gente está esperando ver". Ela: "Vejo que você é bom rapaz, de coração generoso, mas quer morrer comigo? Fuja! Depressa!". Jorge replicou: "Não irei embora antes que me conte o que está acontecendo". Depois que a moça explicou tudo, Jorge disse: "Minha filha, nada tema, porque, em nome de Cristo, vou ajudá-la". Ela replicou: "Você é um bom cavaleiro, mas salve-se imediatamente, não pereça comigo! Basta que eu morra sozinha, porque você não poderia me livrar e pereceríamos juntos".
Enquanto conversavam, o dragão pôs a cabeça para fora do lago e foi se aproximando. Toda trêmula, a moça falou: "Fuja, meu bom senhor, fuja depressa". Jorge montou imediatamente em seu cavalo, protegeu-se com o sinal-da-cruz, e com audácia atacou o dragão que avançava em sua direção. Brandindo a lança com vigor, recomendou-se a Deus, atingiu o monstro com força, jogando-o ao chão, e disse à moça: "Coloque sem medo seu cinto no pescoço do dragão, minha filha". Ela assim o fez e o dragão seguiu-a como um cãozinho muito manso.
Quando ela chegou à cidade, vendo aquilo todo o povo pôs-se a fugir gritando: "Ai de nós, logo todos vamos morrer!". Mas o beato Jorge disse-lhes: "Nada temam, o Senhor me enviou para que eu os libertasse das desgraças causadas por esse dragão. Creiam em Cristo e recebam o batismo, que eu matarei o dragão". Então o rei e todo o povo foram batizados e o bem-aventurado Jorge desembainhou a espada e matou o dragão, ordenando depois que o levassem para fora da cidade. Quatro pares de boi arrastaram-no para campo aberto. Nesse dia 20 mil homens foram batizados, sem contar crianças e mulheres.
Em homenagem à bem-aventurada Maria e o beato Jorge, o rei mandou construir uma enorme igreja, sob cujo altar surgiu uma fonte de água curativa para todos os enfermos. O rei ofereceu ao bem-aventurado Jorge imensa quantidade de dinheiro, mas ele não aceitou e mandou doá-la aos pobres. Jorge deu então ao rei quatro breves conselhos: cuidar das igrejas de Deus, honrar os padres, ouvir com atenção o ofício divino e nunca esquecer os pobres. A seguir beijou o rei e foi embora.
Certos livros contam que quando o dragão ia devorar a moça Jorge protegeu-se com o sinal-da-cruz, atacou-o e matou-o. Eram imperadores na época Diocleciano e Maximiano, e sob o governador Daciano houve uma perseguição tão violenta aos cristãos que em um mês 17 mil deles receberam a coroa do martírio, enquanto muitos outros fraquejaram e sacrificaram aos ídolos.
Vendo isso, São Jorge ficou profundamente tocado, distribuiu tudo o que possuía, trocou as vestes militares pelas dos cristãos e passou a viver entre eles, exclamando: "Todos os deuses dos gentios são demônios, foi o Senhor quem fez os Céus!". Irado, o governador disse: "Que presunção é essa de chamar nossos deuses de demônios? Diga-me de onde você é e qual seu nome". Jorge respondeu: "Eu me chamo Jorge, sou de uma nobre estirpe da Capadócia. Com a ajuda de Cristo, submeti a Palestina, mas depois abandonei tudo para servir livremente ao Deus do Céu". Como o governador não conseguia demovê-lo, mandou suspendê-lo no potro² e dilacerar cada um de seus membros com garfos de ferro. Mandou queimá-lo com tochas e esfregar sal em suas feridas e em suas entranhas, que lhe saíam do corpo. Na noite seguinte, envoltou em imensa luz, o Senhor apareceu-lhe e reconfortou-o com doçura. A deliciosa visão e as confortantes palavras fortaleceram-no a tal ponto que seus tormentos pareciam não ter acontecido.
Percebendo que não podia dobrá-lo com torturas, Daciano convocou um mágico, a quem disse: "Graças às artes mágicas, os cristãos zombam dos tormentos e recusam-se a sacrificar a nossos deuses". O mágico respondeu: "Se não conseguir superar seus truques, que eu perca a cabeça!". Preparou então seus feitiços, invocou seus deuses, misturou veneno com vinho e deu-o para São Jorge beber. O homem de Deus fez sobre a bebida o sinal-da-cruz e tomou-a sem ser afetado. O mágico preparou uma dose mais forte, que o homem de Deus bebeu inteiramente, sem dano algum, após ter feito o sinal-da-cruz. Ao ver isso, o mágico lançou-se aos pés de Jorge, chorando, arrependido, e pediu para ser cristão. Logo depois o juiz mandou decapitá-lo.
No dia seguinte, ele mandou colocar Jorge numa roda que tinha em toda a sua volta espadas de dois gumes, mas no mesmo instante a roda quebrou e Jorge saiu dali ileso. Irritado, o juiz mandou então jogá-lo num caldeirão cheio de chumbo derretido, mas ele fez o sinal-da-cruz antes de entrar, e pela virtude de Deus revigorou-se ali como num banho. Vendo que não conseguia vencê-lo com torturas, Daciano pensou em fazê-lo com suavidade e disse-lhes: "Jorge, meu filho, veja a mansuetude de nossos deuses, eles suportam suas blasfêmias com tanta paciência e estão dispostos a ser indulgentes com você caso aceite se converter. Faça, portanto, querido filho, o que peço: abandone suas supertições para sacrificar a nossos deuses, a fim de receber deles e de nós grande honrarias". Jorge replicou, sorrindo: "Por que você não me falou desta forma branda antes de me torturar? Estou pronto a fazer aquilo a que me exorta".
Iludido por essa fala, Daciano, muito feliz, mandou o pregoeiro público convocar a todos para ver Jorge, por tanto tempo rebelde, enfim ceder e sacrificar aos deuses. A cidade inteira foi engalanada e com alegria esperou o momento, mas ao entrar no templo para sacrificar aos ídolos, Jorge ajoelhou-se e pediu ao Senhor que destruísse completamente o templo com seus ídolos. No mesmo instante caiu o fogo do Céu sobre o templo, queimando-o com seus deuses e seus sacerdotes. A terra entreabriu-se e tragou tudo o que restara.
No prefácio³ que Ambrósio compôs a respeito, ele diz:
Jorge fidelíssimo guerreiro de Cristo, professou com intrepidez o cristianismo enquanto muitos renegavam o Filho de Deus. Recebeu da graça divina tão grande constância, que desprezou as ordens do poder tirânico e não temeu as dores de incontáveis suplícios. Ó feliz e ínclito paladino do Senhor, que não foi seduzido pelas promessas de um reino temporal, e enganando o perseguidor precipitou no abismo as falsas divindades!
Assim escreveu Ambrósio.
Ao saber daquele fato, Daciano mandou levar Jorge à sua presença e perguntou-lhe: "Qual foi a mágica, homem malvado, que você usou para cometer semelhante crime?". Jorge respondeu: "Não acredite nisso, rei, venha comigo e me verá imolar aos deuses". Daciano: "Entendo seu plano, você quer que a terra me trague como fez com o templo e com meus deuses". Jorge retrucou: "Diga-me, miserável, como os seus deuses irão ajudá-lo se não foram capazes de se defender?". Cheio de raiva, o rei disse a sua esposa Alexandrina: "Percebo que este homem me superou e que vou morrer". Ela retrucou: "Tirano cruel e carniceiro, quantas vezes disse a você para não molestar os cristãos porque o Deus deles os defenderia? Pois bem, fique sabendo que quero me tornar cristã". Estupefato, o rei exclamou: "Ah! Que dor! Até você foi seduzida?". E mandou pendurá-la pelos cabelos e surrá-la duramente.
Durante esse suplício ela disse: "Jorge, luz da verdade, para onde vou, já que ainda não fui regenerada pela água do batismo?" Jorge: "Não tema, filha, o sangue que você vai derramar servirá de batismo e será sua coroa". Orando, ela rendeu a alma ao Senhor. É o que atesta Ambrósio, ao dizer no prefácio que "a rainha dos persas foi condenada por seu cruel marido, e embora não tenha recebido a graça do batismo, mereceu a palma de um martírio glorioso. Por isso não podemos duvidar que o rocio do seu sangue tenha merecidamente aberto para ela as portas do reino do Céu". Foi o que escreveu Ambrósio.
No dia seguinte Jorge foi condenado a ser arrastado por toda a cidade e a ter a cabeça cortada. Ele orou ao Senhor pedindo que atendesse a todos os que implorassem seu socorro, e ouviu-se a voz divina concedendo-lhe o pedido. Terminada a oração, seu martírio foi consumado e sua cabeça cortada. Isso aconteceu sob Diocleciano e Maximiano, que reinaram por volta do ano 287 do Senhor. Quando Daciano voltava do lugar do suplício para seu palácio, o fogo do Céu caiu sobre ele e seus guardas, consumindo-os.
Gregório de Tours conta que algumas pessoas com relíquias de São Jorge hospedaram-se certa noite em um oratório, e de manhã não conseguiram de nenhum jeito mover o relicário enquanto não deixaram ali uma parte das relíquias. Na História de Antioquia lê-se que quando os cristãos rumavam para conquistar Jerusalém, um belíssimo rapaz apareceu a um sacerdote dizendo-lhe que São Jorge seria o comandante dos cristãos caso levassem consigo suas relíquias a Jerusalém, onde ele próprio estaria ao lado deles. E quando sitiavam a cidade e a resistência dos sarracenos não permitia o assalto final, o bem-aventurado Jorge apareceu em trajes brancos e armado de uma cruz vermelha, fazendo sinal aos sitiantes para irem atrás dele e atacarem sem medo, que conquistariam a cidade. Animados por essa visão, venceram e massacraram os sarracenos.
São Jorge, rogai a Deus por nós!
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1. Região da Ásia menor, a oeste da Armênia.
2. Confome nota 1 do capítulo 25.
3. Conforme nota 4 do capítulo 55.
Fonte: Legenda Áurea, vidas dos santos. Jacopo de Varazze, ed. Companhia das Letras. p 365-70.
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