quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Dos enganos que o inimigo sugere ao pecador

 



(Apesar de que muitos pensaamentos incluídos nesta meditação já tenham sido considerados nas precedentes, é útil, todavia, compendiá-los e reuni-los aqui a fim de combater os enganos usuais de que se serve o demônio para iludir os pecadores à reincidência em suas culpas.)

PONTO I

Imaginemos que um jovem, réu de graves pecados, se confessou e recobrou a graça divina. O demônio tenta-o novamente, a fim de que recaia em seus pecados. O jovem resiste no princípio, mas começa a vacilar em vista das ilusões que o inimigo lhe sugere. "Meu irmão - lhe direi - que queres fazer? Desejas, porventura, sacrificar a uma vil satisfação essa excelsa graças de Deus, que reconquistaste, e cujo valor excede ao do mundo inteiro? Queres firmar por tuas próprias mãos a tua sentença de morte eterna e condenar-te a sofrer para sempre no inferno?" - "Não - responder-me- ás - não quero condenar-me, mas salvar a minha alma. Mesmo que cometa esse pecado, confessá-lo-ei logo..." Tal é a primeira sugestão do tentador. Confessar-se depois! Entretanto, perder-se a alma! Dize-me: se tivesses na mão uma formosa jóia de altíssimo valor, lançá-la-ias ao rio, dizendo: procurá-la-ei com cuidado, pois espero encontrá-la? Tens entretanto, em tua mão, essa jóia riquíssima de tua alma, que Jesus Cristo resgatou com seu sangue.

Voluntariamente a lanças no inferno, pois no ato de pecar cais condenado e dizes que a recobrarás pela confissão. E se não a recobras? Para recuperá-la é mister verdadeiro arrependimento, que é um dom de Deus. E Deus pode não te conceder. E se a morte vier e te arrebatar o tempo para a confissão? Asseguras que não deixas passar uma semana sem confessar tuas culpas. E quem te prometeu essa semana? Dizes que te confessarás amanhã. E quem te promete esse dia? O dia de amanhã - diz Santo Agostinho - Deus não te prometeu; talvez te concederá, talvez não, como aconteceu a muitos, que se recolheram sadios à noite para dormir em suas camas e amanheceram mortos. A quantos o Senhor feriu de morte no próprio ato de pecado e os precipitou no inferno! E se fizesse o mesmo contigo? Como conseguirias remediar tua eterna perdição? Persuade-te, pois, de que com o dizer "depois me confessarei" o demônio tem arrastado ao inferno milhares e milhares de almas. Porque raras vezes se encontrarão pecadores tão desesperados que queiram condenar-se a si mesmos. Todos, ao pecar, o fazem com esperança de reconciliar-se depois com Deus. É esta causa por que tantos infelizes têm sido condenados, tornando-se irremediavelmente perdidos. 

Talvez digas que não poderás resistir à tentação que se apresenta.

Este é o segundo que sugere o inimigo, fazendo-te crer que não tens forças para combater e vencer tuas paixões. Em primeiro lugar, é mister que saibas - como diz o Apóstolo - que Deus é fiel e não permite que sejamos tentados com violência superior às nossas forças (2Cor 10,13).

Além disso, se agora não és capaz de resistir, como podes ter esperança de consegui-lo depois, quando o inimigo não cessar de induzir-te a novos pecados e tiver sobre ti muito mais força que antes, enquanto tu serás mais fraco? Se pensas que agora não podes extinguir essa chama, como crês que a apagarás mais tarde, quando ela lavrar com mais violência?... Afirmas que Deus te ajudará. Mas esse seu auxílio poderoso ele te dá agora. Por que não queres valer-te dele para resistir? Esperas, acaso, que Deus multiplique seu auxílio e sua graça a teu favor, quando tiveres avolumado as tuas culpas? E se desejas maior socorro e mais forças, por que é que não os pedes a Deus? Duvidas, talvez, da fidelidade do Senhor, que prometeu conceder tudo o que se lhe pedir? (Mt 7,7). Deus não se esquece de suas promessas. Recorre a ele e dar-te-á força de que necessitas para resistir à tentação. Deus - segundo a palavra do Concílio de Trento - não ordena coisas impossíveis.

Ao dar o preceito, quer que façamos o que estiver ao nosso alcance com o auxílio atual que nos proporciona; e se este auxílio atual não for suficiente para resistir, nos exorta a que o impetremos mais, pois, pedindo-lhe com os devidos requisistos, o concederá certamente. 


AFETOS E SÚPLICAS

Ó meu Deus, por terdes sido vós tão bondoso para comigo é que eu tenho sido tão ingrato para convosco? Como à porfia, Senhor, afastei-me de vós e vós a procurar-me. Vós a cumular-me de bens e eu a ofender-vos! Ó meu Senhor! mesmo que fosse somente pela vossa bondade para comigo, devia inflamar-me no amor que vos devo, porque, à medida em que eu avolumava as culpas, vós me aumentáveis a graça para emendar-me. Como é que mereci a luz com que iluminais a minha alma? Agradeço-vos, meu Deus, de todo o coração e espero ir agradecer-vos eternamente no céu, pois os merecimentos de vosso sangue preciosíssimo me infundem consoladora esperança de salvação, fundada na imensa misericórdia que me tendes prodigalizado. Espero, entretanto, que me dareis força para nunca mais vos trair, e proponho, com o auxílio de vossa graça, preferir mil vezes a morte a tornar ofender-vos. Basta de ofensas que vos fiz! Quero passar o resto da vida, entregando-me a vosso amor. E como não hei de amar um Deus que morreu por mim e que me tem aturado com tanta paciência, apesar das ofensas que pratiquei?... Arrependo-me de todo o coração, Deus de minha alma, e quisera morrer de dor!... Se na vida passada me apartei de vós, agora amo-vos sobre todas as coisas, mais que a mim mesmo...

Eterno Pai, pelos merecimentos de Jesus Cristo, socorrei um miserável pecador que vos deseja amar... 

Maria, minha esperança, ajudai-me! Alcançai-me a graça de recorrer sempre a vosso divino Filho e a vós, todas as vezes que o inimigo me excitar a cometer novos pecados.


PONTO II

Dizes que o Senhor é Deus de misericórdia. Aqui se oculta o terceiro engano, muito comum entre os pecadores, e pelo qual não poucos se condenam. Escreve um sábio autor que mais almas envia ao inferno a misericórdia do que a justiça de Deus, porque os pecadores, confiando temerariamente naquela, não deixam de pecar, e se perdem. 

O Senhor é Deus de misericórdia: quem o nega? Contudo, quantas almas manda Deus todos os dias às penas eternas! É, na verdade, misericordioso, mas é também justiceiro; e este predicado o obriga a castigar a quem o ofende. Usa de misericórdia com aqueles que o temem (Sl 102, 11-13). Naqueles, entretanto, que o desprezam e abusam da clemência divina para continuar a ofendê-lo, tem que resplandecer somente a justiça de Deus. E com toda a razão, porque o Senhor perdoa o pecado, mas não pode perdoar a vontade de pecar. Aquele que peca - diz Santo Agostinho - pensando que se arrependerá depois de ter pecado, não é penitente, mas zomba de Deus e o menospreza.

Ora, o Apóstolo nos adverte de que Deus não consente que zombem dele (Gl 6,7). E que irrisão maior haveria do que ofendê-lo como e quando quiséramos, e ainda aspirar à glória? "Assim como Deus foi tão misericordioso para comigo em minha vida passada, espero que o será também no futuro". "Este é o quarto engano. Porque o Senhor se compadeceu de ti até agora, porventura, usará sempre de clemência e não castigará jamais?... Muito pelo contrário. 

Quanto maior tenha sido sua clemência, tanto mais deves temer que deixe de perdoar-te, e que te castigue com rigor se voltares a ofendê-lo. 

"Não digas - exclama o Eclesiástico - pequei e não recebi castigo, porque o Altíssimo, ainda que paciente, é justiceiro" (Ecl 5,4). Quando sua misericórdia chega ao limite que determinou para cada pecador, passa a castigá-lo por todas as culpas que o ingrato cometeu. E a pena será tanto mais dura, quanto mais tempo Deus esperou o culpado, disse São Gregório.

Se vires, pois, meu irmão, que, apesar de tuas frequentes ofensas a Deus, ainda não foste castigado, deves dizer: "Senhor, grande é meu reconhecimento, porque ainda não me condenastes ao inferno, que ainda não me condenastes ao inferno, que tantas vezes mereci" (Lm 3,22). Considera que muitos pecadores, por culpas menos graves que as tuas, foram condenados irremediavelmente.

Trata, por isso, de satisfazer por teus pecados mediante o exercício da penitência e de outras boas obras. A benevolência com que Deus te travou deve ensinar-te não só a deixar de ofendê-lo, mas a servi-lo e amá-lo sempre, tendo em vista a imensa misericórdia que te fez de preferência a outros. 


AFETOS E SÚPLICAS

Meu Jesus crucificado, meu Redentor e meu Deus, a vossos pés se prosta este traidor infame, envergonhando-se de comparecer ante vossa presença. Quantas vezes vos tenho desprezado! Quantas vezes prometi não tornar a vos ofender! Entretanto, minhas promessas foram outras tantas traições, pois assim que se me ofereceu ocasião de pecar, esqueci-vos e vos abandonei novamente. Dou-vos mil graças, porque ainda não me condenastes ao inferno e me permitis estar a vossos pés, iluminando minha alma e me atraindo a vosso amor. Quero amar-vos, Salvador, e jamais desprezar-vos, pois bastante me tendes esperado. 

Infeliz de mim se, apesar de tantas graças recebidas, tornasse a ofender-vos! Senhor, estou resolvido a mudar de vida e quero amar-vos na proporção em que vos ofendi. O que me consola é o considerar que sois a bondade infinita. Arrependo-me de todo o coração de vos ter desprezado e vos ofereço, para o futuro, todo o meu amor. Perdoai-me pelos merecimentos de vossa sagrada Paixão. Esqueci os pecados com que vos injuriei e dai-ne forças para vos ser sempre fiel. Amo-vos, meu Sumo Bem; espero amar-vos eternamente, e não quero tornar a abandonar-vos...

Ó Maria, Mãe de Deus, uni-me a meu Salvador Jesus Cristo e alcançai-me a graça de jamais apartar-me de seus benditos pés!... Em vós confio. 


PONTO III

"Ainda sou moço... Deus tem compaixão da mocidade; mais tarde entregar-me-ei a ele". Consideremos este quinto engano. És moço: mas não sabes que Deus conta os pecados de cada homem e não os anos?...

Quantos tens cometido?... Muitos velhos haverá que não tenham feito nem a décima parte dos que cometeste. Ignoras que o Senhor fixou o número e a medida das culpas que a cada pecador há de perdoar? "O Senhor - diz a Escritura - espera com paciência para castigar as nações da plenitude de seus pecados, quando chegar o dia do juízo" (2Mc 6,14). Quer dizer que o Senhor é paciente e espera até certo limite; logo, porém, que se encha a medida dos pecados que a cada homem quer perdoar, cessa o perdão e ele executa o castigo, ferindo-o de morte súbita no estado de condenação em que se acha, ou abanhonando-o a seu pecado, que é pior castigo que a morte (Is 5).

Se possuis um terreno, que cercaste e, apesar de cultivado durante longos anos com gastos consideráveis, vês que não te dá fruto algum: que farás?... Arrancas-lhe o cercado e o deixas abandonado. Pois bem, teme que Deus não proceda do mesmo modo contigo. Se continuas pecando, irás perdendo o remorso da consciência; não pensarás na eternidade nem em tua alma; perderás quase de todo a luz que nos guia; acabarás por perder todo o temor... Com isto podes considerar abatida a cerca que te defendia, para dar lugar ao abandono de Deus. 

Examinemos, enfim, o derradeiro engano. Dizes: "É verdade que com este pecado perderei a graça de Deus e ficarei condenado ao inferno.

Pode assim suceder que me condene; mas também pode acontecer que me confesse logo e me salve..." Concedo que assim possa ser. 

Desejo que te salves. Não sou profeta e, portanto, não me é dado asseverar com certeza que, depois de cometido esse novo pecado, já não haverá para ti perdão de Deus. Contudo, não podes negar que se, depois de tantas graças que o Senhor te concedeu, voltas a ofendê-lo, é muito fácil que para sempre te percas. Assim o patenteia a Sagrada Escritura: "O coração rebelde será oprimido em seus males" (Ecl 3,27). 

Os que cometem maldades serão exterminados (Sl 36,9). Aquele que semeia pecados, colherá por fim castigos e tormentos (Gl 6,8). "Chamei-vos - disse Deus - e vós não quisestes ouvir-me... Também eu me rirei da vossa ruína" (Pr 1,24-26). "A mim pertence a vingança, e eu lhes darei o pagamento a seu tempo". Deste modo fala a Sagrada Escritura dos pecadores obstinados, e assim o exigem a razão e a justiça.

E, não obstante, dizes que, apesar de tudo, talvez te salvarás. Repetirei que isso não é impossível. Entretanto, não constitui tremenda loucura arriscar a eterna salvação por um talvez e por um talvez tão pouco provável? É este negócio de tão pouco valor, que podemos pô-lo em tão grave risco?


AFETOS E SÚPLICAS

Meu amantíssimo Redentor, prostrado a vossos pés, agradeço-vos de toda a minha alma que, apesar de minhas ofensas, não me abandonastes. Quantos há que menos vos ofenderam do que eu e não receberam as inspirações que agora me dais! Vejo que quereis realmente salvar-me e eu uno aos vossos os meus desejos. Quero exaltar eternamente no céu a vossa misericórdia. Espero, Senhor, que já me haveis perdoado; se, entretanto, ainda não recuperei vossa graça porque não soube arrepender-me de minhas culpas, como devia, agora me arrependo de todo o coração, e as detesto mais que todos os males.

Perdoai-me, por piedade, e aumentai em mim a dor de vos ter ofendido, meu Deus, suma e inefável bondade. Enchei-me de dor e amor; mesmo que vos ame sobre todas as coisas, ainda é pouco. Quero amar-vos mais e vos peço e de vós espero alcançar esse grande amor. Ouvi-me, meu Jesus, já que prometestes ouvir a quem vos suplica...

Ó Virgem Maria, Mãe de Deus, o mundo inteiro afirma que nunca deixais de desconsolado a quem a vós se recomenda. Depois de Jesus Cristo, sois minha única esperança. A vós, Senhora, eu recorro e em vós confio. Recomendai-me a vosso divino Filho e salvai-me. 

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Santo Afonso Mª de Ligório - Preparação para a morte

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quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Dos maus hábitos

 



Impius, cum in profundum venerit peccatorum, contemnit.

O ímpio, depois de ter caído no abismo dos pecados, tudo despreza (Pr 18,3).


PONTO I 

Uma das maiores desventuras que nos legou a culpa de Adão é a nossa propensão ao pecado. Dela se lamenta o Apóstolo, sentindo-se levado pela concupiscência ao próprio mal que aborrecia: "Veio outra lei a meus membros que... me leva preso à lei do pecado" (Rm 8,25). Resulta daí que nós, infeccionados de tal concupiscência e cercados de tantos inimigos que nos incitam ao mal, dificilmente chegaremos sem culpa à glória. Reconhecida, pois, esta fragilidade a que estamos sujeitos, pergunto eu: "Que dirias de um viajante que, devendo atravessar o mar durante forte tempestade e num barco meio avariado, quisesse carregá-lo com tal peso que, mesmo que não houvesse tempestade e ainda que o navio fosse de construção resistente, bastaria para fazê-lo soçobrar?... Que prognóstico formarias sobre a vida deste viajante? Pois pensa o mesmo do indivíduo de maus hábitos e costumes, que deve cruzar o mar tempestuoso da vida, em que tantos naufragam, num barco frágil e avariado, como é nosso corpo no qual viaja a alma. Que sucederá se o carregarmos ainda com o peso irresistível dos pecados habituais?  É difícil que tais pecadores se salvem, porque os maus hábitos cegam o espírito, endurecem o coração e ocasionam provavelmente a obstinação completa na hora da morte. 

Primeiramente, o mau hábito nos cega. Qual o motivo que fazia os Santos implorar incessantemente a luz divina, temendo converter-se nos pecadores mais abomináveis do mundo? É porque sabiam que, se chegassem a perder a luz divina, poderiam cometer culpas horrendas. 

E como se explica que tantos cristãos vivem obstinadamente em pecados, até que irremediavelmente se condenam? Porque o pecado os cega, e por isso se perdem (Sb 2,21). Toda culpa traz consigo cegueira e, acumulando-se os pecados, agrava-se a cegueira do pecador. 

Deus é nossa luz; quanto mais se afasta a alma de Deus, tanto mais se mergulha nas trevas. "Seus ossos se encherão de vícios" (Jo 20,11). 

Assim como o sol não pode penetrar através de um vaso cheio de terra, assim não pode entrar a luz divina num coração cheio de vícios. Vemos, por isso, com frequência, muitos pecadores, sem luz que os guie, a cair de pecado em pecado e sem que procurem emendar-se (Sl 11,9). Caídos esses infelizes no abismo de trevas, só sabem pecar e falar em pecados; não pensam mais que em pecar e já não consideram sequer o grave mal que é o pecado. "O costume de pecar - diz Santo Agostinho - não deixa o pecador reconhecer o mal que pratica". Vivem desta maneira como se não acreditassem na existência de Deus, do céu, o inferno e da eternidade. 

Acontece que o pecado, que ao princípio causava horror, por efeito do mau hábito, já não repugna. "Agita-os como uma roda, e como uma palhinha diante do soprar do vento" (Sl 82,14). Vede - diz São Gregório - a facilidade com que é levantada uma palha pela brisa mais suave; assim também veremos muitos que antes da queda resistiam, ao menos por algum tempo, e combatiam até contra as tentações, mas agora, contraído o mau hábito, sucumbem a qualquer tentação, em toda ocasião de pecar que se apresente. E por quê? Porque o mau hábito os privou da luz. Diz Santo Anselmo que o demônio procede com certos pecadores como aquele que tem um passarinho preso por um cordel. 

Ele o deixa voar, mas, quando quer, o faz cair por terra. Tal semelhança - afirma o Santo - é aplicável àqueles que são dominados pelo mau hábito. Alguns há, acrescenta São Bernardino de Sena, que pecam sem que a ocasião se apresente. Compara-os este grande Santo aos moinhos de vento que qualquer aragem faz girar e que continuam em movimento mesmo que não haja grão para moer, e, às vezes, até rodam contra a vontade do dono. Estes pecadores, observa São João Crisóstomo, vão forjando maus pensamento, sem ocasião, sem prazer, quase contra sua vontade, tiranizados pela força do mau hábito. 

Porque, segundo disse Santo Agostinho, o mau hábito se converte logo em necessidade. O costume, segundo nota São Bernardo, se muda em natureza. Daqui se segue que, assim como ao homem é necessário respirar, assim parece que o pecado se torna necessário para aqueles que habitualmente  pecam e se fazem escravos do demônio. 

Disse escravos, porque os criados trabalham por seu salário; mas os escravos servem à força, sem paga de espécie alguma. Nisto caem alguns desgraçados: chegam a pecar sem prazer nem desejo.

"O ímpio, depois de ter caído no abismo dos pecados, tudo despreza" (Pr 18,3). São João Crisóstomo aplica estas palavras ao pecador obstinado nos maus hábitos, que, mergulhado naquele abismo tenebroso, despreza a correção, os sermões, as censuras, o inferno e até Deus. Menospreza tudo e se torna semelhante ao abutre voraz que, longe de fugir do cadáver em que se repasta, prefere que os caçadores o matem. Refere o padre Recúpito, que um condenado à morte,  indo para o cadafalso, levantou os olhos e, vendo uma donzela formosa, consentiu logo num mau pensamento. O padre Gisolfo conta que um blasfêmio, também condenado à morte, proferiu uma blasfêmia no mesmo momento em que o verdugo o lançava na escada para enforcá-lo. 

Com razão, pois, nos diz São Bernardo que é inútil, em geral, rezar pelos pecadores por hábito e que é melhor pranteá-los como condenados.

Como é que eles houveram de sair do precipício em que se lançaram, se perderam a vista? Seria necessário um milagre da graça. Abrirão os olhos no inferno, quando o reconhecimento de sua desgraça só lhes dá de servir para chorar mais amargamente a sua loucura.


AFETOS E SÚPLICAS

Haveis prodigalizado, meu Senhor e Deus, os vossos benefícios, favorecendo-me mais que a outros, e eu, em compensação, vos cumulei de ofensas, injuriando-vos mais que todos... Ó querido Coração do meu Redentor, que tão afligido e atormentado fostes na cruz pela perversidade de minhas culpas: concedei-me, por vossos merecimentos, profundos conhecimento e viva dor dos meus pecados... Ah, meu Jesus! estou cheio de vícios, mas vós sois onipotente e podeis encher minha alma do vosso santo amor. Em vós, portanto, confio, porque sois a bondade e misericórdia infinitas. Arrependo-me, soberano Bem, de vos ter ofendido e quisera ter morrido antes de pecar. Esqueci-me de vós, mas vós não me esquecestes; reconheço-o pela luz com que agora iluminais minha alma. Já que me dais essa luz divina, concedei-me também força para servir-vos fielmente. Prefiro a morte a separar-me de vós, e ponho em vosso auxílio todas as minhas esperanças. In te, Domine, speravi, non confundar in aeternum. Em vós espero, Jesus meu, que não hei de ver-me outra vez na confusão da culpa e privado da vossa graça. A vós também me recomendo, ó Maria, nossa Mãe. In te, Domina, speravi, non confundar in aeternum. Por vossa intercessão confio, ó esperança nossa, nunca mais me ver na inimizade do vosso divino Filho. Rogai-lhe que antes me envie a morte que permitir tamanha desgraça. 


PONTO II

Os maus hábitos, além disso, endurecem o coração, permitindo-o Deus justamente em castigo da resistência que se opõe a seus convites. 

Diz o Apóstolo que o Senhor "tem misericórdia de quem quer, e endurece a quem quer" (Rm 9,18). Santo Agostinho explica este texto, dizendo que Deus não endurece de um modo imediato o coração daquele que peca habitualmente, mas que o priva da graça em castigo da ingratidão e obstinação com que repeliu a que antes lhe havia concedido; e em tal estado o coração do pecador se endurece como se fosse de pedra.

Seu coração se endurecerá como pedra, e se apertará como a bigorna do ferreiro (Jo 41,15). Sucede assim que, enquanto alguns se enternecem e choram ao ouvir falar do rigor do juízo divino, das penas dos condenados e da Paixão de Cristo, os pecadores por hábitos por hábito nem sequer se comovem. Falam e ouvem falar destas coisas com indiferença, como se disso não se importassem: e por causa destes golpes do mau costumes, a consciência se endurece cada vez mais (Jo 41,15). 

Por conseguinte, nem as mortes repentinas, nem os tormentos, trovões e raios, são capazes de atemorizá-los cada vez mais profundamente no sono da morte em que, perdidos, repousam (Sl 85,7). O mau hábito sufoca, pouco a pouco, o remorso da consciência de tal modo, que ao pecador habitual os pecados mais enormes não passem de coisas sem importância (Santo Agostinho). Perdem pecando, diz São Jerônimo, até essa vergonha que a ação culposa traz consigo naturalmente. São Pedro compara-os os suíno que se revolve no lamaçal (2Pd 2,22), pois assim como este animal imundo não percebe o fétido da estrumeira em que se revolve, assim aqueles pecadores são os únicos insensíveis à hediondez de suas culpas, que todas as outras pessoas percebem e detestam. E se este lodaçal lhes tira até a faculdade da visão, é, porventura, para admirar - diz São Bernardino - que não voltem a si, nem quando os açoita a mão de Deus. Daí resulta que, em vez de se afligir com os seus pecados, ainda se regozijam, se riem e se vangloriam deles (Pr 2,14).

Que indicam estes sinais de diabólica dureza? - pergunta São Tomás de Vila Nova. São todos sinais de eterna condenação. Teme, pois, meu irmão, que não te suceda esta desgraça. Se tens algum mau hábito, procura libertar-te agora que Deus te chama. Enquanto sentes mossa na consciência, regozija-te, porque é indício de que Deus ainda não te abandonou. Urge, porém, corrigir-te e sair o mais breve possível desse estado, doutra maneira gangrenar-se- á a ferida e te verás perdido.


AFETOS E SÚPLICAS

Como poderei, Senhor, agradecer-vos devidamente todas as graças que me haveis concedido? Quantas vezes me tendes chamado, e eu resistido! Em lugar de servir-vos e amar-vos, por me terdes livrado do inferno e chamado com tanto amor, continuei a provocar vossa indignação e corresponder com ofensas. Não, meu Deus, não; muitas vezes vos tendo ofendido, não quero ultrajar mais a vossa paciência. Só vós, que sois a Bondade infinita, pudestes suportar-me até agora. Mas reconheço que, com justa razão, não podereis continuar a suportar-me.

Perdoai-me, pois, meu Senhor e Sumo Bem, todas as ofensas que vos fiz. De todo o coração me arrependo e proponho não tornar a injuriar-vos...

Porventura, hei de continuar a ofender-vos?... Aplacai-vos, portanto, Deus de minha alma, não pelos meus merecimentos, que somente valem para o castigo eterno, mas pelos merecimentos do vosso Filho, meu Redentor, nos quais deposito minha esperança. Por amor de Jesus Cristo, recebei-me na vossa graça e dai-me a perseverança no vosso amor. Desprendei-me dos afetos impuros e atraí-me inteiramente a vós. Amo-vos, soberano Senhor, excelso, amante das almas, digno de infinito amor... Oh, se vos tivesse amado sempre!...

Maria, nossa Mãe, fazei que não empregue o restante da minha vida em ofender vosso divino Filho, mas somente em amá-lo e chorar os pecados que hei cometido.


PONTO III

Privado da luz que nos guia e endurecido o coração, que admira que o pecador tenha mau fim e morra obstinado em suas culpas? (Ecl 3,27). Os justos andam sempre pelo caminho reto (Is 26,7). Ao contrário, aqueles que pecam habitualmente caminham sempre em linhas tortuosas (Sl 11,9). Se deixam o pecado por algum tempo, voltam de novo a ele; pelo que São Bernardo os ameaça com a condenação. Talvez algum deles queira emendar-se antes que lhe chegue a morte. Mas é precisamente nisto que está a dificuldade: o pecador por hábito, ainda que chegue à velhice, não se emenda. "O homem, segundo o caminho que tomou sendo jovem, - diz o Espírito Santo - não se afastará dele, mesmo quando for velho (Pr 22,6). A razão é que - diz São Tomás de Vilanova - nossas forças são muito débeis, e, portanto, a alma privada da graça não pode abster-se de novos pecados. Além disso, não seria grande loucura se nos propuséssemos jogar e perder voluntariamente todos os nossos haveres, esperando reavê-los na última partida? Não é menor a necessidade de quem vive em pecado e espera reparar tudo no derradeiro instante da vida. Pode, porventura, o etíope mudar a cor de sua pele, ou o leopardo as suas malhas? Tampouco poderá levar vida religiosa aquele que tem costumes pervesos e inveterados (Jr 13,23), senão que, por fim, se entregará ao desespero e acabará desastrosamente os seus dias (Pr 28,14). 

Comentando São Gregório o seguinte texto do livro de Jó: "Abriu-me chaga sobre chaga; caiu sobre mim como um gigante" (Jo 16,15), disse: Se alguém se vê assaltado por inimigos, mesmo que receba  uma ferida, ainda poderá continuar a defender-se; mas se outra e mais vezes o ferirem, irá perdendo as forças, até que, afinal, cai desfalecido. 

Assim acontece com o pecado. Depois da primeira ou de segunda queda, resta ainda alguma força ao pecador (assistido sempre por meio da graça); mas, se continuar pecando, o pecado se converte em gigante; enquanto o pecador, ao contrário, cada vez mais fraco e coberto de feridas, não pode evitar a morte. Jeremias compara o pecado a uma grande pedra que oprime a alma (Lm 3,53); e tão difícil é - acrescenta São Bernardo - converte-se quem habitualmente peca, como ao homem sepultado debaixo de enormes pedras e destituído de forças para movê-las, é o livrar-se do peso que o esmaga. 

Estou, portanto, condenado e sem esperança? - perguntará, talvez, algum destes infelizes pecadores... Não, se deveras quiseres emendar-te. Mas os males gravíssimos requerem remédios heróicos. Fala-se a um doente em perigo de vida, e se não quer tomar medicamentos, porque ignora a gravidade da moléstia, o médico lhe diz que, se não usar o remédio receitado, morrerá lhe diz que, se não usar o remédio receitado, morrerá indubitavelmente. Que responderá o enfermo? "Estou pronto a obedecer em tudo... Disso depende a minha vida". Meu irmão, a mesma coisa hás de fazer. Se incorres habitualmente em qualquer pecado, estás enfermo e atacado daquele mal que, segundo diz São Tomás de Vilanova, raras vezes se cura. Achas-te em grande risco de condenação. Se quiseres, entretanto, curar-te, eis aqui o remédio. Não deves esperar um milagre da graça. Impede evitar resolutamente as ocasiões perigosas, fugir das más companhias e resistir às tentações, recomendando-te a Deus. É preciso que te confesses a miúdo, que faças cada dia leitura espiritual e te entregues à devoção da Virgem Santíssima, pedindo-lhe continuamente que te alcance forças para não recair. É necessário que te domines e empregues violência.

Do contrário incorrerás na ameaça do Senhor: Morrereis em vosso pecado (Jo 8,21). Se não aplicares agora o remédio, quando Deus te ilumina, mais tarde dificilmente poderás remediá-lo. Ouve a voz do Senhor que te diz como a Lázaro: "Vem para fora". Pobre pecador já morto! Sai do sepulcro de tua má vida. Responde depressa e entrega-te a Deus. Teme que não seja este o último apelo que te faz.


AFETOS E SÚPLICAS

Hei de esperar, ó meu Deus, que me abandoneis e condeneis ao inferno? Ó Senhor, esperai por mim; quero mudar de vida e entregar-me a vós. Dizei-me o que devo fazer, pois quero pô-lo em prática... Sangue de Jesus Cristo, ajudai-me! Virgem Maria, advogada dos pecadores, socorrei-me! E vós, Pai Eterno, pelos merecimentos de Jesus e Maria, tende misericórdia de mim! Arrependo-me, ó Deus de infinita bondade, de vos ter ofendido e amo-vos sobre todas as coisas. Perdoai-me, por amor de Cristo, e concedei-me o dom de vosso amor de Cristo, e concedei-me o dom do vosso amor. Inspirai-me também grande temor de minha condenação eterna, se viesse a ofender-vos de novo. Dai-me, meu Deus, luz e força, que tudo espero da vossa misericórdia. Já que tantas graças me outorgastes quando vivia afastado de vós, muitas mais espero agora, quando volto ao vosso seio, resolvido a que sejais meu único amor. Amo-vos, meu Deus, minha vida e meu tudo! Amo-vos também, Maria, nossa Mãe. Em vossas mãos encomendo minha alma para que, por vossa intercessão, a preserveis de cair na desgraça do desafeto de Deus. 

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Santo Afonso Mª de Ligório - Preparação para a morte

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domingo, 2 de novembro de 2025

Vida infeliz dos pecadores e vida ditosa do que ama a Deus




 Non est pax impiis, dicit Dominus. 

Não há paz para os ímpios, disse o Senhor (Is 58,24).

Pax multa diligentibus legem tuam. 

Muita paz para os que amam tua lei (Sl 118,65).


PONTO I

Nesta vida, todos os homens se esforçam para conseguir a paz. 

Trabalham o comerciante, o soldado, o advogado, porque pensam que, realizando tal negócio, obtendo tal promoção, ganhando tal demanda, alcançarão os favores da fortuna e poderão gozar da paz. Mas, ó pobres mundanos, que procurais a paz no mundo, que não a pode dar! Deus somente no-la pode dar. Dá a teus servos, - diz a Igreja em suas preces, - aquela paz que o mundo não pode dar. Não, não pode o mundo com todos os seus bens satisfazer o coração humano, porque o homem não foi criado para essa espécie de bens, mas unicamente para Deus; de modo que somente em Deus pode encontrar felicidade e repouso. 

O ser irracional, criado para gozos materiais, procura e encontra a paz nos bens terrestres. Dai a um jumento um feixe de capim, dai a um cão um pedaço de carne, e ficarão satisfeitos, sem desejar mais coisa alguma. Mas a alma, criada para amar a Deus e unir-se a ele, não encontra paz nos deleites sensuais; só Deus a pode fazer plenamente feliz. 

Aquele rico de que fala São Lucas tinha obtido de seus campos abundantíssima colheita, e dizia de si para consigo: "Minha alma, agora possuis bens abundantes, armazenados para muitos anos; descansa, come, bebe..." (Lc 12,19). Mas este rico infeliz foi chamado louco, e com toda a razão, diz São Basílio. "Desgraçado - exclama o Santo. Acaso, te equiparas a um animal e pretendes contentar tua alma com beber e comer e com os deleites sensuais?" O homem - escreve São Bernardo - poderá fartar-se, mas nunca satisfazer-se com os bens do mundo. O próprio Santo, comentando este texto do Evangelho: "Eis que abandonamos tudo" (Mt 19,27), diz que observou muitos loucos com diversas manias. Todos - acrescenta - sofriam de fome devoradora; mas uns se saciavam com terra, símbolo dos avarentos; outros, aspiravam o ar, figura dos vaidosos; outros, ao redor da boca de um fornalha, recebiam as fugazes centelhas, imagem dos iracundos; aqueles, enfim, símbolo dos desonestos, de um lago fétido bebiam suas águas corrompidas. E, dirigindo-se depois a todos, exclama o Santo: "Ó insensatos, não vedes que todas estas coisas, longe de extinguirem a fome, só a atiçam?" Os bens do mundo são bens aparentes, e, por isso, não podem satisfazer o coração humano (Ag 1,6); assim o avarento, quanto mais entesoura, mais quer entesourar, diz Santo Agostinho. O impudico, quanto mais se engolfa nos prazeres de seu vício, maior desgosto e cada vez mais terríveis desejos sente: e como é que poderia tranquilizar-se se coração com a imundície sensual? O mesmo sucede ao ambicioso, que aspira saciar-se com o fumo sutil de vaidades, poder e riquezas; porque o ambicioso atende mais ao que lhe falta do que ao que possui. 

Alexandre Magno, depois de ter conquistado tantos reinos, lamenta-se por não ter adquirido o domínio das demais nações. Se os bens da terra pudessem contentar o homem, os ricos e os monarcas seriam plenamente felizes; mas a experiência prova o contrário. É o que afirma Salomão, que assegura não ter negado nada a seus desejos (Ecl 2,10), e, contudo, exclama: "Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade" (Ecl 1,2), o que quer dizer; tudo quanto há no mundo é mera vaidade, mentira e loucura...


AFETOS E SÚPLICAS

Que me resta, meu Deus, das ofensas que vos fiz, senão amarguras e penas e méritos para o inferno? Não me acabrunha a dor que sinto, antes me consola e alivia, porque é um dom de vossa graça que se une à esperança de que me quereis perdoar. O que me aflige é o muito que vos hei injuriado, meu Redentor, que tanto me amastes. Merecia então, Senhor, que me abandonásseis; em vez disso, vejo que me ofereceis o perdão e que sois o primeiro a procurar a paz. Sim, meu Jesus, desejo a paz convosco, e mais que todas as coisas, desejo a vossa graça. Arrependo-me, Bondade infinita, de vos ter ofendido e quisera morrer de pura contrição. Pelo amor que tivestes comigo, morrendo por mim na cruz, perdoai-me e acolhei-me em vosso coração; mudai o meu de tal modo que, se muito vos ofendeu no passado, mais passe a vos agradar no futuro. Renuncio, por vosso amor, a todos os prazeres que o mundo possa oferecer-me e tomo a resolução de perder antes a vida do que vossa graça. Dizei-me o que quereis que eu faça para servir-vos, pois que desejo executá-lo. Nada de prazeres, nem de honras e riquezas; só amo a vós, meu Deus, meu gozo, minha glória, meu tesouro, minha vida, meu amor e meu tudo. Socorrei-me, Senhor, para que vos seja fiel; concedei-me o dom do vosso amor e fazei de mim o que vos aprouver. 

Maria, Mãe  e esperança nossa depois de Jesus Cristo, acolhei-me sob vossa proteção, e fazei que eu seja todo de Deus.


PONTO II 

Além disso, disse Salomão que os bens do mundo não apenas são vaidades que não satisfazem a alma, mas que são penas que afligem o espírito (Ecl 1,14). Os pobres pecadores pretendem ser felizes carregados de suas culpas, mas só encontram amarguras e remorsos (Sl 13,3). Nada de paz, nem de tranquilidade. Deus nos disse: "Não há paz para os ímpios" (Is 48,22). Primeiramente, o pecado traz em si o temor profundo da vingança divina; pois, assim como um homem, que tem um poderoso inimigo, não vive tranquilidade, como poderá o inimigo de Deus repousar em paz? "O caminho do Senhor causa espanto para os que praticam o mal" (Pr 10,29). Quando a terra treme ou o trovão ribomba, como estremece aquele que se acha em pecado! Até o suave movimento da folhagem, às vezes, lhe causa pavor: "O zunido do terror amedronta constantemente os seus ouvidos" (Jo 15,21). Foge sem ver quem o persegue (Pr 28,1, porque seu próprio pecado corre atrás dele. Caim matou seu irmão Abel e exclamou logo: "Todo aquele que me encontrar me matará" (Gn 4,14) E não obstante o Senhor lhe ter assegurado aque nada lhe aconteceria (Gn 4,15), diz a Escritura, - Caim andou sempre fugitivo e errante (Gn 4,16). Quem era o perseguidor de Caim, senão o seu pecado? Além disso, a culpa anda sempre acompanhada do remorso, esse verme roedor que jamais repousa. Dirija-se, embora, o pobre pecador a baquetes, saraus e teatros, a voz da consciência o acompanha e lhe diz: Estás no desafeto de Deus; se morreres, para onde é que irás? O remorso é pena tão angustiosa, mesmo nesta vida, que alguns desgraçados, para se livrar de seu peso, suicidam-se. Um desses foi Judas que, como é sabido, desesperado, se enforcou. Conta-se de outro criminoso que, tendo assassinado uma criança, sentiu remorsos tão horríveis, que para acalmá-los se fez religioso; mas nem no claustro encontrou a paz. Foi ter com o juiz e declarou-lhe o seu delito, pelo qual foi condenado à morte. 

Que é a alma privada de Deus?... Um mar tempestuoso, - diz o Espírito Santo (Is 57,20). Se alguém fosse convidado a uma festa, baile ou concerto, e ali lhe tivessem atado mãos e pés com ligaduras: poderia desfrutar daquela diversão? Tal é a situação do homem que vive na abundância dos bens do mundo sem possuir a Deus. Coma, beba, dance, ostente ricos vestidos, receba honras, ocupe altos cargos e adquira dignidades, mas jamais gozará paz. A paz vem unicamente de Deus e Deus a dá àqueles que o amam; não a seus inimigos.

 Os bens deste mundo - diz São Vicente Ferrer - são todos exteriores, não entram no coração. Aquele pecador ostenta, talvez, vestidos bordados e anéis de diamantes, tem mesa esplêndida; mas o seu pobre coração se conservará cheio de espinhos e de fel. Vê-lo-eis, por isso, sempre inquieto, mesmo no meio de tantas riquezas, prazeres e divertimentos. À menor contrariedade se impacienta e se enfurece como um cão hidrófobo. Aquele que ama a Deus, se resigna e se conforma à vontade divina na adversidade e encontrar paz e consolo. Isto, porém, não pode fazer aquele que é inimigo da vontade de Deus. E por isso não encontra meio de tranquilizar-se. 

Este desgraçado serve ao demônio, tirano cruel, que lhe paga com aflições e amarguras. Cumpre-se deste modo a palavra do Senhor, que diz: "Porquanto não serviste com gozo ao Senhor teu Deus, servirás a teu inimigo com fome, com sede, com nudez e com toda espécie de miséria" (Dt 28,47-48). Quanto não sofre o vingativo, depois de se ter vingado! quanto o impudico, apenas tenha conseguido seus intuitos! quanto os ambiciosos e avarentos!... Quantos seriam santos, se sofressem por causa de Deus o que padecem para se condenarem!


AFETOS E SÚPLICAS

Ó tempo que perdi!... Senhor, quantos merecimentos para a glória teria eu agora acumulado, se houvesse sofrido em servir-vos as aflições e trabalhos que padeci, ofendendo-vos. Ah! meu Deus, por que vos abandonei e perdi vossa graça?... Por prazeres envenenados e fugitivos que, apenas desfrutados, desapareceram e me deixaram o coração cheio de feridas e de angústias... Pecados meus! maldigo-vos e detesto-vos mil vezes; assim como bendigo vossa misericórdia, Senhor, que com tamanha paciência me tem sofrido. Amo-vos, meu Criador e Redentor, que por mim destes a vida. E, por isso, vos amo, arrependo-me de todo o coração de vos ter ofendido... Meu Deus, meu Deus, por que vos perdi? Por que vos substituí? Agora reconheço o mal que pratiquei, e estou resolvido a perder tudo, inclusive a própria vida, do que perder vosso amor. Pai Eterno, iluminai-me pelo amor de Jesus Cristo. 

Fazei-me conhecer o bem infinito, que sois vós, e a vileza dos bens que me oferece o demônio para me fazer perder a vossa graça. Amo-vos e desejo amar-vos cada vez mais. Fazei que vós sejais meu único pensamento, meu único desejo, meu único amor. Espero tudo da vossa bondade pelos merecimentos de vosso Filho...

Maria, nossa Mãe, pelo amor que tendes a Jesus Cristo, peço-vos que me alcanceis luz e força para servir-vos e amar-vos até a morte.


PONTO III

Se todos os bens e prazeres do mundo não podem satisfazer o coração humano, quem o poderá contentar?... Só Deus (Sl 36,4). O coração humano anda sempre à procura de bens que o possam saciar. 

Alcança riquezas, honras e prazeres, mas não se satisfaz, porque tais bens são finitos e ele foi criado para o bem infinito. Quando, porém, encontra Deus e se une a ele, se aquieta, acha consolo e não deseja nada mais. Santo Agostinho, enquanto se ateve à vida sensual, jamais gozou de paz; mas, quando passou a entregar-se a Deus, fez esta confissão ao Senhor: "Meu Deus, vejo agora que tudo é dor e vaidade, e que só vós sois a verdadeira paz da alma". Feito assim mestre por experiência própria, escrevia: Que procuras, homem? procuras bens?...

Procura o único Bem, no qual se encerram todos os demais" (Sl 41,3). 

Depois de ter pecado, o rei Davi entregava-se à caça, distraía-se nos seus jardins e em banquetes, gozava de todos os prazeres de um monarca.

Mas as festas, as florestas e as demais criaturas em que ele se comprazia, não faziam senão dizer-lhe a seu modo: "Davi, queres encontrar em nós paz e satisfação? Não te podemos contentar... Procura teu Deus, pois que unicamente ele te pode satisfazer". Por essa razão, Davi gemia no meio de seus prazeres, e exclamava: "Minhas lágrimas me têm servido de alimento dia e noite, e me dizem dia-a-dia: Onde está teu Deus? Como sabe Deus, ao contrário, contentar as almas fiéis que o amam! São Francisco de Assis, que abandonou tudo por causa de Deus, achava-se descalço, meio morto de frio e de fome, coberto de farrapos, mas, só ao proferir as palavras "Meu Deus e meu tudo", já sentia gozo inefável e celestial. São Francisco de Bórgia que, durante suas viagens de religioso, muitas vezes, teve de pernoitar sobre um monte de palha, experimentava tamanha consolação que o privava de dormir. Da mesmo maneira, São Filipe Néri, despojando e livre de todas as coisas, não conseguia repousar à vista dos consolos que Deus lhe dava, em tal escala, que dizia: "Deixai-me descansar, meu Jesus". O padre jesuíta Carlos de Lorena, da família dos príncipes de Lorena, punha-se, às vezes, a dançar de alegria, quando entrava em sua pobre cela. Nas Índias, São Francisco Xavier, no meio de seus trabalhos apostólicos, descobria o peito, exclamando: Basta, Senhor, de consolações, que meu coração já não as suporta. Santa Teresa dizia que dá mais contentamento uma gota de celestial consolação, que todos os prazeres do mundo. Efetivamente, não podem faltar as promessas do Senhor, que ofereceu dar, ainda nesta vida, aos que renunciam por seu amor aos bens de terra, o cêntuplo de paz e de alegria (Mt 19,29). 

Que andamos, pois, a procurar tanto? Procuremos a Jesus Cristo, que nos chama e diz: "Vinde a mim todos os que estais carregados e fatigados e eu vos aliviarei" (Mt 11,28). A alma que ama a Deus, encontra essa paz que excede todos os prazeres e todas as satisfações que podem vir do mundo e dos sentidos (Fp 4,7). É verdade que nesta vida até os santos têm que sofrer; porque a terra é lugar para merecimentos e não se pode merecer sem sofrer. Diz, contudo, São Boaventura, que o amor divino é semelhante ao mel que torna doces e agradáveis as coisas mais amargas. Quem ama a Deus, ama sua divina vontade, e é por isso que goza espiritualmente nas próprias tribulações, porque sabe que, resignando-se, agrada e compraz ao Senhor... Ó meu Deus! Os pecadores desprezam a vida espiritual sem tê-la experimentado. Veêm somente, diz São Bernardo, as mortificações que sofrem os amigos de Deus e os deleites de que se privam; mas não consideram as inefáveis delícias espirituais com que o Senhor nos cumula e acaricia. Ah! se os pecadores provassem a paz de que desfruta a alma que só ama a Deus! "Experimentai e vede - diz Davi - quão suave é o Senhor" (Sl 33,9). 

Começa, pois, meu irmão, a fazer meditação diária, a comungar com frequência, a visitar devotamente o Santíssimo Sacramento; começa a desprezar o mundo e a entregar-te a Deus, e verás como o Senhor te dá, no pouco tempo que lhe consagras, maiores consolações que todas as que o mundo te deu com os seus prazeres. Provai e vereis. 

Quem não experimentar, não poderá compreender o quanto Deus sabe contentar uma alma que o ama. 


AFETOS E SÚPLICAS

Meu amantíssimo Redentor, quanto fui cego ao apartar-me de vós, Sumo Bem, Fonte de todo consolo, entregando-me aos pobres e miseráveis prazeres do mundo! Minha cegueira assombra-me; porém mais ainda vossa misericórdia, que com tanta bondade me tem suportado.

Agradeço-vos de todo o coração por me terdes feito conhecer meu triste estado e o dever que me impele a amar-vos cada vez mais. Aumentai em mim o desejo e o amor... Fazei, ó Amabilidade infinita, que, enlevado eu de vós, considere que nada mais tendes a fazer para ser amado por mim e que desejais o meu amor. Se quiserdes, podereis purificar-me (Mt 8,8). Purificai, pois, meu coração, caríssimo Redentor; purificai-o de tantos afetos impuros que me não deixam amar-vos como quisera. 

Não conseguem minhas forças que meu coração se una inteiramente a vós e a vós que somente ame. Deve ser este um efeito de vossa graça, para a qual nada há de impossível. Desligai-me de tudo; arrancai-me de minha alma tudo o que não conduz a vós, e fazei que seja inteiramente vosso. Arrependo-me de todas as ofensas que vos fiz e proponho consagrar o restante da minha vida ao vosso santo amor. Vós, porém, o haveis de realizar. Fazei-o pelo sangue que derramastes por mim com tanto amor e dor. Seja para glória da vossa onipotência que meu coração, outrora cativo de afeições terrenas, arda doravante em amor por vós, ó Bondade infinita!...

Mãe do belo amor! Alcançai que, por meio de vossas súplicas, minha alma se abrase, como a vossa, em caridade para com Deus.

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Santo Afonso Mª de Ligório - Preparação para a morte

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domingo, 26 de outubro de 2025

Loucura do pecador

 



Sapientia enim hujus mundi stultitta est apud Deum. 

A sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus ( 1Cor 3,19).


PONTO I

O  bem-aventurado João d'Ávila dizia que neste mundo deveria haver dois grandes cárceres: um para aqueles que não têm fé, e outro para aqueles que, tendo-a, vivem em pecado e afastados de Deus. A estes, acrescentava, conviria o hospício de loucos. Mas a maior desdita destes miseráveis consiste em que, não obstante sua cegueira e insensatez, julgam ser sábios e prudentes. E pior é que seu número é infinito (Ecl 1,15) Há quem enlouqueça pelas honras; outros, pelos prazeres; não poucos, pelas futilidades da terra. E se atrevem a considerar loucos os santos, que desprezam os bens mesquinhos do mundo para conquistar a salvação eterna e o Sumo Bem, que é Deus. A seus olhos é loucura sofrer desprezos e perdoar ofensas; loucura, o privar-se dos prazeres sensuais e preferir a mortificação; loucura, renunciar às honras e às riquezas, e amar a solidão, a vida humilde e oculta. Não consideram, no entanto, que a essa sua sabedoria mundana Deus chama necessidade: "A sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus" (1Cor 3,19). Ah!... Virá o dia em que confessarão e reconhecerão a sua demência...

Quando, porém? Quando já não houver remédio possível e tenham que exclamar desesperados: "Desgraçados de nós, que reputávamos loucura a vida dos santos! Agora compreendemos que os loucos fomos nós. Eles já se conta no número feliz dos filhos de Deus e compartilham a sorte dos bem-aventurados, que durará eternamente e os fará felizes para sempre... ao passo que nós ficamos escravos do demônio, condenado a arder deste cárcere de tormentos por toda a eternidade!... Enganamo-nos, pois, querendo cerrar os olhos à luz divina (Sb 5,6), e nossa maior desventura é sabermos que o nosso erro não tem  nem terá remédio enquanto Deus for Deus. 

Que imensa loucura é, portanto, perder a graça de Deus em troca de um pouco de fumo, de um breve deleite!... Que não faz um vassalo para obter as boas graças de seu soberano?... E, no entanto, ó meu Deus, por uma miserável satisfação perder o Bem supremo, perder a glória, perder também a paz nesta vida, deixando que o pecado reine na alma e a atormente com seus incessantes remorsos... Perder tudo, e condenar-se voluntariamente à desgraça interminável!... Entregar-te-ias àquele prazer ilícito, se, de antemão, soubesses que te queimarias a mão ou que ficarias encerrado por um ano, num túmulo? Cometerias tal pecado, se, por causa dele, perderias cem escudos? E, contudo, tens fé e crês que, pecando, perderás a Deus e serás condenado ao fogo eterno... Como te atreves a pecar?


AFETOS E SÚPLICAS

Deus de minha alma!... Que seria agora de mim se não tivésseis tido tanta misericórdia para comigo? Estaria no inferno, entre os insensatos a quem fui semelhante. Dou-vos graças, Senhor, e vos peço que não me abandoneis em minha cegueira. Bem o merecia, mas vejo felizmente que vossa graça ainda não me tem abandonado. Ouço que me chamais amorosamente e me convidais a pedir-vos perdão e esperar de vós a concessão de dons altíssimos, apesar das graves ofensas que vos fiz. Sim, meu Salvador, espero que me acolhereis como filho vosso. 

Não sou digno de que me chameis filho, porque vos ultrajei atrevidamente (Lc 5,21). Sei, porém, que vos comprazeis em ir à procura da ovelha tresmalhada e em abraçar os filhos perdidos. Meu Pai amantíssimo, arrependo-me de vos ter ofendido; a vossos pés me prosto e os abraço e não me levantarei enquanto não me concederdes o perdão e a benção! (Gn 32,26). Abençoai-me, meu Pai, e com vossa benção despertai em mim grande dor de meus pecados e amor ardente por vós. Amo-vos meu Pai, de todo o coração. Não permitais que me afaste de vós! Privai-me de tudo, menos do vosso amor. 

Ó Maria, se Deus é meu Pai, sois vós minha Mãe. Abençoai-me também, e, já que não mereço ser filho, recebei-me como vosso servo.

Fazei, porém, que seja um servo que vos ame sempre com ternura e confie sempre em vossa proteção.


PONTO II

Pobres pecadores! Afadigam-se com empenho para adquirir a ciência humana e procurar os bens da vida presente, que tão cedo se acaba, e desprezam os bens dessa outra vida, que jamais terá fim! De tal modo perdem o juízo, que não somente se tornam insensatos, mas se reduzem à condição dos brutos; porque, vivendo como irracionais, sem considerar o que é o bem e o mal, seguem unicamente o instinto das afeições sensuais, entregam-se ao que lisonjeia a carne, sem pensar no que perdem, nem na ruína eterna que os ameaça. Isto não é portar-se como homem, senão como besta. "Chamamos homem, - diz São João Crisóstomo, - aquele que conserva a imagem essencial do ser humano". Ser homem é, por conseguinte, ser racional, isto é, governar-se segundo os ditames da razão e não segundo o apetite sensual.  

Se Deus desse a uma besta o uso da razão, e ela conforme a razão procedesse, diríamos que procedia como homem. E, ao contrário, quando o homem se deixar pelos sentidos contra a razão, deve dizer-se que procede como besta. 

"Oxalá que eles tivessem sabedoria e compreendessem e previssem o fim" (Dt 32,29). O homem que se guia razoavelmente em suas obras, prevê o futuro, isto é, considera o que lhe há de acontecer no fim da vida: a morte, o juízo, e depois dele o inferno ou a glória. Quanto mais sábio é um simples aldeão que se salva, do que um monarca que se condena. "Vale mais um moço pobre, mas sábio, do que um rei velho e néscio, que não sabe prever nada para o futuro" (Ecl 4, 13). Ó Deus! Não teríamos por louco aquele que, para ganhar um real, se arriscasse a perder todos os bens? E não deve passar por louco aquele que, a troco de um breve prazer, perde a sua alma e se expõe ao perigo de perdê-la para sempre? Esta é a causa de condenação de muitíssimas almas: ocupam-se em demasia dos bens e dos males presentes, e não pensam nos eternos. 

Deus não nos colocou neste mundo para alcançarmos riquezas, nem adquirimos honras ou contentarmos os sentidos, senão para procurarmos a vida eterna (Rm 6,22). E a consecução desta finalidade deve ser o nosso único interesse. Uma só coisa é necessária (Lc 10,42).

Ora, os pecadores desprezam este fim. Só pensam no presente. Caminham até ao término da vida e se acercam da eternidade, sem saberem para onde se dirigem. "Que diríeis de um piloto - diz Santo Agostinho - que mostrasse ignorar completamente o rumo que deve dar a seu navio? Todos diriam que leva a nau à sua perdição". "Tais são - continua o Santo - esses sábios do mundo, que sabem ganhar dinheiro, entregar-se aos prazeres, obter altos cargos, mas não acertam salvar suas almas". Sábio do mundo foi Alexandre Magno, que conquistou numerosos reinos; mas, decorrido pouco tempo, morreu, e se condenou para sempre. Sábio foi o rico avarento que soube enriquecer; e, todavia, morreu e foi sepultado no inferno (Lc 15,22). Sábio dessa espécie foi Henrique VIII, que soube manter-se no trono, apesar de sua revolta contra a Igreja. Mas, no fim de seus dias, reconhecendo que tinha perdida sua alma, exclamou: Tudo para mim está perdido! Quantos desgraçados gemem agora no inferno! Vede, dizem eles, como todos os bens do mundo passaram qual sombra e já não nos causam senão constante pesar e eterno pranto (Sb 5,8)! "Ante o homem, a vida e a morte: aquilo que ele escolher, ser-lhe-á dado" (Ecl 15,18). Cristão! diante de ti se apresentam a vida e a morte, isto é, a voluntária privação das coisas ilícitas para ganhar a vida eterna, ou o entregar-te a eles e à morte eterna... Que dizes? Que escolhes?...

Procede como homem e não como bruto. Escolhe como cristão que tem fé, e dize: "Que aproveita ao homem ganhar o mundo todo e perder sua alma?" (Mt 16,26). 


AFETOS E SÚPLICAS

Ó meu Deus! Deste-me a razão, a luz da fé e, contudo, portei-me como um irracional, preterindo vossa divina graça aos vís prazeres mundanos, que se dissiparam como o fumo, deixando apenas remorsos de consciência e dívidas para com vossa justiça. Ah, Senhor, não me jugueis pelo que mereço (Sl 142,2), mas tratai-me segundo vossa misericórdia! Iluminai-me, meu Senhor; dai-me dor sobre meus pecados, e perdoai-me. Sou a ovelha tresmelhada; se me preocurardes, perdido continuarei (Sl 118,176). Tende piedade de mim, pelo sangue precioso que por mim derramastes. Arrependo-me, meu Sumo Bem, de vos ter abandonado e de ter renunciado voluntariamente à vossa graça. 

Quisera morrer de dor; aumentai em mim essa contrição profunda e fazei que chegue ao céu para exaltar ali vossa infinita misericórdia... 

Nossa Mãe Maria, meu refúgio e minha esperança, rogai por mim a Jesus; intercedei para que me perdoe e me conceda a santa perseverança. 


PONTO III

Compenetremo-nos bem de que o verdadeiro sábio é aquele que sabe adquirir a graça divina e a glória. Roguemos ao Senhor para que nos conceda a ciência dos Santos, ciência que ele dá a quem lha pede (Sb 10,10). Que bela ciência, a de saber amar a Deus e salvar a nossa alma! Isto é, a de acertar na escolha do caminho da eterna salvação e dos meios para consegui-la. O livro da salvação é, sem dúvida, o mais necessário de todos. Se o soubermos todo, sem saber salvar-nos, de nada nos aproveita o nosso saber. Seríamos para sempre infelizes. 

Mas, ao contrário, seremos eternamente venturosos, se soubermos amar a Deus, ainda que ignoremos todas as demais coisas, como dizia Santo Agostinho. Certo dia, Frei Gil disse o São Boaventura: "Sois feliz, Padre Boaventura, pelo vosso profundo saber. Eu, pobre ignorante, nada sei. Sem dúvida, podereis tornar-vos mais santo do que eu. - Persuadi-vos, - respondeu o Santo, - de que uma pobre velha ignorante, que sabe amar a Deus melhor que eu, será mais santa que eu. - Ouvindo isto, o santo frei Gil exclamou: "Ó pobre velhinha, se amares a Deus, podes tornar-te mais santa que o Padre Boaventura".

Quantos ignorantes há - dizia Santo Agostinho - que nunca aprenderam a ler, mas que sabem amar a Deus, e se salvam, e quantos doutos do mundo que se condenam!... Quão sábios foram um São Pascoal, um São Félix, capuchinho, um São João de Deus, apesar de ignorarem as ciências humanas! Quão sábios todos aqueles que, renunciando ao mundo, se encerram nos claustros ou viveram em desertos, como um São Bento, um São Francisco de Assis, um São Luís de Tolosa, que renunciou a coroa! Quão sábios, tantos mártires e tantas virgens, que renunciaram a honras, prazeres e riquezas para morrer por Cristo!... Ainda os próprios mundanos reconhecem esta verdade, e proclamam feliz aquele que se entrega a Deus e sabe o que tem de fazer para salvar a sua alma. Em suma: aqueles que renunciam aos bens da terra para se consagrar a Deus são chamados homens desenganados. 

Como deveremos chamar os que preferem a Deus os bens do mundo?... Homens enganados.

Meu irmão! a qual dessas duas falanges queres pertencer? Para fazer boa escolha nos aconselha São João Crisóstomo que visitemos os cemitérios. Os sepulcros são escola excelente para reconhecer a vaidade dos bens deste mundo e para aprender a ciência dos Santos. 

Dizei-me - adverte o Santo - saberíeis distinguir ali o príncipe do nobre ou do letrado? "Eu, por mim, nada vejo, senão podridão e vermes". 

Todas as coisas do mundo passarão em breve, dissipar-se-ão como fábulas, sonhos e sombras. 

Entretanto, cristão, se quiseres adquirir a verdadeira sabedoria, não basta que reconheças a importância de tua finalidade, mas é mister seguir os meios estabelecidos para alcançá-la. Não há ninguém que se não quisera salvar e sacrificar, mas como não empregam os meios convenientes, condenam-se. É preciso evitar as ocasiões de pecar, frequentar os sacramentos, fazer oração, e, sobretudo, gravar no coração as máximas do Evangelho, como, por exemplo, as seguintes: "Que aproveita ao homem se ganhar o mundo todo? (Mt 16,26). Quem ama desordenadamente a sua alma, perdê-la-á" (Jo 12,25). Ou seja, convém perder a vida, se necessário for, para salvar a alma. "Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo" (Mt 16,20). Para seguir a Jesus Cristo é preciso recusar ao amor próprio a satisfação que exige. 

Nossa salvação consiste no cumprimento da vontade divina (Sl 29,61). 


AFETOS E SÚPLICAS

Pai de misericórdia! Lançai um olhar sobre minha grande miséria e compadecei-vos de mim. Iluminai-me, Senhor; fazei que reconheça minha loucura passada para que a deplore e aprecie e ame vossa bondade infinita. Ó meu Jesus, que destes vosso sangue para me remir; não permitais que volte a ser, como fui, escravo do mundo! (Sl 19). Arrependo-me, Sumo Bem, de ter-vos abandonado. Amaldiçoo todos os momentos em que minha vontade consentiu no pecado, e abraço-me com vossa santíssima vontade, que só deseja a minha felicidade. Concedei-me, Eterno Pai, pelos merecimentos de Jesus Cristo, força para executar tudo quanto vos agrade, e fazei que prefira morrer a opor-me à vossa vontade. Ajudai-me com a vossa graça a depositar em vós todo o meu amor, e a desligar-me de todo afeto que não conduza a vós. Amo-vos, ó Deus de minha alma, amo-vos sobre todas as coisas e de vós espero toda a felicidade; o perdão, a perseverança em vosso amor e a glória para vos amar eternamente... 

Ó Maria, alcançai-me estas graças! O vosso divino Filho nada vos recusa. Confio em vós, minha esperança!

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Santo Afonso Mª de Ligório - Preparação para a morte

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