domingo, 22 de junho de 2025

Eucaristia - Já não é pão

 



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Padre Leo J. Trese


Que aconteceu exatamente quando Jesus disse na Última Ceia (e os sacerdotes esta manhã na missa): "Isto é o meu corpo" sobre o pão, e "Este é o cálice do meu sangue" sobre o vinho? Cremos que a substância do pão deixou de existir completa e totalmente, e que a substância do próprio Corpo de Cristo substituiu a substância do pão, que ficou aniquilada. Cremos também que Jesus, pelo seu poder onipotente como Deus, preservou as aparências do pão e do vinho, apesar de as respectivas substâncias terem desaparecido. 

Por "aparências" de pão e de vinho entendemos todas as formas externas e acidentais que de um modo ou de outro podem ser percebidas pelos sentidos da vista, do tato, do paladar, do ouvido e do olfato. A Sagrada Eucaristia ainda parece pão e vinho, ainda tem o sabor do pão e do vinho e cheira a pão e vinho, ainda é sensível ao tato como pão e vinho, e, se a partíssemos ou derramássemos, espalhar-se-ia como o pão e o vinho. Mesmo que fizéssemos um exame microscópico, eletrônico ou radiológico, só poderíamos perceber nela as qualidades do pão e do vinho. Com efeito, a observação humana só pode obter a aparência externa de qualquer coisa. A sua configuração, a sua reação a determinadas circunstâncias, as leis físicas a que parece obedecer, são as únicas questões que a ciência pode investigar. Mas a substância de uma coisa, o que lhe está subjacente, a substância como substância, está fora do alcance dos sentidos e dos instrumentos humanos. 

Hoje em dia, a ciência da física nuclear teoriza que toda a matéria é uma forma de energia; que toda a matéria se compõe de partículas em movimento, carregadas eletricamente. A diferença entre um pedaço de madeira e um pedaço de ferro é simplesmente a diferença entre o número, a velocidade e a direção das partículas carregadas eletricamente que compõem os dois materiais. Mas, mesmo que um físico consiga fotografar com uma câmara eletrônica algumas dessas partículas, ainda continuará a manejar aparências. A substância como substância, aquilo que faz uma coisa ser o que é e não outra coisa, continua a estar fora do alcance dos cientistas. 

Todo este tema da relação da substância (o que uma coisa é) com os acidentes (as qualidades perceptíveis de uma coisa) é uma questão filosófica, e não podemos estender-nos aqui na sua análise. Basta-nos saber, como sabemos, que, pelas palavras da Consagração, a substância do corpo de Cristo substitui a substância do vinho, ao mesmo tempo que permanecem as aparências do pão e do vinho. 

Evidentemente, é um milagre; um milagre contínuo, realizado centenas de milhares de vezes por dia pelo poder infinito de Deus. A bem dizer, é um duplo milagre: é o milagre da transformação do pão e do vinho em Jesus Cristo; e o milagre adicional pelo qual Deus mantém as aparências do pão e do vinho ainda que a substância subjacente tenha desaparecido, como se o rosto de uma pessoa permanecesse num espelho depois de a pessoa se ter retirado. 

A mudança operada pelas palavras da consagração é de um tipo especial, e a Igreja teve de cunhar um termo especial para a designar: transubstânciação, que, literalmente, significa a passagem de uma substância para outra; neste caso, é uma singular espécie de mudança. 

"O Concílio de Trento resume a fé católica declarando: <<Porque Cristo, nosso Redentor, disse que o que Ele oferecia sob a espécie do pão era verdadeiramente o seu Cristo, sempre na Igreja se teve esta convicção que o sagrado Concílio de novo declara: pela consagração do pão e do vinho opera-se a conversão de toda a substância do pão na substância do Corpo de Cristo nosso Senhor, e e de toda a substância do vinho na substância do seu Sangue; a esta mudança, a Igreja católica chama-lhe, com justeza e exatidão, transubstânciação>> (DS 1642)" (n. 1376).

Na vida ordinária, estamos acostumados a muitas espécies de mudanças. Às vezes, são mudanças apenas aparentes, externas, como quando a água congela e se torna sólida, ou um pedaço de barro é modelado e se torna um vaso. Vemos também mudanças que afetam tanto a substância como os acidentes, como quando o vinho se transforma em vinagre ou o carvão sob pressão se torna um diamante. Tem havido mudança milagrosas destes gênero, como a que Jesus operou em Caná, mudando a água em vinho. 

No entanto, em lugar nenhum da ordem natural e, pelo que conhecemos, também na ordem sobrenatural, se produzem mudanças semelhantes à que se opera no pão e no vinho pelas palavras da consagração: uma mudança de substância sem mudança de aparências. Por esta razão, a palavra "transubstânciação" aplica-se exclusivamente a esse milagre quotidiano. 

Ainda que pelas palavras da consagração o corpo de Jesus se torne presente sob as aparências do pão, e o seu sangue sob as aparências do vinho, sabemos que a Pessoa de Jesus, ressuscitado dentre os mortos, não pode ser dividida. Onde está o seu corpo, deve estar também o seu sangue; e onde estão o seu corpo e o seu sangue, devem estar também a sua alma e a sua natureza divina, a que estão unidos o seu corpo e o seu sangue. Do mesmo modo, onde está o sangue de Jesus, deve estar Jesus inteiro. Em consequência, pelas palavras "Isto é o meu corpo", torna-se presente não só o corpo de Jesus, como também - pelo que os teólogos chamam "concomitância", quer dizer, por força da sua unidade de Pessoa - o seu sangue, alma e divindade. O mesmo acontece na consagração do vinho. 

É por esta razão que não é necessário receber a Comunhão sob as duas espécies de pão e vinho, embora se possa fazê-lo nos casos previstos pelas normas litúrgicas. Se a recebemos sob qualquer das duas, seja pão, seja vinho, recebemos Jesus todo, completo e inteiro. 

Jesus Cristo, todo e inteiro, está presente na Sagrada Eucaristia sob as aparências do pão e do vinho. Está presente simultaneamente em cada uma das hóstias consagradas de cada altar de todo o mundo e em cada cálice consagrado onde quer que se celebre a Santa Missa. Mais ainda, Jesus todo e inteiro está presente em cada partícula consagrada e em cada gota de vinho consagrado. Se a sagrada hóstia se divide - como o sacerdote faz durante a missa -, Jesus está totalmente presente em cada uma das partes. Se caísse ao chão uma partícula da hóstia consagrada ou se derramasse uma gota do calíce, Jesus estaria presente todo e inteiro nessa partícula e nessa gota.

É por isso que os panos do altar têm que ser lavados com a máxima reverência, porque pode haver aderida a eles uma partícula das Sagradas Espécies. Estes panos de altar compreendem o corporal, sobre o qual se coloca a patena com a hóstia e o cálice consagrados durante a missa; a pala, o pano quadrado que cobre o cálice durante a missa; e o sanguíneo, o pano com que o sacerdote enxuga os lábios depois de consumir o precioso Sangue e seca os dedos e o cálice depois de lavar o cálice com vinho e água, ou só com água. Jesus, evidentemente, não deixa o seu lugar no céu, "à direita do Pai", para se tornar presente na Sagrada Eucaristia. Permanece no céu e está no altar. Quem se faz presente sob as aparências do pão e do vinho é o corpo glorificado de Jesus, o seu corpo como está no céu. 

A presença de Jesus na Eucaristia - sob dimensões tão pequenas e em tantos lugares ao mesmo tempo - parece suscitar duas aparentes dificuldades: Como pode um corpo humano estar presente num espaço tão pequeno? Como pode um corpo humano estar em vários lugares ao mesmo tempo? Estas dificuldades, é claro, são apenas aparentes. Deus assim o fez; portanto, pode ser feito. Deve-se recordar que Deus é o autor da natureza, o amo e o senhor da Criação. As leis físicas do universo foram estabelecidas por Ele, e Ele pode suspender a sua ação se assim o quiser, sem que o seu poder infinito tenha que fazer nenhum esforço. 

É verdade que, segundo a experiência humana, um corpo deve ter determinada "extensão", isto é, deve ocupar determinado espaço. Segundo a nossa experiência, um corpo deve estar num só lugar de cada vez. A multilocação (estar em vários lugares ao mesmo tempo) é algo desconhecido para nós. Pode-se, pois, afirmar que um corpo sem extensão no espaço, ou que ocupe vários lugares ao mesmo tempo, é um impossível físico; isto é, impossível para as leis físicas. Mas esses fenômenos não são impossíveis metafisicamente; quer dizer, não há contradição íntrinseca na idéia de um corpo sem extensão ou na idéia da multilocação. Uma contradição intrínseca torná-los-ia absolutamente impossíveis; estaria neste caso, por exemplo, a idéia de um círculo quadrado, que é uma contradição nos seus próprios termos. 

Talvez isto nos arraste excessivamente para o campo da filosofia. Mas os pontos que nos interessa deixar claros são: primeiro, que Jesus não está presente na Eucaristia em miniatura. Está ali  na plenitude da sua Pessoa glorificada, de uma maneira espiritualizada, sem extensão nem espaço. Não tem altura, largura ou espessura. 

O segundo ponto é que Jesus não se multiplica: não passa a haver muitos Jesus; também não se divide entre as diferentes hóstias. Há um só Jesus, completo e indiviso. A sua multilocação não é resultado de multiplicações e ou divisões, mas da suspensão da lei do espaço relativamente ao seu corpo sagrado. É como se estivesse num lugar, e todas as partes do espaço fossem atraídas para Ele. É fácil ver a razão pela qual a Eucaristia é chamada - e é - o sacramento da unidade. Quando comungamos - nós e os nossos companheiros de comunhão do mundo inteiro -, estamos onde Ele está. O espaço dissolveu-se para nós, e todos juntos somos um em Cristo. 

Quanto tempo permanece Jesus na Sagrada Eucaristia? O tempo em que permanecem as espécies do pão e do vinho. Se um fogo repentino destruísse as hóstia consagradas do sacrário, Jesus não se queimaria. As aparências do pão e do vinho transformar-se-iam em cinzas, mas Jesus já não estaria lá. Quando, depois de comungarmos, o nosso processo digestivo destrói as aparências do pão, Jesus já não permanece corporalmente em nós; só fica a sua graça. 

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A fé explicada - Padre Leo J. Trese. Ed.Quadrante, 14ª edição, 2014. 


 







sábado, 21 de junho de 2025

Eucaristia - Jesus mantém a sua promessa




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 Pe. Leo J. Trese

Na sinagoga de Cafarnaum, quase um ano antes da sua morte, Jesus prometeu dar o seu próprio corpo e o seu próprio sangue como alimento para a salvação dos homens. Na Última Ceia, nas vésperas da sua crucifixão, cumpriu a sua promessa. Legou à Igreja e a cada um dos seus membros, não terras, casas ou dinheiro, mas um legado como só Deus nos podia dar: o dom da sua própria Pessoa viva. 

No Novo Testamento, há quatro relatos da instituição da Eucaristia. São os de Mateus (26, 26-28), Marcos (14, 22-24), Lucas (22, 19-20) e Paulo (1 Cor 11, 23-29). São João, que é quem nos conta a promessa da Eucaristia, não se preocupa de repetir a história da instituição deste sacramento. Foi o último Apóstolo a escrever um Evangelho, e conhecia os outros relatos. Em seu lugar, decide transmitir-nos as belíssimas palavras finais de Jesus aos seus discípulos na Última Ceia. 

Eis aqui o relato da instituição da Sagrada Eucaristia segundo nos conta São Paulo: O Senhor Jesus, na noite em que foi entregue, tomou o pão e, dando graças, partiu-o e disse: Tomai e comei; isto é o meu corpo, que será entregue por vós; fazei isto em memória de mim. Igualmente também, depois de ter ceado, tomou o cálice e disse: Este cálice é o novo testamento no meu sangue; fazei isto em memória de mim todas as vezes que o beberdes. 

As suas palavras não podiam ser mais claras. "Isto" queria dizer "esta substância que tenho em minhas mãos e que agora que começo a falar é pão e ao terminar não será já pão, mas o meu próprio corpo". "Este cálice" queria dizer "este cálice que agora que começo a falar contém vinho, e ao terminar não será mais vinho, mas o meu próprio sangue". 

"Isto é o meu corpo" e "este cálice... é o meu sangue". Os Apóstolos tomaram as palavras de Jesus literalmente. Aceitaram como um fato (e que ato de fé, essa aceitação!) que a substância que ainda parecia pão era agora o Corpo de Jesus; e que a substância que continuava a parecer vinho era agora o Sangue de Cristo. 

Essa foi a doutrina que os Apóstolos pregaram à Igreja nascente. Essa foi a crença universal dos cristão durante mil anos. No século XI, um herege chamado Berengário pôs em dúvida a verdadeira da presença real, e ensinava que Jesus tinha falado apenas em sentido figurado e, assim, o pão e o vinho consagrados não eram realmente o seu corpo e o seu sangue. A heresia de Berengário foi condenada por três concílios, e Berengário retratou-se do seu erro e voltou ao redil. A doutrina da presença real permaneceu, indiscutida por outros quinhentos anos. 

No século XVI, chegaram Lutero e a reforma protestante. O próprio Lutero não negou inteiramente a presença real de Jesus na Eucaristia. Admitia que as palavras de Jesus eram demasiado terminantes para que fosse possível explicá-las de outro modo. Mas Lutero queria abolir a Missa, bem como a adoração de Jesus presente no altar. Por isso, tratou de resolver o seu dilema ensinando que, embora o pão continuasse a ser pão e o vinho, vinho, Jesus se faz presente juntamente com as substâncias do pão e do vinho; mas sustentava que Jesus está presente apenas no momento em que se recebe o pão e o vinho; não antes nem depois. 

Outros reformadores protestantes foram mais longe que Lutero e acabaram por negar complemente a presença real. Tanto eles como os teólogos protestantes que lhes sucederam sustentaram que, quando Jesus disse: "Isto é o meu corpo" e "Isto é o meu sangue", lançou mão de um recurso de linguagem, e que o que queria dizer era: "Isto representa o meu corpo" ou "Isto é um símbolo do meu sangue". Na sua tentativa de alterar as palavras de Cristo, tiveram que valer-se de todo o tipo de interpretações inverossímeis, mas deixaram sem respostas as razões realmente sólidas que provam que Jesus disse o que queria dizer e que quis dizer o que disse. 

A primeira delas reside na solenidade da ocasião: a noite anterior à sua morte. Nela, Jesus faz o seu testamento, deixa-nos a sua última vontade. Um testamento não é um documento apropriado para empregar uma linguagem figurada; mesmo nas circunstâncias mais favoráveis, os tabeliães têm, às vezes, dificuldade em interpretar as intenções do testador, quanto mais se este emprega uma linguagem simbólica. 

Mais ainda: sendo Deus, Jesus sabia que, em consequência das palavras que ia pronunciar naquela noite, milhões e milhões de pessoas lhe prestariam culto sob a aparência de pão. Se não tivesse querido estar realmente sob essas aparências, os adoradores prestariam culto a um simples pedaço de pão e incorreriam no pecado de idolatria, e isto, certamente, não é coisa a que o próprio Deus quisesse induzir-nos, preparando o cenário e utilizando obscuros modos de falar. 

Que os Apóstolos tomaram literalmente as palavras de Jesus é evidente, pois os cristãos creram os primórdios na presença real de Jesus na Eucaristia. De ninguém mais, além dos Apóstolos, poderiam ter obtido essa crença. E quem melhor do que este nos poderia ter perguntado a Jesus - e certamente o fizeram - todas as questões que lhes ocorressem sobre o significado das palavras que acabavam de ouvir. Às vezes, tendemos a esquecer que os Evangelhos registram apenas uma pequena parte do que se passou entre Jesus e os Apóstolos. Compilar três anos de diálogo, de perguntas e respostas, de ensinamentos, requereria um montão de livros.

Quando, na noite de Quinta-feira Santa, Jesus pronunciou as palavras: "Isto é o meu corpo" sobre o pão, e "Isto é o meu sangue" sobre o vinho, os Apóstolo tomaram essas palavras ao pé da letra, como se prova claramente pela sua conduta posterior. Se Jesus lançou mão de uma metáfora, se o que na realidade quis dizer era: "Este pão é como que um símbolo do meu corpo e este vinho significa o meu sangue; portanto, cada vez que os meus seguidores se reunirem e participarem de um pão e um vinho como estes, honrar-me-ão e representarão a minha morte"; se foi o que Jesus quis dizer, então todos os Apóstolos o entenderam mal. E, através da sua interpretação errônea, toda a cristandade - até que chegaram os protestantes - passou a adorar um pedaço de pão como se fosse Deus. 

É totalmente insensato pensar que Jesus pudesse permitir que os seus discípulos caíssem num erro tão grave. Em outras ocasiões, em muitíssimas outras ocasiões, e tratando-se de matérias muito menos importantes que esta, Jesus corrige os seus Apóstolos quando o interpretam mal. Para citar um só exemplo no Evangelho de São Mateus (16, 6-12), Jesus diz aos seus Apóstolos que estejam prevenidos contra o fermento dos fariseus e dos saduceus. Eles pensam que lhes está falando de pão real, e cochicham entre si que não têm pão. Pacientemente, Jesus esclarece-lhes que se refere aos ensinamentos dos fariseus e saduceus, não ao pão que se come. Em outras ocasiões, quando Jesus se serve de metáforas, o próprio escritor sagrado nos esclarece o respectivo significado, como na ocasião em que Jesus disse: Destruí este tempo e eu o reedificarei em três dias, e João explica imediatamente que Ele se referia ao templo do seu corpo (cf. Jo 2, 19-22). Encontramos incidentes parecidos em grande abundância nos Evangelhos, e, no entanto, querem agora fazer-nos crer que, no momento solene da Última Ceia, Jesus utilizou modos de dizer novos e estranhos, sem se darem ao trabalho de explicar qual era o seu signficado. 

Porque são modos de dizer novos e estranhos. Nem o pão é um símbolo natural do corpo humano, nem o vinho um símbolo do sangue. Se alguém cortasse uma fatia de pão e a oferecesse a outro comensal, dizendo-lhe: "Isto é o meu corpo", este pensaria logo que estava diante de um gozador ou de um louco varrido. E é blasfemo tratar de aplicar a Jesus qualquer das duas hipóteses.

Como recurso literário, só é válido lançar mão de um modo de dizer quando o seu significado é claro. Esta clareza pode resultar da natureza da afirmação, como quando mostro uma fotografia e digo: "É a minha mãe", ou aponto um menino irrequieto e digo: "É uma máquina de movimento contínuo", ou digo de um cavalo veloz: "É um raio"; ou quando me ponho a explicar o sentido da metáfora; por exemplo, quando coloco uns fósforos sobre a mesa e digo: "Esta é a minha casa, e aqui está a sala de jantar". Mas, nem pela natureza da afirmação, nem por explicações dadas, as palavras "Isto é o meu corpo" fazem sentido como metáfora. 

A ideia de que Jesus teria falado em metáforas na Última Ceia torna-se ainda mais incrível se tivermos em conta que se dirigia a homens que, na sua maioria, eram uns pobres e incultos pescadores. Não tinham sido educados nas sutilezas da retórica. Mais ainda, antes de o Espírito Santo ter descido sobre eles, assombram-nos pelo seu lento entendimento das coisas. Temos um exemplo na passagem da ressurreição de Lázaro. Lemos em São João (11, 11-14) que, quando Jesus disse: O nosso amigo Lázaro dorme, mas vou despertá-lo, os discípulos replicaram: Senhor, se dorme, curar-se-á. Então Jesus disse-lhes claramente: Lázaro morreu. Eram mentalidades difíceis para lhes falar em metáforas!

Outra indicação de que Jesus não falava em metáforas ao instruir a Eucaristia, achamo-la nas palavras com que São Paulo conclui o seu relato da Última Ceia (1Cor 11, 27-30): Portanto, todo aquele que comer deste pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se, pois, a si mesmo o homem, e assim coma deste pão e beba do cálice, porque aquele que o come e bebe indignamente, come e bebe para si a condenação, não distinguindo o corpo do Senhor. É duro dizer que um homem se torna réu do Corpo e do Sangue do Senhor, que come e bebe a sua própria condenação, se o pão não é mais do que pão, mesmo que seja pão bento, e o vinho não é senão vinho, mesmo que seja vinho sobre o qual se tenham pronunciado umas orações. 

Nós, certamente, não necessitamos de provas como as que aqui se esquematizaram para crer na presença real de Jesus Cristo na Sagrada Eucaristia. Cremos nessa verdade não por provas racionais, mas, primordialmente, porque a Igreja de Cristo, que não pode errar em matérias de fé e moral, assim no-lo diz. Mas sempre é útil conhecer as dificuldades com que tropeçam os que procuram interpretações pessoais nas palavras de Nosso Senhor. 

Nós preferimos seguir a regra da sensatez que diz que, para conhecer o significado de uma coisa que se disse, não há melhor caminho do que perguntar a quem a ouviu ou que estava lá. Os Apóstolos estavam lá; os primeiros cristãos, os que escutaram a pregação dos Apóstolos, em certo sentido estavam lá. Mesmo nós, que herdamos uma tradição ininterrupta, em certo sentido estávamos lá. Independentemente de ser um dogma definido pela Igreja, preferimos crer nos ensinamentos dos Apóstolos e na crença unânime dos cristãos durante mil e quinhentos anos, em vez de prestar ouvidos aos ensimentos desencontrados dos reformadores protestantes. Homens como Lutero, Karlstadt, Zwingli ou Calvino exigem demasiado quando nos pedem para crer que durante quinze séculos os cristãos permaneceram no erro e que, de repente, eles, os reformadores protestantes, encontraram a resposta certa. 

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A fé explicada - Padre Leo J. Trese. Ed.Quadrante, 14ª edição, 2014. 








quinta-feira, 19 de junho de 2025

Eucaristia - O maior dos sacramentos



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 Leo J. Trese


Agora que nos dispomos a estudar o sacramento da Sagrada Eucaristia, vamos passar por uma situação semelhante à do viajante que torna a percorrer uma região bem conhecida. Encontraremos muitas paisagens familiares - neste caso, verdades já vistas anteriormente. Mas, nas verdades que vamos recordar, confiamos em que haveremos de notar aspectos de interesse que antes nos passaram despercebidos. Podemos também confiar em descobrir outras paisagens - outras verdades - que escaparam totalmente à nossa observação em viagens anteriores por essa região amada e familiar, que é o tema do maior dos sacramentos. 

Quando dizemos que a Sagrada Eucaristia é o maior dos sacramentos, afirmamos algo evidente. O Batismo é, sem dúvida, o sacramento mais necessário; sem ele, não podemos ir para o céu. No entanto, apesar das maravilhas que o Batismo e os outros cinco sacramentos produzem na alma, não são senão instrumentos de que Deus se serve para nos dar a sua graça; mas na Sagrada Eucaristia não temos apenas um instrumento que nos comunica as graças divinas: é-nos dado o próprio Dador da graça, Jesus Cristo Nosso Senhor, real e verdadeiramente presente. 

"A Eucaristia é <<fonte e centro de toda a vida cristã>> (LG 11). <<Os restantes sacramentos, porém, assim como todos os ministérios eclesiásticos e obras de apostolado, estão vinculados com a sagrada Eucaristia e a ela se ordenam. Com efeito, na santíssima Eucaristia está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, nossa Páscoa>> (PO 5)" (n. 1324).

 O sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo tem tido muitos nomes ao longo da história cristã: Pão dos Anjos, Ceia do Senhor, Sacramento do altar e outros que nos são bem conhecidos. Mas o nome que permaneceu desde o princípio, o nome que a Igreja dá oficialmente a este sacramento é Sagrada Eucaristia. Provém do Novo Testamento. Os quatro escritores sagrados - Mateus, Marcos, Lucas e Paulo - que nos narram a Última Ceia, dizem-nos que Jesus tomou o pão e o vinho em suas mãos e deu graças". E assim, da palavra grega eucharistia, que significa "ação de graças", resultou o nome do nosso sacramento: Sagrada Eucaristia. 

O Catecismo ensina-nos que a Eucaristia é ao mesmo tempo sacrifício e sacramento. Como sacrifício, a Eucaristia é a Missa, a ação divina em que Jesus, por meio de um sacerdote humano, transforma o pão e o vinho no seu próprio corpo e sangue e continua no tempo o oferecimento que fez a Deus no Calvário, o oferecimento de Si próprio em favor dos homens. 

"A sagrada Eucaristia completa a iniciação cristã. Aqueles que foram elevados à dignidade do sacerdócio real pelo Batismo e configurados mais perfeitamente a Cristo pela Confirmação, esses, por meio da Eucaristia, participam, com toda a comunidade, no próprio sacrifício do Senhor. [...] A Eucaristia é o memorial da Páscoa de Cristo, a atualização e oferecimento sacramental do seu único sacrifício, na Liturgia do Igreja que é o seu Corpo" (ns. 1322 e 1362). 

O sacramento da Sagrada Eucaristia adquire o seu ser (ou é "confeccionado", como dizem os teólogos) na Consagração da Missa; nesse momento, Jesus torna-se presente sob as aparências do pão e do vinho. E enquanto essas aparências permanecerem, Jesus continua a estar presente e o sacramento da Sagrada Eucaristia continua a existir nelas. O ato pelo qual se recebe a Sagrada Eucaristia chama-se Sagrada Comunhão. Podemos dizer que a Missa é a "confecção" da Sagrada Eucaristia e que a comunhão é a sua recepção. Entre uma e outra, o sacramento continua a existir (como no sacrário), quer o recebamos, quer não. 

Ao tratarmos de aprofundar no conhecimento deste sacramento, não temos melhor maneira de fazê-lo do que começando por onde Jesus começou: por aquele dia na cidade de Cafarnaum em que fez a mais incrível das promessas, a de dar a sua carne e o seu sangue como alimento da nossa alma.  

"Os milagres da multiplicação dos pães - quando o Senhor disse a bênção, partiu e distribuiu os pães pelos seus discípulos para alimentar a multidão -, prefiguram a superabundância deste pão único da Sua Eucaristia" (n. 1335).

Na véspera, Jesus tinha lançado os alicerces da sua promessa. Sabendo que ia fazer uma tremenda exigência à fé dos seus ouvintes, preparou-os para ela. Sentado numa ladeira, do outro lado do mar de Tiberíades, tinha pregado a uma grande multidão que o havia seguido até ali, e agora, já ao cair da tarde, prepara-se para despedi-los. Mas, movido de compaixão e como preparação para a sua promessa do dia seguinte, faz o milagre dos pães e dos peixes. Alimenta a multidão - só os homem eram cinco mil - com cinco pães e dois peixes; e, depois de todos se terem saciado, os seus discípulos recolhem doze cestos de sobra. Esse milagre haveria de estar presente no dia seguinte (ou deveria estar) na mente dos que o escutaram. 

Tendo despedido os que o tinham seguido, subiu monte acima, a fim de orar em solidão como era seu costume. Mas não era muito fácil separar-se daquela multidão, que queria ver mais milagres e ouvir mais palavras de sabedoria de Jesus de Nazaré: acamparam por ali para passar a noite e viram os discípulos embarcar (sem Jesus) rumo a Carfanaum, na única barca que havia. Nessa noite, depois de terminar a oração, Jesus atravessou andando as águas tomentosas do lago e juntou-se aos seus discípulos na barca, e assim chegou com eles a Cafarnaum. 

Na manhã seguinte, a turba não conseguia encontrar Jesus. Quando chegaram outras barcas de Tiberíades, desistiriram de procurá-lo e embarcaram para Carfanaum. Qual não foi o seu assombro ao encontrarem de novo Jesus, que havia chegado antes deles, sem ter subido à barca que partira na noite anterior! Foi outro portento, outro milagre que Jesus fez para fortalecer a fé daquela gente (e dos discípulos), pois ia pô-la à prova pouco depois. 

Os discípulos e os que conseguiram entrar aglomeraram-se em seu redor na sinagoga de Carfanaum. Foi ali e então que Jesus fez a promessa que hoje nos enche de fortaleza e vida: prometeu a sua Carne e o seu Sangue como alimento; prometeu a Sagrada Eucaristia. 

Se tinha poder para multiplicar cinco pães e com eles alimentar cinco mil homens, como não havia de tê-lo para alimentar toda a humanidade com um pão celestial feito por Ele?! Se tinha poder para andar sobre as águas como se fosse terra firme, como não havia de tê-lo para ordenar aos elementos do pão e do vinho que lhe emprestassem a sua aparência e para utilizá-la como capa para a sua Pessoa? Jesus tinha preparado bem os seus ouvintes e, como veremos, eles tinham necessidade disso. 

Se você tem um exemplar do Novo Testamento à mão, será muito bom que leia inteiro o capítulo sexto do Evangelho de São João. Só assim poderá captar todo o ambiente, as circunstâncias e o desenrolar dos acontecimentos na sinagoga de Carfanaum. Vou citar somente as linhas mais pertinentes, que começam no versículo 51 e acabam no 67. 

Disse Jesus: Eu sou o pão vivo que desceu do céu. [...] Quem comer deste pão viverá eternamente; e o pão que eu darei é a minha carne para a salvação do mundo. Disputavam, pois, entre si os judeus, dizendo: Como pode este dar-nos a comer a sua carne? Jesus disse-lhes: Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. O que come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha carne é verdadeiramente comida e o meu sangue é verdadeiramente bebida. [...] Este é o pão que desceu do céu. Não é como o pão que comeram os vossos pais e morreram. O que come deste pão viverá eternamente [...]. Muitos, pois, dos seus discípulos, ouvindo isso, disseram: Dura é esta linguagem, e quem a pode ouvir? Jesus, conhecendo em si mesmo que os seus discípulos murmuravam por isso, disse-lhes: [...] As palavras que eu vos disse são espírito e vida. Mas há alguns de vós que não crêem [...] Desde então, muitos dos seus discípulos tornaram atrás e já não andavam com ele. 

 Este breve extrato da capítulo sexto de São João contém os dois pontos que mais nos interessam agora: os dois pontos que nos dizem, meses antes da Última Ceia, que na Sagrada Eucaristia estarão presentes o verdadeiro Corpo e o verdadeiro Sangue de Jesus. Lutero rejeitou a doutrina da presença verdadeira e substancial de Jesus na Eucaristia, doutrina que havia sido seguida firmemente por todos os cristãos durante mil e quinhentos anos. Lutero aceitava certa espécie de presença de Cristo, ao menos no momento em que se recebesse a comunhão. Mas no terreno adubado por Lutero brotaram outras confissões protestantes que foram recusando mais e mais a crença na presença real. Na maioria das confissões protestantes de hoje, o "serviço da comunhão" não passa de um simples rito comemorativo da morte do Senhor; o pão continua a ser pão e o vinho continua a ser vinho. 

Nos seus esforços por eludir a doutrina da presença real, teólogos protestantes procuraram mitigar as palavras de Jesus, afirmando que Ele não pretendia que as tomassem no seu sentido literal, mas apenas espiritual ou simbolicamente. Mas é evidente que não se podem diluir as palavras de Cristo sem violentar o seu sentido claro e rotundo. Jesus não poderia ter sido mais enfático: A minha carne é verdadeiramente comida e o meu sangue é verdadeiramente bebida. Não há forma de dizê-lo com mais clareza. No original grego, que é a língua em que São João escreveu o seu Evangelho, a palavra do versículo 55 que traduzimos por "comer" estaria mais próxima do seu sentido original se a traduzíssemos por "mastigar" ou "comer mastigando". 

Tentar explicar as palavras de Jesus como simples modo de expressar-se levar-nos-ia a outro beco sem saída. Entre os judeus, que eram aqueles a quem Jesus se dirigia, a única ocasião em que a frase "comer a carne de alguém" se utilizava figurativamente era para significar ódio a determinada pessoa ou perseguir alguém com furor. De modo parecido, "beber o sangue de alguém" queria indicar que esse alguém seria castigado com penas severas. Nenhum desses significados - os únicos que os judeus conheciam - se revela coerente se os aplicarmos às palavras de Jesus. 

Outra prova de peso, que confirma que Jesus quis verdadeiramente dizer o que disse - que o seu corpo e o seu sangue estariam realmente presentes na Eucaristia - está em que alguns dos seus discípulos o abandonaram por terem achado a ideia de comê-lo demasiado repulsiva. Não tiveram fé suficiente para compreender que, se Jesus lhes ia dar a sua Carne e o seu Sangue em alimento, o faria de forma a não causar repugnância à natureza humana. Por isso o abandonaram, "e já não andavam com ele". 

"O primeiro anúncio da Eucaristia dividiu os discípulos, tal como o anúncio da Paixão os escandalizou: Estas palavras são insuportáveis! Quem as pode escutar? (Jo 6,60). A Eucaristia e a Cruz são pedras de tropeço. É o mesmo mistério e continua a ser motivo de divisão. Também vós quereis ir-vos embora? (Jo 6,67). Esta pergunta do Senhor ecoa através dos tempos, como convite do seu amor a que descubramos que só Ele tem palavras de vida eterna (Jo 6,68) e que acolher na fé o dom da sua Eucaristia é acolhê-lo a Ele mesmo" (n. 1336). 

Jesus nunca os teria deixado ir-se embora se essa deserção fosse simples resultado de um mal-entendido. Muitas vezes antes tinha-se dado ao trabalho de esclarecer as suas palavras quando eram mal compreendidas. Por exemplo, quando disse a Nicodemos que era preciso nascer de novo, e este lhe perguntou como é que um adulto podia entrar de novo no ventre de sua mãe (cf. Jo 3,3 e segs.); pacientemente, Jesus esclareceu-lhes as suas palavras sobre o Batismo. Mas agora, em Carfanaum, Jesus não esboça o menor gesto para impedir que os seus discípulos o abandonem nem para lhes dizer  que o haviam entendido mal. Não pode fazê-lo pela simples razão de que o tinham entendido perfeitamente e por isso o deixaram. O que lhes faltou foi fé, e Jesus, tristemente, teve que resignar-se a vê-los partir. 

 Tudo isto faz com que a afirmação da doutrina da presença real esteja ineludivelmente contida na promessa de Cristo, porque, se não fosse assim, as suas palavras não teriam sentido, e Jesus não falava por enigmas indecifráveis. 

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A fé explicada - Padre Leo J. Trese. Ed.Quadrante, 14ª edição, 2014. 

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domingo, 15 de junho de 2025

Vaidade do mundo




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Deus abençoe por Maria! 


Santo Afonso Mª de Ligório 

Quid prodest homini si mundum universum lucretur, animae vero suae detrimentum patiatur? 

Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder sua alma? (Mt 16,26).


PONTO I 

Numa viagem marítima, um filósofo antigo, de nome Aristipo, naufragou com o navio em que ia, perdendo todos os bens. Pôde, entretanto, chegar salvo à terra, e os habitantes do país a que arribou, entre os quais Aristipo gozava de grande fama por seu saber, o indenizaram de tudo que havia perdido. Admirado, escreveu logo a seus amigos e patrícios incitando-os a que aproveitassem o seu exemplo, e que somente se premunissem das riquezas que nem com os naufrágios se podem perder. É isto exatamente o que nos recomendam nossos parentes e amigos que já chegaram à eternidade. Advertem-nos para que este mundo procuremos adquirir antes de tudo os bens que nem a morte nos faz perder. O dia da morte é chamado o dia da perda, porque nele perdemos as honras, as riquezas e os prazeres, enfim, todos os bens terrenos. Por esta razão, diz Santo Ambrósio, que não podemos chamar nossos a esses bens, porque os não podemos levar conosco para o outro mundo; somente as virtudes nos acompanham para a eternidade. 

"De que serve, pois - diz Jesus Cristo (Mt 16,26) - ganhar o mundo inteiro, se à hora da morte, perdendo a alma, tudo perde?"... Oh! quantos jovens, penetrados desta grande máxima, resolveram entrar na clausura! Quantos anacoretas conduziu ao deserto! A quantos mártires moveu a dar a vida por Cristo! Por meio desta máximas soube Santo Inácio de Loiola chamar para Deus inúmeras almas, entre elas a alma formosíssima de São Francisco Xavier, que, residindo em Paris, ali se ocupava em pensamentos mundanos. "Pensa, Francisco - lhe disse um dia o Santo, - pensa que o mundo é traidor, que promete e não cumpre; mas, ainda que cumprisse o que promete, jamais poderia satisfazer teu coração. E supondo que o satisfizesse, quanto tempo poderá durar essa felicidade? Mais que tua vida? E no fim dela, levarás tua dita para a eternidade? Existe, porventura, algum poderoso que tenha levado para o outro mundo uma moeda sequer ou um criado para seu serviço? Há algum rei que tenha levado consigo um pedaço de púrpura em sinal de dignidade?..." Movido por estas considerações, São Francisco Xavier renunciou ao mundo, seguiu a Santo Inácio de Loiola e se tornou um grande Santo.

Vaidades das vaidades (Ecl 1,2). Assim chamou Salomão aos bens do mundo, depois de ter experimentado, como ele mesmo confessou, todos os prazeres da terra (Ecl 2,10). Soror Margarida de Sant'Ana, carmelita descalça, filha do imperador Rodolfo II, dizia: "Para que servem os tronos da hora da morte?..." Coisa admirável! Tremem os Santos ao pensar em sua salvação eterna. Tremia o Padre Ségneri, que, todo assustado, perguntava a seu confessor: "Que me dizeis, Padre, salvar-me-ei?" Tremia Santo André Avelino quando, gemendo, exclamava: "Quem sabe se me salvarei!" Esse mesmo pensamento afligia a São Luís Bertram, e o fez levantar-se muitas noites do leito, exclamando: "Quem sabe se me condenarei?..." E contudo os pecadores vivem em estado de condenação, e dormem, e riem, e se divertem!


AFETOS E SÚPLICAS

Ah! Jesus, meu Redentor! De todo o coração vos agradeço por me terdes dado a conhecer minha insensatez e o mal que cometi afastando-me de vós, que por mim sacrificastes sangue e vida. Em verdade, não merecíeis da minha parte ser tratado como vos tratei. Se a morte me ferisse agora, que acharia em mim senão pecados e remorsos de consciência, que me tornariam bem angustiosos os últimos momentos? Confesso, meu Salvador, que fiz mal, que a mim mesmo me enganei, trocando o Bem Supremo pelos míseros prazeres deste mundo. 

Arrependo-me de todo o coração, e vos suplico, pelas dores que na cruz sofretes, me deis a mim tão grande dor de meus pecados, que me faça chorar durante o resto de minha vida as culpas que cometi. 

Perdoai-me, meu Jesus; prometo nunca mais vos ofender, e amar-vos sempre. Sei que não sou digno de vosso amor, porque o desprezei tantas vezes; mas também sei que amais a quem vos ama... (Pr 8,17). 

Amo-vos, Senhor; amai-me, pois, também. Não quero tornar a perder vossa amizade e graça. Renuncio a todos os prazeres e a todas as pompas deste mundo, contanto que me ameis... Ouvi-me, meu Deus, por amor de Jesus Cristo, que vos pede não me arrojeis de vosso coração. 

A vós me ofereço inteiramente e vos consagro minha vida, meus sentidos, minha alma, meu corpo, minha vontade e minha liberdade. 

Aceitai, Senhor, a oferta e não me desprezeis como mereço, por ter desprezado tantas vezes vosso amor... (Sl 50,13).

Virgem Santíssima, minha Mãe, rogai por mim a Jesus. Em vossa intercessão confio. 


PONTO II

É mister pesar os bens na balança de Deus e não na do mundo, que é falsa e enganadora (Os 12,71). Os bens do mundo são desprezíveis, não satisfazem e acabam depressa. "Meus dias passaram mais depressa que um correio; passaram como um navio..." (Jo 9,25-26). 

Passam e fogem velozes os breves dias desta vida; e que resta por fim dos prazeres terrenos? Passaram como navios. O navio não deixa vestígio de sua passagem (Sb 5,10). Perguntemos a todos esses ricos, sábios, príncipes, imperadores, que estão na eternidade, o que acham ali de suas passadas grandezas, pompas e delícias deste mundo. Todos responderão: Nada, nada. Ó homens, exclama Santo Agostinho, vós considerais somente os bens que possui aquele magnata; atentai também nas coisas que leva consigo ao sepulcro: um cadáver pestilento e uma mortalha que com ele se consumirá. Quando morre algum dos grandes, apenas se fala dele algum tempo; depois até sua memória se perde (Sl 9,7). E se caem no inferno, que farão e que dirão ali?... Chorarão, dizendo: Para que nos serviram o luxo e a riqueza? Tudo agora se passou como sombra (Sb 5,8-9) e nada nos resta senão penas, pranto e desespero sem fim. 

"Os filhos do século são mais prudentes em seus negócios que os filhos da luz" (Lc 18,8). Causa pasmo ver quão prudentes são os mundanos no que diz respeito às coisas da terra. Que passos não dão para adquirir honras ou fortuna! Quantos cuidados para conservar a saúde do corpo!... Escolhem e empregam os meios mais adequados, os médicos mais afamados, os melhores remédios, o clima mais saudável... e, entretanto, quão descuidados são para a alma!... E, no entanto, é certo que a saúde, as honrarias e as riquezas devem acabar-se um dia,  ao passo que a alma, imortal, não tem fim. "Observemos - disse Santo Agostinho - quanto sofre o homem pelas coisas que ama desordenadamente". Quanto não sofrem os vingativos, ladrões e licenciosos para atingir seus malvados desígnios? E para o bem da alma nada querem sofrer. Ó Deus! À luz do círio que na hora da morte se acende, naquele momento de grandes verdades, os mundanos reconhecem e confessam sua grande loucura. Então desejariam ter renunciado ao mundo e levado vida santa. 

Ó Pontífice Leão XI disse na hora da morte: "Em vez de ser Papa, melhor fora para mim ter sido porteiro no meu convento". Honório III, também Pontífice, exclamou ao morrer: "Melhor teria feito, se ficasse na cozinha de minha comunidade para lavar a louça". Filipe II, rei de Espanha, chamou seu filho na hora da morte, e, depois de afastar a roupa, lhe mostrou o peito roído de vermes, dizendo: "Vê, príncipe, como se morre, e como se acabam as grandezas do mundo". Depois exclamou: "Por que não fui eu, em vez de monarca, simples frade leigo de qualquer ordem!" Mandou depois que lhe pusessem ao pescoço uma cruz de madeira; e tendo disposto todas as coisas para sua morte, disse a seu herdeiro: Quis, meu filho, que estivesses presente a este ato, para que visses como, no fim da vida, o mundo trata ainda os próprios reis. Sua morte é igual à dos mais pobres da terra. Aquele que melhor tiver vivido, esse é que achará junto de Deus mais alto favor". E este mesmo filho, que foi depois Filipe III, ao morrer com apenas 43 anos de idade, disse: "Atendei, meus súditos, a que no meu necrológio somente se fale do espetáculo que tendes presente. Dizei que na morte de nada serve o título de rei, a não ser para sentir-se maior tormento de o haver sido... Oxalá, em vez de rei, tivesse vivido em um deserto servindo a Deus!... Ir-me-ia agora apresentar com mais confiança entre seu tribunal, e não correria tamanho risco de me condenar!..." De que valem, porém, tais desejos no transe da morte, senão para maior desespero e pena de quem não amou a Deus durante a vida? Dizia, por isto, Santa Teresa: "Não se deve fazer caso das coisas que acabam com a vida. A verdadeira vida consiste em viver de modo que nada se tenha a recear da morte..." Portanto, se desejamos compreender o que valem os bens da terra, consideremo-los do leito da morte e digamos logo: Aquelas riquezas, estas honras, estes prazeres, se acabarão um dia. É necessário, assim, que procuremos santificar-nos e enriquecer-nos somente dos bens únicos que hão de acompanhar-nos sempre e que constituirão nossa dita por toda a eternidade.


AFETOS E SÚPLICAS

Ah, meu Redentor!... Sofrestes tantos sacrifícios e tantas ignomínias por meu amor, e eu amei tanto os prazeres e as vaidades do mundo, que por sua causa fui levado a calcar aos pés inúmeras vezes a vossa graça. Mas, ainda que vos desprezasse, não deixáveis de me procurar; por isso, ó meu Jesus, não posso temer que me abandonareis agora que vos procuro e amo de todo o coração, e me dói mais de vos ter ofendido que se tivesse sofrido qualquer outro mal. Ó Deus de minha alma, não quero tornar a ofender-vos nem nas coisas mínimas. 

Fazei-me conhecer aquilo que vos desagrada e que não o pratique por nada deste mundo. Fazei que saiba o que vos é agradável e o ponha em execução. Quero amar-vos verdadeiramente; e por vós, Senhor, aceitarei gostosamente todos os sofrimentos e todas as cruzes que me vierem. Dai-me a resignação de que necessito. Queimai, cortai... Castigai-me nesta vida, a fim de que na outra possa amar-vos eternamente. 

Maria, minha Mãe, a vós me recomendo; não deixeis de rogar a Jesus por mim. 


PONTO III

"O tempo é breve... os que se servem do mundo, sejam como se dele não se servissem, porque a figura deste mundo passa..." (1Cor 7,31). Que é com efeito nossa vida temporal senão uma cena que passa e se acaba logo? "Passa a figura deste mundo", quer dizer, a aparência, a cena de comédia. "O mundo é como um teatro - diz Cornélio a Lápide; - desaparece uma geração e outra lhe sucede. Quem representou o papel de rei, não levará consigo a púrpura... dize-me, ó cidade, ó casa, quantos donos tivestes?" Quando acaba a peça, o rei deixa de ser rei, o senhor deixa de ser senhor. Possuis agora essa quinta ou palácio; mas virá a morte e outros passarão a ser donos de tudo. 

A hora da morte faz esquecer todas as grandezas, honras e vaidades do mundo (Ecl 11,29). Casimiro, rei da Polônia, morreu de repente, quando, achando-se à mesa com grandes do reino, levava aos lábios a taça para beber. Rapidamente acabou para ele a cena do mundo... O imperador Celso foi assassinado oito dias depois de ter sido elevado ao trono, e assim acabou para Celso a peça da vida. Ladislau, rei da Boêmia, jovem de dezoito anos, esperava a sua esposa, filha do rei da França, e lhe preparava grandes festejos, quando certa manhã o acometeu dor veementíssima da qual caiu fuminando. Expediram-se imediatamente correios, advertindo a esposa que voltasse para a França, porque para Ladislau o drama do mundo já tinha acabado... Este pensamento da vaidade do mundo fez santo a Francisco de Borja que (como em outro lugar dissemos), ao ver o cadáver da imperatriz Isabel, falecida no meio das grandezas e na flor da idade, resolveu entregar-se inteiramente a Deus, dizendo: "Assim acabam as grandezas e coroas do mundo?... Não quero servir a senhor que me possa ser roubado pela morte". 

Procuremos, pois, viver de maneira que à hora de nossa morte não se nos possa dizer o que se disse ao néscio mencionado no Evangelho: "Insensato, nesta noite hão de exigir de ti a entrega de tua alma; e as coisas que juntastes, para quem serão? (Lc 12,20).  E logo acrescenta São Lucas: Assim é que sucede a quem enriquece para si, e não é rico aos olhos de Deus (Lc 12,21). Mais adiante se diz: Procurai entesourar para o céu, onde não chegam os ladrões nem rói a traça" (Mt 6,20); ou seja; procurai enriquecer, não com os bens do mundo, senão de Deus, com virtudes e merecimentos que estarão convosco eternamente no céu. Façamos, pois, todo o esforço, para adquirir o grande tesouro do amor divino. "Que possui o rico, se não tem caridade? E se o pobre tem caridade, que não possui?" - diz Santo Agostinho. - Quem possui todas as riquezas, mas não possui a Deus, é o mais pobre do mundo. Mas o pobre que possui a Deus possui tudo... E quem é que possui a Deus? Aquele que o ama. "Quem permanece na caridade, em Deus permanece, e Deus nele" (Mt 4,16).


AFETOS E SÚPLICAS

Meu Deus, não quero que o demônio volte a reinar na minha alma, mas que vós sejais meu único dono e senhor... Quero renunciar a tudo para alcançar vossa graça, que prefiro a mil coroas e mil reinos. E a quem deveria amar senão a vós, amabilidade infinita, bem infinito, beleza, bondade, amor infinitos? Na vida passada, enjeitei-vos pelas criaturas e isto será sempre para mim profunda dor que me atravessará o coração por vos ter ofendido, que tanto me tendes amado. Mas já que me haveis atraído com vossa graça, espero que não hei de ver-me privado novamente de vosso amor. Tomai, ó meu Amor, toda a minha vontade e tudo o que me pertence e fazei de mim o que vos aprouver. Peço-vos perdão por minhas culpas e desordens passadas. Nunca mais me queixarei das disposições da vossa providência, porque sei que todas elas são santas e ordenadas para meu bem. Fazei, pois, meu Deus, o que quiserdes, e eu vos prometo aceitar com alegria, e dar-vos graças... 

Fazei que vos ame, e nada mais pedirei... Basta de riquezas, basta de honras, basta de mundo. A meu Deus, só a meu Deus quero.

E vós, bem-aventurada Virgem Maria, modelo de amor de Deus, alcançai-me que, ao menos no resto de minha vida, vos acompanhe nesse amor. É em vós, Senhora, que confio. 

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Santo Afonso Mª de Ligório - Preparação para a morte