sábado, 1 de fevereiro de 2025

São Paulo Apóstolo





 Sobre o caminho de Damasco 

Alphonse Eile Tricot, Ed. MBC

Comprehensus sum a Christo Jesu (Fl 3,12)


Saulo saíra de Jerusalém pela porta de Benjamin, conhecida também pelo nome de porta dos Peixes, que se abria ao norte e por onde se iniciavam as estradas para Samaria, Galileia e Síria. Ele percorria o caminho acompanhado de um punhado de homens armados que recebiam um ordenado do Sinédrio, da estirpe daqueles que haviam procedido à prisão de Jesus. A pequena tropa viajava a pé. O caminho era longo da Cidade Santa a Damasco: aproximadamente 200 quilômetros. Como a jornada média do pedestre era de aproximadamente 30 quilômetros, era preciso prever seis ou sete etapas, cujo comprimento variava segundo a distância que separava as estalagens onde se parava para o pernoite. 

Saulo e seus companheiros chegaram à Samaria, desceram a Citópolis, cruzaram a Jordânia um pouco abaixo do Lago de Tiberíades e entraram no planalto de Horan. Era a rota mais frequentada para ir a Jerusalém a Damasco; era cruzada por caravanas de mercadores gregos e sírios, nômades em deslocamento, artesãos ambulantes, funcionários em missão, correios oficiais, peregrinos de toda condição e dos mais variados cultos. Nesses tempos antigos a circulação era muito mais intensa do que hoje comumente se imagina, particularmente nas velhas terras do Oriente, cujas populações sempre tiveram algo da instabilidade das areias do deserto.

Ao sétimo ou oitavo dia de caminhada - era necessário parar no dia do Sábado -, Saulo se encontrava na grande planície de Damasco, cujas muralhas, emergindo dos jardins circundantes, perfilavam-se sobre o fundo branco da falésia calcária que, ao norte, domina a cidade. Ele ia adentrar o oásis de águas correntes e doces sombras que, sobre três lado da cidade, se estende como um rico carpete de verduras. "Paulo tinha atrás de si o domo majestoso do Hermon, com seus sulcos de neve que lhe recordavam a imagem de um idoso; à sua direita, o Horan, as duas pequenas cadeias que comprimem o curso inferior do rio Pharphar e as colinas da região dos lagos; à sua esquerda, os últimos contrafortes do Antilíbano, indo juntar-se ao Hermon. A impressão desses campos ricamente cultivados, de pomares deliciosos, separados uns dos outros por canais e carregados dos mais belos frutos, é de calma e felicidade. Ao sair das ásperas e quentes regiões de Gaulanítide e da Itureia, a alegria de encontrar os trabalhos do homem e as bênçãos do céu enche a alma. Desde a mais remota antiguidade até hoje, toda essa zona que rodeia Damasco de frescor e bem-estar só teve um nome, só inspirou um sonho, que é o do paraíso de Deus". Foi nesse momento, e nesse quadro geral, que se produziu o evento misterioso cujas consequências foram tão grandes para a expansão do Cristianismo e para a fé do mundo. 

O livro dos Atos nos conservou três relatos distintos, dos quais um é diretamente de São Lucas; os demais figuram nos discursos em que Paulo expõe a gênese de sua vocação ao apostolado; em um, diante dos judeus de Jerusalém, no outro, diante do rei Agripa. 

Era meio-dia, hora em que o sol projetava seus fogos mais cintilantes e quentes, quando subitamente Saulo e os que o seguiam foram envolvidos por uma luz espantosa. O chefe da pequena tropa caiu com o rosto em terra, assim como vários de seus companheiros, e os demais permaneceram de pé, como que imobilizados de Paulo foi o único a distinguir as palavras pronunciadas e a compreender-lhes o sentido; ademais, só ele percebeu claramente a aparição e a presença daquele que lhe dirigia a palavra. A voz dizia em língua hebraica: "Saulo, Saulo, por que me persegues? Dura coisa te é recalcitrar contra os aguilhões". "Quem és tu, Senhor?", perguntou Saulo. A voz respondeu: "Sou Jesus, a quem persegues". Saulo continou: "Que farei, Senhor?". A voz ainda continou a se fazer ouvir: "Levanta-te e vai a Damasco, e lá te será dito tudo o que deves fazer". Em seguida, a voz se calou e a luz se esvaneceu, e Saulo se levantou da terra.

Seus companheiros também se recompuseram e se precipitaram contra ele. Mas eis que seu chefe ergue os braços e agita as mãos como se fosse um cego: seus olhos não veem mais. Então eles o guiam como a um elefante, passo a passo, levando-o para Damasco. 

Quando entraram na cidade, informaram-se do local preciso onde habitava Judas, o judeu em cuja casa deviam se hospedar e para quem, sem dúvida, uma carta de apresentação fora outorgada a Saulo. Esse Judas tinha sua casa na Rua Direita, a artéria principal da cidade, que a atravessava de um extremo ao outro. Chegando à casa de seu anfitrião, Paulo permaneceu atordoado durante três dias sofrendo de remorsos e angústias, e não podendo receber nenhum alimento. Durante esse tempo, o chefe da comunidade cristã, chamado Ananias, estava milagrosamente informado do que ocorrera a Saulo e recebia do alto a ordem de ir encontrá-lo com uma tripla missão: curá-lo de sua cegueira, conferir-lhe o batismo de água e espírito e comunicar-lhe os desígnios de Deus para ele. Ananias foi, assim, à casa de Judas e inteirou-se escrupulosamente do papel que lhe havia sido atribuído. Doravante, Saulo de Tarso, perseguidor de nazarenos, era discípulo de Jesus. 

Em razão da importância do fato contado, as três narrativas paralelas dos Atos passaram na peneira da crítica. Foram reveladas divergências sobre quatro ou cinco pontos. Em At 9,7 os companheiros de Saulo ouviram o som da voz, ao passo que em At 22,9 ocorreu o contrário. Em At 9,7 eles não viram ninguém, ao passo que em 22,9 e 26,13 viram a luz espantosa. Em 9,7, eles permaneceram de pé, congelados, enquanto que em 26,14, foram derrubados na terra. Em At 26,14 Jesus diz a Paulo: "Dura coisa te é recalcitrar contra os aguilhões", afirmação que não se encontra nos outros dois relatos. Enfim, em 22,14 o autor põe na boca de Ananias as mesmas palavras que 26,16 coloca nos lábios do Salvador. 

As diferenças não podem ser negadas, mas no julgamento da maioria dos críticos trata-se de detalhes extremamente secundários e o valor histórico do documento não pode se reduzir por causa delas. Essas divergências, com efeito, não são devidas nem a uma preocupação dogmática, nem a uma preocupação de ordem literária. "Elas são da mesma natureza que essas diferenças que se constatam sempre entre as repetições mais fiéis de um mesmo relato. Sua razão está na sua própria insignificância. Elas não podem, de forma alguma, prejudicar a realidade do fato; elas se produzem sobre alguns pontos extremos na circunferência mais externa da narração; não incidem sobre as circunstâncias que acompanharam o milagre, mas sobre as impressões subjetivas que os companheiros de Paulo receberam dessas circunstâncias". Uma crítica imparcial verá nisso mais uma marca de veracidade da parte do escritor, pois um autor tão cauteloso quanto São Lucas teria tido atenção em fazer desaparecerem essas aparentes contradições se tivesse suspeitado a menor ficção em algum detalhe do relato que ele registrava. 

Pode-se dizem sem exagero que a conversão de Paulo ocupa o lugar seguinte ao da ressureição de Jesus na classificação dos fatos miraculosos que decidiram a fortuna do Cristianismo, pois que desses dois eventos depende, em larga medida, o valor dos motivos de credibilidade da fé tradicional. Não poderia, pois, ser surpresa que esses dois pontos centrais da apologética cristã tenham sido atacados com obstinação pelos adversários do sobrenatural e defendidos com não menos ardor pelos crentes. Todas as discussões sobre a mudança brusca e definitiva de Saulo, que em todas as partes provaram tanto erudição quanto engenhosidade, tiveram o resultado indubitável de projetar uma luz maior sobre as circunstância e as condições exteriores desse fato misterioso, mas não trouxeram uma solução nova ao problema, que é, antes de tudo, de ordem espiritual, e cujos dados escapam, quanto ao essencial, ao controle da crítica experimental. Em definitivo, tudo se reduz a discutir o valor do testemunho de Paulo, de cuja autenticidade e sinceridade ninguém suspeita. O autor dos Atos não fez mais que reproduzir conscientemente as declarações daquele de quem tinha sido companheiro de viagem e confidente. Ademais, a natureza do Apóstolo era muito correta e leal para que se pudesse suspeitar que tivesse usado ficção ao apresentar como real um fato que, segundo ele, o arrancou do judaísmo, ligou-o à pessoa de Jesus e, por isso, condicionou sua vida inteira. É preciso, assim, interrogar os textos, analisar os sentimentos de Saulo, o fariseu, e reconstituir seu estado de alma no momento em que se aproximava de Damasco, para poder responder à questão: foi ele vítima inconsciente de uma ilusão? 

Para aqueles que, por princípio, negam o sobrenatural e acham que Deus, se é que Ele existe, jamais manifesta sua ação por uma intervenção positiva no domínio moral ou no mundo material, a questão é encontrar uma interpretação da conversão de Paulo que não contradiga o axioma reputado como evidente. Muitos se aplicam a buscar essa interpretação há muito tempo, e todas as diversas hipóteses apresentadas sob a forma de explicação psicológica levam a fazer de Saulo um visionário, um alucinado. Conforme nos foi relatado, seu espírito estava, havia algum tempo, inquieto. O espetáculo de Estêvão morrendo e implorando o perdão de Deus aos seus verdugos o havia comovido e perturbado. Ele fora atingido pela doçura e pela calma dos nazarenos perseguidos. O que ele ouvira da doutrina de Jesus lhe parecera, em certos pontos, de uma beleza quase divina. Estava assombrado pela lembrança do oráculo de Isaías sobre os sofrimentos do Servidor de Javé, interpretado pelos cristãos como a imagem profética da morte de seu Mestre. Duvidando da eficácia da Lei mosaica em conferir aos homens a plena santidade, ele se perguntava onde encontrar socorro à sua própria fraqueza. De natureza facilmente excitável, de temperamento nervoso e predisposto ao êxtase, estava nas melhores condições para que uma crise de alma violenta determinasse nele um abalo físico e o levasse a uma mudança radical. Ora, essa crise já existia para ele, e atingiu seu auge no momento em que se aproximava no fim de sua viagem. "Cada passo em direção a Damasco despertava nele perplexidades estrondosas. O odioso papel de verdugo que ia desempenhar se lhe tornava insuportável. As casas que ele começa a entrever são talvez as de suas vítimas. Esse pensamento o obceca, torna seu passo mais lento; ele não gostaria de avançar; imagina-se suportando a pressão de um aguilhão. O cansaço da rota, somado a essa preocupação, o esmaga. Nessas marchas prolongadas, as últimas horas são sempre as mais perigosas. Todas as causas debilitantes dos dias anteriores se acumulam; as forças nervosas se acalmam; uma reação se opera. Talvez, também, a brusca passagem da planície devorada pelo sol para as frescas sombras dos jardins determinará um acesso na organização doentia e fortemente abalada do viajante fanático. As febres perniciosas, acompanhadas de delírios, são, nessas paragens, súbitas. Quando o acesso termina, tem-se a impressão de uma profunda, cruzada por raios, onde se viram nuvens se desenhando sobre um fundo negro. O que se sabe seguramente é que um golpe terrível retirará num instante de Paulo aquilo que lhe restava de consciência distinta e o derrubará à terra, privado de sentimento. É impossível dizer se algum fato exterior trouxe a crise que deu ao Cristianismo o seu mais ardente apóstolo. Mas não é inverossímil que uma tempestade tenha rebentado de repente. Os flancos do Hermon são o ponto de formação de trovões cuja violência nada iguala. Para os jdueus, em particular, o trovão sempre era a voz de Deus. Paulo estava sob o golpe da mais viva excitação. Era natural que prestasse à voz da tempestade o que ele tinha em seu próprio coração. Em meio às alucinações pelas quais todos os seus sentidos estavam tomados, o que terá ele visto e ouvido? Ele viu a figura que o perseguia havia vários dias; viu o fantasma a respeito de quem corriam tantos relatos. As maturezas impetuosas passam radicalmente de um extremo ao outro. Os homens reflexivos não mudam; eles se trannsformam. Os homens ardentes, ao contrário, mudam e não se transformam. Em alguns segundos, passaram na alma de Paulo todos os seus pensamentos mais profundos. Ele foi tocado e ferido, virado do avesso completamente. Mas, em suma, ele nada mais fizera que mudar de fanatismo".

Essa explicação, por brilhante e engenhosa que possa ser, denota em seu autor mais imaginação do que verdadeiro senso histórico, pois se encontra em desacordo com os feitos e em contradição com as declarações do Apóstolo. Por perfeita que seja a virtuosidade do artista, não passa de um malabarismo; quem lê à espera de um historiador encontra um prestidigitador. Em crítica positiva, é preciso, antes de tudo, levar em conta os fatos, pois nada poderia modificá-los ou fazer que eles não existam. Ora, constata-se que, até o momento do seu encontro com o Cristo em seu caminho de Damasco, Paulo vivia como fariseu, perseguidor de cristãos, e que, precisamente a partir desse instante, foi um discípulo apaixonado de Jesus. Ademais, o autor nada sabe de um trabalho interior que o tenha enviado lentamente em direção ao Evangelho, nem de uma crise de alma que o tenha levado a Cristo por remorso e inquietude, nem de um esfacelamento físico tendo provocado nele uma superexcitação da sensibilidade. "A lembrança que ele guardou de sua conversão durante toda a vida é a de um evento fulminante, que o surpreendeu em pleno farisaísmo e o jogou, a seu contragosto, em uma via nova. Ele foi conquistado e domado arduamente. É um rebelde vencido que Deus arrasta em triunfo através dos povos". Quais argumentos apresentar que sejam fortes o bastante para prevalecer contra um testemunho tão formal?

De outro lado, que direito se tem de duvidar das afirmações reiteradas de Paulo sobre a objetividade e a realidade da visão que determinou sua conversão? Na epístola aos Gálatas, ele atesta que uma manifestação pessoal de Jesus está no ponto de partida de sua vocação ao apostolado e indica expressamente o tempo e o local. Na primeira epístola aos Coríntios ele acentua a realidade externa dessa aparição, da qual dependem seu título e sua qualidade de apóstolo: "Não sou eu apóstolo, não vi o Senhor Jesus?". Ora, se o verbo "ver" não é compreendido aqui em sua acepção mais material, a argumentação de Paulo perde toda a sua força. Na mesma epístola, lembrando as diversas manifestações do Cristo ressuscitado, ele classifica num mesmo plano aquela da qual foi o favorecido e aquelas das quais os Doze foram testemunhas; "Por último, ele me apareceu a mim também, como a um abortivo".  Seria possível marcar melhor a objetividade da aparição sobre o caminho de Damasco e traduzir melhor o caráter súbito e violento da intervenção divina que o tirara bruscamente, e como que precocemente, do seio do judaísmo? 

Enfim, mesmo que Paulo tenha sido predisposto por sua natureza e visões e alucinações - o que não é ponto pacífico e que se alinharia muito mal a esse espírito positivo e refletido, com essa fria vontade, que se revelam em todos os atos de sua apostólica - nada provaria que ele não viu realmente a figura humana do Cristo nesse instante em que se lhe fixou a orientação de sua vida, pois uma visão ou uma alucinação não bastam para explicar tal reviravolta e transformação. A visão imaginativa não provoca, por si só, a conversão, não mais que o desejo dá a luz, por si mesmo, a realidade. Paulo foi favorecido pela sequência de visões extáticas; ele o confidenciou, mas da maneira mais discreta, como se lhe repugnasse desvelar esse lado íntimo de suas relações com Deus, pois que nas suas pregações ele gostava, ao contrário, de falar das causas e das circunstâncias de sua conversão. Ademais, ele evitava classificar entre essas visões extáticas a aparição sobre o caminho de Damasco, como se tivesse tido o sentimento de uma diferença de natureza muito delineada entre esses dois gêneros de graças.

Como causa possível da conversão de Saulo não resta nenhuma outra além daquela que o próprio explica: a intervenção pessoal de Jesus ressuscitado. No momento em que foi atirado à terra, não longe da cidade aonde se dirigia para perseguir os discípulos do nazareno, ocorreu um contato real entre o Cristo e ele. Sabemos quão profundos e misteriosos são às vezes os efeitos de uma simples aproximação de dois seres humanos nas relações ordinárias da vida. Frequentemente, basta um simples olhar ou uma simples entonação de voz para revirar um coração e uma alma. As impressões são, frequentemente, muito diferentes segundo se conhece uma pessoa por ouvir falar ou por relações pessoais, e, em muitos casos, o contato direto modifica estranhamente os sentimentos de simpatia e de hostilidade anteriores ao primeiro encontro. Assim foi para Paulo nesse primeiro momento, inesquecível para ele, em que sentiu seu ser íntimo totalmente transformado. 

Sem dúvida, o mistério permanece, mas essa constatação não diminui em nada o valor histórico do fato. Todo espírito livre e sem preconceitos concordará, após um exame minucioso e objetivo dos textos, que as diversas explicações propostas por aqueles que negam a possibilidade da intervenção de Deus no mundo apenas fazem deslocar o milagre e colocá-lo em outro ponto. O enigma, com efeito, subsiste inteiro, mesmo na hipótese - aliás, inadmissível - de uma visão produzida por uma crise interior, ou de uma alucinação causada por uma comoção física, pois, se a imaginação atormentada e superexcitada pode gerar fantasmas, os fantasmas mais consistentes e mais tenazes jamais poderiam criar a vida.


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São Paulo, O Apóstolo dos gentios -  A. Tricot

Editora Minha Biblioteca Católica, 2018.






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