quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Fuga do pecado mortal - Primeiro grau de piedade



133. O pecado. - O pecado mortal é o domínio da satisfação humana ao ponto de infrigir de modo grave e formal um preceito divino. É a completa e radical perturbação da ordem essencial da minha criação; é a destruição da vida de Deus em mim; é a desordem em toda a sua horrível perversidade. Coloco-me acima de Deus e calco aos pés a sua glória, imolando-a ao meu prazer. Todos aqueles que pecam estão privados da glória de Deus (Rm 3,23).
É preciso chorar esse mal com aquelas lágrimas que a Escritura chama tão apropriadamente "sem consolo" (Tob 10,4). Assim chorava Jeremias: "Considerai, pois, se jamais aconteceu coisa semelhante! Acaso um povo troca de deuses? - e esses nem são deuses! Mas meu povo trocou a mim, seu Deus e sua glória, por ídolos que nada valem! Espantai-vos disso, ó Céus, horrorizai-vos e abalai-vos profundamente - oráculo do Senhor" (Jr 2,10-12).

134. A recuperação. - Os primeiros esforços da piedade se dirigem contra essa abominação, e sua primeira honra será triunfar dela. Não importa o quanto custe, ela se empenhará em reduzir a satisfação à sua ordem de submissão e de serviço, sem permitir-lhe nenhuma usurpação de seu percurso estará concluída quando ela tiver elevado e fortificado suficientemente o espírito, o coração e os sentidos para que a glória divina seja considerada, amada e buscada preferenciamente a qualquer prazer desordenado capaz de ofender mortalmente a Deus. 
Se o prazer não é, em si mesmo ou em suas circunstâncias, proibido pela lei de Deus, e se ele pode conviver com a glória divina, eu me contentarei com situá-lo em seu lugar e restituir-lhe seu papel auxiliar. Mas, se um preceito exige o seu sacrifício, eu o sacrificarei sem nenhuma chance de conciliação, ainda que isso me custe a vida. Esse é o preço da primazia dos direitos de Deus sobre a existência: nenhuma satisfação, nem mesmo a da vida, pode prevalecer sobre eles. 

135. O hábito. - Quando me encontro na disposição de reorientar e de sacrificar, se necessário, qualquer satisfação, de preferência a cometer voluntariamente qualquer falta grave; quando, nessas circunstâncias, consigo agir com prontidão e facilidade; quando essa disposição torna-se solidamente estabelecida, então cheguei ao primeiro grau de piedade. 
Mas ao alcance dessa disposição só estará completo quando ela tiver conquistado todas as minhas potencialidades, sendo capaz de governá-las e defendê-las de forma suficientemente poderosa para que nenhuma criatura, nenhuma circunstância consiga fazer penetrar o inimigo, a menos que ocorra algum imprevisto. O pecado mortal já não pode ter lugar, nem no espírito, nem no corpo (Rm 6,12). "Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu entendimento, com todo o teu coração, com toda a tua alma e todas as tuas forças".
Se eu disse: "a menos que ocorra algum imprevisto", é porque a pobre fraqueza humana faz com que essas misérias sejam sempre possíveis, mesmo com as melhores e mais fortes disposições. Mas esses acidentes passageiros não impedem que o hábito adquirido subsista, nem fazem a alma decair do estado a que chegou. Ao falar em estado de alma ou em grau de virtude, nunca devemos ter em conta os simples sobressaltos das faltas resultantes da pura fragilidade. 

136. Atos e hábito. - Esse grau, como os seguintes, não se caracteriza pelo maior ou menor número de atos praticados, mas pela unidade e perfeição atingidas pela disposição. Com efeito, a alma só pode atingir um estado definido na medida em que conquista a unidade de sua disposição característica. Bem sei que essa disposição se adquire pela repetição dos atos; mas a repetição dos atos, embora contribua poderosamente para formar o hábito, não é o hábito em si. Este tem sua raiz natural nas tendências da alma, e sua raiz sobrenatural nas graças infusas. E não se desenvolve apenas pelo meu trabalho humano, mas sobretudo pelo trabalho de Deus em mim, como veremos na segunda Parte. Portanto, na elaboração da minha vida concorrem, em primeiro lugar, as tendências naturais; depois, as graças sobrenaturais; em seguida, a ação providencial, e por fim a minha ação pessoal. A piedade é o resultado final desses quatro fatores. (...)

138. Altura desse primeiro grau. - Trata-se já de um grau de piedade, uma vez que é pelo conhecimento, amor e busca de Deus que se evita o pecado. Onde essas três coisas estão unidas: conhecimento, amor e busca de Deus, a piedade sempre está presente. Por mais débeis que sejam os inícios, não deixam de fazer parte da grande disposição que é o resumo e a unidade dinâmica da vida cristã. 
Além disso, não é tarefa de um dia chegar, não simplesmente a evitar de fato o pecado mortal e sentir-me disposto a evitá-lo a todo custo, mas a cultivar, fundamentar e forticar essa disposição, de forma a ter facilidade e prontidão para os sacrifícios realmente necessários, mesmo o da própria vida, para evitar o pecado mortal, e de forma que essa facilidade e prontidão se estabeleçam nos sentidos, no coração, no espírito, em todo o meu ser. 
Terei chegado a esse ponto? Não me vejo, às vezes, claudicando entre dois partidos? Terei compreendido até que ponto o Senhor é meu Deus e de que forma devo segui-lo? (1Rs, 18,21). Em minha luta contra o pecado, já resisti até o sangue? (Hb 12,4). Poderei dizer, ó meu Deus, que já galguei ao menos o primeiro degrau? Estou seguro disso? Meu espírito, meu coração, meus sentidos... terão eles facilidade e prontidão para rejeitar o pecado, a simples ideia do pecado? Já vivi no pecado... tê-lo-ei eliminado por completo? Já estive mergulhado no atoleiro... estarei realmente liberto e completamente limpo? Que sou eu, meu Deus? De que me glorifico, eu que não passo de um amontoado de terra e cinza? (Eclo 10,9). Que piedade é a minha, se ainda não cheguei ao primeiro degrau?!...


Fonte: Livro A vida interior- de François de Sales Pollien, Joseph Tissot











quinta-feira, 22 de outubro de 2015

A vida




(...) O que é viver?  - É ter em si uma atividade própria, proveniente de um príncípio íntimo, que tem o poder de se desenvolver em sua ação e de possuir o seu desenvolvimento 6.
Há dois tipos de vida, a perfeita e a imperfeita. A vida perfeita é a do ser que se possui e se basta, na plenitude de um movimento que nada tem a desenvolver. Essa plenitude absoluta de vida somente se encontra em Deus.
O ato divino, pelo qual Deus se possui, se conhece e se ama na Trindade de suas Pessoas, é um ato infinito; e esse ato é a vida de Deus em si mesmo.
No céu, terei a plenitude de vida  da qual o meu ser se tiver tornado capaz; e possuirei, sem fim e sem mudança, em um ato pleno que mobilizará toda a minha força vital, o desenvolvimento que tiver atingido. Esta será, em minha medida própria e acabada, a vida perfeita. 
Aqui na terra, a vida é imperfeita. - E o que é a vida imperfeita? É o movimento de aquisição, pelo qual um ser se desenvolve. O princípio de atividade interna vai crescendo e se dilatando em sua ação. É uma vida que se faz, que se constrói, que se organiza, e cujo sinal característico é, portanto, a aquisição e o crescimento. O crescimento do ser imperfeito é a manifestação essencial de sua vida. E essa é a condição da minha vida presente. 

20. Natural e sobrenatural. - Sou feito para viver: que quer dizer isto? Quer dizer que sou chamado a desenvolver em mim os frutos da santidade neste mundo, a fim de possuir no céu, como desfecho e para sempre, a vida eterna (Rm 6,22). A vida deste mundo é um crescimento, a vida do céu é uma posse, e ambas constituem a atividade própria do meu ser.
Tenho uma alma e um corpo; a alma vive por si mesma, com uma vida recebida de Deus; e o corpo vive por meio da alma que o anima. A alma pode agir; e ela age, por meio das faculdades que possui. O corpo pode agir; e ele age, por meio das capacidades que lhe são próprias, e que são animadas e regidas pela alma. Esta possui toda uma organização de faculdades cognitivas, volitivas e ativas; e aquele possui uma série de orgãos que se conectam às faculdades da alma e agem por meio delas. Na ação e no desenvolvimento dessas faculdades e dessas potências consiste a minha vida natural. 
Tenho também, pela graça de Deus, uma outra vida; isto é, uma outra capacidade de agir e crescer; não mais por mim, mas por Deus. É a vida sobrenatural onde Deus, unindo-se à minha natureza por um liame inefável, eleva-me acima de mim mesmo, e concede às minhas faculdades o poder de realizar atos divinos. Ele mesmo se torna, então, a vida de minha vida, a alma de minha alma: mistério de amor!
E essa vida é a vida sobrenatural, quer dizer, a vida eterna 7; pois é o desenvolvimento, aqui na terra, da vida que possuirei no céu.

21. Crescei. - Sou feito para viver e somente para viver. - Que farei no céu? - Viverei, sem fim, no ato único do louvor eterno, fonte eterna de bem-aventurança. - Que devo fazer aqui na terra? - Devo viver, isto é, desenvolver-me, uma vez que a vida imperfeita, a única que tenho agora, consiste em desenvolver-se. "Crescei e multiplicai-vos", disse o Senhor ao homem, dando-lhe o poder de desenvolver e de comunicar a vida (Gn 1,28). Essa foi a primeira palavra que o Criador lhe dirigiu; em sua plenitude e sua majestade, ela contém e exprime a lei total da vida. Todas as minhas obrigações, sem nenhuma exceção, encontram sua base e sua explicação nessa obrigação primeira, na qual se encontra o sentido e a medida de todos os meus deveres para com Deus, para com as demais criaturas e para comigo mesmo. É preciso crescer, é preciso desenvolver a vida física, moral, intelectual. Essa é a razão dos cuidados e precauções a tomar na manutenção do corpo, na educação do coração e na instrução do espírito. Cada um é responsável pelo trabalho de aquisição e de conservação do pleno desenvolvimento de suas faculdades. 

22. Vida cristã. - E esse desenvolvimento natural deve estar ordenado para Deus. As faculdades aperfeiçoadas devem servir de instrumentos para a vida sobrenatural. "Não entregueis vossos membros ao pecado, como armas de injustiça", diz São Paulo; "pelo contrário, oferecei-vos a Deus para, superando vossa morte, ter a sua vida, e oferecei vossos membros como armas de justiça a serviço de Deus" (Rm 6,13).
A vida sobrenatural é, pois, normalmente chamada a elevar-se pelo próprio crescimento da vida natural; sou obrigado a fazer o que depende de minha liberdade, para harmonizar a natureza com a graça. O privilégio - revelado pelo grande apóstolo - de expansão do divino em meio e acima das desagregações do que é terrestre 8, manifesta misericordiosamente seus efeitos nas leis de punição às quais Deus me submeteu; mas não se estende às falsificações que eu introduzir.

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(6) Cf. São Tomás, De Potentia, § 10, a. I c.
(7) "A graça de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor" (Rm 6,23).
(8) Ver nº4.


Trecho retirado do livro: A vida interior - simplificada e reconduzida ao seu fundamento,
François de Sales Pollien, Joseph Tissot.