Fonte: Livro Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem
Autor: São Luís Maria Grignion de Montfort; Missionário Apostólico, Fundador da Congregação dos Missionários da Companhia de Maria e da Congregação das Filhas da Sabedoria.
44° edição- Editora Vozes- Petrópolis, 2014.
CAPÍTULO IV
Da perfeita devoção à Santíssima Virgem ou a perfeita consagração a Jesus Cristo
120. A mais perfeita devoção é aquela pela qual nos conformamos, unimos e consagramos mais perfeitamente a Jesus Cristo, pois toda a nossa perfeição consiste em sermos conformados, unidos e consagrados a Ele. Ora, pois que Maria é, de todas as criaturas, a mais conforme a Jesus Cristo, segue daí que, de todas as devoções, a que mais consagra e conforma uma alma a Nosso Senhor é a devoção à Santíssima Virgem, sua santa Mãe, e que, quanto mais uma alma se consagrar a Maria, mais consagrada estará a Jesus Cristo.
Eis por que a perfeita consagração a Jesus Cristo nada mais é que uma perfeita e inteira consagração à Santíssima Virgem, e nisto consiste a devoção que eu ensino; ou, por outra, uma perfeita renovação dos votos e promessas do santo batismo.
ARTIGO I
Uma perfeita e inteira consagração de si mesmo à Santíssima Virgem
121. Esta devoção consiste, portanto, em entregar-se inteiramente à Santíssima Virgem, a fim de, por ela, pertencer inteiramente a Jesus Cristo¹. É preciso dar-lhe: 1°) nosso corpo com todos os seus membros e sentidos; 2°) nossa alma com todas as suas potências; 3°) nossos bens exteriores, que chamamos de fortuna, presentes e futuros; 4°) nossos bens interiores e espirituais, que são nossos méritos, nossas virtudes e nossas boas obras passadas, presentes e futuras. Numa palavra, tudo que temos na ordem da natureza e na ordem da graça, e tudo que, no porvir, poderemos ter na ordem da natureza, da graça e da glória, e isto sem nenhuma reserva, sem a reserva sequer de um real, de um cabelo, da menos boa ação, para toda a eternidade, sem pretender nem esperar a mínima recompensa de sua oferenda e de seu serviço, a não ser a honra de pertencer a Jesus Cristo por ela e nela, mesmo que esta amável Senhora não fosse, como é sempre, a mais liberal e reconhecida das criaturas.
122. Importa notar, aqui, duas coisas que há nas boas obras que fazemos, a saber: a satisfação e o mérito, ou o valor satisfatório ou impetrátorio e o valor meritório. O valor satisfatório ou impetratório de uma boa obra é uma ação na medida em que satisfaz a pena devida pelo pecado, ou em que obtém alguma nova graça; o valor meritório ou o mérito é uma boa ação, em quanto merece a graça e a glória eterna. Ora, nesta consagração de nós mesmos à Santíssima Virgem, nós lhe damos todo o valor satisfatório, impetratório e meritório, ou, por outra, as satisfações e os méritos de todas as nossas boas obras: damos-lhe nossos méritos, nossas graças e nossas virtudes, não para comunicá-los a outrem (porque nossos méritos, graças e virtudes, propriamente falando, são incomunicáveis; só Jesus Cristo, fazendo-se nosso penhor diante de seu Pai, pôde comunicar-nos seus méritos), mas para no-los conservar, aumentar e encarecer, como diremos ainda (Cf. n. 146ss.). Damos-lhe nossas satisfações para que ela nos comunique a quem bem lhe pareça e para maior glória de Deus.
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123. Daí segue: 1°) que, por esta devoção, damos a Jesus Cristo, do modo mais perfeito, pois que o fazemos pelas mãos de Maria, tudo que lhe podemos dar, e muito mais que por outras devoções, pelas quais lhe damos uma parte de nosso tempo ou de nossas boas obras, ou uma parte de nossas satisfações e mortificações. Aqui damos e consagramos tudo, até o direito de dispor dos bens interiores, e as satisfações que ganhamos por nossas boas obras, dia a dia: e isto não se faz nem mesmo numa ordem religiosa. Nestas, consagram-se a Deus os bens de fortuna pelo voto da pobreza, os bens do corpo pelo voto da castidade, a vontade própria pelo voto de obediência, e, às vezes, a liberdade do corpo pelo voto de clausura. Não se lhe dá, porém, a liberdade ou o direito que temos de dispor de nossas boas obras, nem se renuncia tanto como se pode ao que o cristão tem de mais precioso e caro: seus méritos e satisfações.
124. 2°) Uma pessoa, que assim voluntariamente se consagrou e sacrificou a Jesus Cristo por Maria, já não pode dispor do valor de nenhuma de suas boas ações. Tudo que sofre, tudo que pensa, diz e faz de bem pertence a Maria, para que ela de tudo disponha conforme a vontade e para maior glória de seu Filho, sem que, entretanto, esta dependência prejudique de modo algum as obrigações do estado no qual esteja presentemente, ou venha a estar no futuro: por exemplo, as obrigações de um sacerdote que, por dever de ofício ou por outro motivo, deve aplicar o valor satisfatório e impetratório da santa missa a um particular; pois não se faz esta oferta a não ser conforme a ordem de Deus e os deveres de estado.
125. 3°) A consagração é feita conjuntamente à Santíssima Virgem e a Jesus Cristo; à Santíssima Virgem como ao meio perfeito que Jesus Cristo escolheu para se unir a nós e nós a ele; e a Nosso Senhor como o nosso fim último, ao qual devemos tudo o que somos, como a nosso Redentor e nosso Deus.
ARTIGO II
Uma perfeita renovação dos votos do batismo
126. Disse acima (cf.n.120) que a esta devoção podia-se chamar muito bem uma perfeita renovação dos votos ou promessas do santo batismo.
Todo cristão, antes do batismo, era escravo do demônio, pois lhe pertencia. Na ocasião do batismo o cristão, por sua própria boca ou pela de seu padrinho e de sua madrinha, renunciou a Satanás, a suas pompas e obras, e tomou Jesus Cristo para seu Mestre e soberano Senhor, passando a depender dele, na qualidade de escravos por amor. É o que se faz pela presente devoção: renuncia-se (como está indicado na fórmula de consagração) ao demônio, ao mundo, ao pecado e a si próprio, dando-se inteiramente a Jesus Cristo pelas mãos de Maria. Faz-se até algo mais, pois se, no batismo, falamos ordinariamente pela boca de outrem, pela boca do padrinho ou da madrinha, dando-nos a Jesus Cristo por procuração, nesta devoção fazemo-lo nós mesmos, voluntariamente, com conhecimento de causa.
No batismo não é pelas mãos de Maria que nos damos a Jesus Cristo, pelo menos de uma maneira expressa, nem fazemos doação a ele do valor de nossas boas ações; depois do batismo, ficamos inteiramente livres de aplicar esse valor a quem quisermos ou de conservá-lo para nós. Por essa devoção, damo-nos, porém, a Nosso Senhor pelas mãos de Maria, e lhe consagramos o valor de todas as nossas ações.
127. No santo batismo, diz Santo Tomás, os homens fazem o voto de renunciar ao demônio e às suas pompas: "In baptismo vovent homines abrenuntiare diablo et pompis eius"¹. E este voto, afirma Santo Agostinho, é o maior e o mais indispensável. "Votum maximum nostrum quo vovimus nos Christo esse mansuros"². É também o que dizem os canonistas: "Praecipuum votum est quod in baptismate facimus" - o voto principal é o que fazemos no batismo. Quem, entretanto, guarda tão grande voto? Quem é que mantém fielmente as promessas do santo batismo? Não é um fato que quase todos os cristãos falseiam à fidelidade que no batismo prometeram a Jesus Cristo? Donde poderá vir esse desregramento universal, senão do esquecimento em que se vive das promessas e compromissos do santo batismo, e por que cada um não ratifica espontaneamente o contrato de aliança feito com Deus por seu padrinho e sua madrinha?
128. É tão verdade isto, que o Concílio de Sens, convocado por ordem de Luís o Bonachão para pôr cobro às grandes desordens dos cristãos, declarou que a causa principal da corrupção então reinante vinha do esquecimento e ignorância em que se vivia dos compromissos tomados no santo batismo; e não encontrou melhor remédio para tão grande mal do que induzir os cristãos a renovar as promessas do santo batismo.
129. O Catecismo do Concílio de Trento, fiel intérprete deste santo Concílio, exorta os curas a fazer o mesmo, e a relembrar aos fiéis que estão ligados e consagrados a Nosso Senhor Jesus Cristo, como escravos a seu Redentor e Senhor. Eis as palavras textuais: "Parochus fidelem populum ad eam rationem cohortabitur ut sciat aequissimum esse... nos ipsos, non secus ac mancipia Redemptori nostro et Domino in perpetuum addicere et consecrare" ³
130. Ora, se os Concílios, os Santos Padres e a própria experiência nos mostram que o melhor meio de remediar os desregramentos dos cristãos é fazê-los relembrar as obrigações assumidas no batismo e renovar os votos que então fizeram, não é natural que se faça isto presentemente, de um modo perfeito, por esta devoção e consagração a Nosso Senhor, por intermédio de sua Mãe Santíssima? Digo "de um modo perfeito" porque nos servimos, nesta consagração a Jesus Cristo, do mais perfeito de todos os meios, que a Santíssima Virgem.
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1. Summa Theol. 2-2, q.88, art. 2, arg. 1.
2. Epístola 59 ad Paulin.
3.Catec. Conc. Trind., p. 3, art. 2, § 15, "De secundo Symboli articulo" in fine.
3.Catec. Conc. Trind., p. 3, art. 2, § 15, "De secundo Symboli articulo" in fine.
Respostas a algumas objeções
131. Não se pode objetar que esta devoção seja nova ou sem importância. Não é nova porque os concílios, os padres e muitos autores antigos e modernos falam desta consagração a Nosso Senhor ou renovação das promessas do batismo,como de uma prática antiga, aconselhando-a a todos os cristãos. Esta prática também não é sem importância, pois a principal fonte de todas as desordens e consequente condenação dos cristãos está no esquecimento e indiferença por esta renovação.
132. Alguns podem alegar que esta devoção, levando-nos a dar a Nosso Senhor, pelas mãos de Maria Santíssima, o valor de todas as nossas boas obras, orações, mortificações e esmolas, torna-nos impotentes para socorrer as almas de nossos parentes, amigos e benfeitores.
A esses respondo primeiro não é crível que nossos amigos, parentes ou benfeitores sofram prejuízo por nos termos devotado e consagrado sem reserva ao serviço de Nosso Senhor e de sua Mãe Santíssima. Seria fazer uma injúria ao poder e bondade de Jesus e Maria, que saberão muito bem valer os nossos parentes, amigos e benfeitores, aproveitando o nosso crédito espiritual, ou por outro meio qualquer.
Segundo, esta prática não impede que rezemos pelos outros, vivos ou mortos, se bem que a aplicação de nossas boas obras dependa da vontade da Santíssima Virgem; e, bem ao contrário, esta circunstância nos levará a rezar com muito mais confiança, do mesmo modo que uma pessoa rica, que tivesse doado a um grande príncipe todos os seus bens, rogaria com redobrada confiança a esse príncipe que beneficiasse a algum amigo necessitado. Seria até causar prazer a esse príncipe dar-lhe ocasião de demostrar seu reconhecimento a uma pessoa que de tudo se tivesse despojado para engrandecê-lo, que se tivesse reduzido a completa pobreza para honrá-lo. O mesmo se deve dizer de Nosso Senhor e da Santíssima Virgem: eles jamais se deixarão vencer em reconhecimento.
133. Outros dirão, talvez: Se eu der à Santíssima Virgem todo o valor de minhas ações para que ela o aplique a quem quiser, terei de sofrer talvez muito tempo no purgatório.
Esta objeção, produto do amor-próprio e da ignorância da liberalidade de Deus e de sua Mãe Santíssima, destrói-se por si mesmo. Uma alma cheia de fervor e generosa, que antepõe os interesses de Deus aos seus próprios, que tudo que tem dá a Deus inteiramente, sem reserva, que só aspira à glória e ao reino de Jesus Cristo por intermédio de sua Mãe Santíssima, e que se sacrifica completamente para obtê-lo, esta alma generosa, repito, e liberal, será castigada no outro mundo por ter sido mais liberal e desinteressada que as outras? Muito ao contrário, é a esta alma, como veremos a seguir, que Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima se mostram mais generosos neste mundo e no outro, na ordem da natureza, da graça e da glória.
134. Vejamos agora, o mais brevemente que pudermos, os motivos que nos recomendam esta devoção, os maravilhosos efeitos que ela produz nas almas fiéis, e as práticas desta devoção.
Segundo, esta prática não impede que rezemos pelos outros, vivos ou mortos, se bem que a aplicação de nossas boas obras dependa da vontade da Santíssima Virgem; e, bem ao contrário, esta circunstância nos levará a rezar com muito mais confiança, do mesmo modo que uma pessoa rica, que tivesse doado a um grande príncipe todos os seus bens, rogaria com redobrada confiança a esse príncipe que beneficiasse a algum amigo necessitado. Seria até causar prazer a esse príncipe dar-lhe ocasião de demostrar seu reconhecimento a uma pessoa que de tudo se tivesse despojado para engrandecê-lo, que se tivesse reduzido a completa pobreza para honrá-lo. O mesmo se deve dizer de Nosso Senhor e da Santíssima Virgem: eles jamais se deixarão vencer em reconhecimento.
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133. Outros dirão, talvez: Se eu der à Santíssima Virgem todo o valor de minhas ações para que ela o aplique a quem quiser, terei de sofrer talvez muito tempo no purgatório.
Esta objeção, produto do amor-próprio e da ignorância da liberalidade de Deus e de sua Mãe Santíssima, destrói-se por si mesmo. Uma alma cheia de fervor e generosa, que antepõe os interesses de Deus aos seus próprios, que tudo que tem dá a Deus inteiramente, sem reserva, que só aspira à glória e ao reino de Jesus Cristo por intermédio de sua Mãe Santíssima, e que se sacrifica completamente para obtê-lo, esta alma generosa, repito, e liberal, será castigada no outro mundo por ter sido mais liberal e desinteressada que as outras? Muito ao contrário, é a esta alma, como veremos a seguir, que Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima se mostram mais generosos neste mundo e no outro, na ordem da natureza, da graça e da glória.
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