Discurso IV - Santo Afonso Maria de Ligório
Maria na Encarnação do Verbo não pôde humilhar-se mais do que se humilhou: Deus, por sua vez, não pôde exaltá-la mais do que a exaltou.
Quem se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado. Essa é a palavra do Senhor, não pode errar: Aquele que se exaltar será humilhado, e aquele que se humilhar será exaltado (Mt 23,12). Donde, tendo Deus decretado fazer-se homem para redimir o homem perdido e assim manifestar ao mundo a sua bondade infinita, e tendo na terra de escolher a mãe, ia buscando entre as mulheres a que fosse dentre elas a mais santa e mais humilde. Mas de todas uma apenas enxergou, e foi a Virgem Maria, que quanto era mais perfeita nas virtudes, tanto mais simples e humilde, como uma pomba, no conceito que tinha de si. Dizia o Senhor, uma, porém, é a minha pomba, uma só a minha perfeita (Ct 6,9). Por isso essa, disse Deus, seja eleita a minha mãe. Daqui vejamos quanto Maria foi humilde, e por isso quanto Deus a exaltou.
Maria na Encarnação do Verbo não pôde humilhar-se mais do que se humilhou; será esse o primeiro ponto. Deus não pôde exaltá-la mais do que a exaltou; esse será o segundo.
Ponto I - De como Maria não poderia humilhar-se mais do que se humilhou
Falando o Senhor no Cântico dos Cânticos justamente da humildade dessa humilíssima Virgenzinha, disse: Enquanto o rei descansa em seu divã, meu nardo exala o seu perfume (Ct 1,11). Comenta S. Antônio essas palavras, e diz que no nardo, por ser planta tão pequena e baixa, está prefigurada a humildade de Maria, cujo odor subiu ao céu, e do seio do Pai Eterno atraiu ao seu útero virginal o Verbo Divino¹. De modo que o Senhor, atraído pelo odor dessa humilde Virgenzinha, escolheu-a por mãe ao fazer-se homem para redimir o mundo. Mas Ele, para maior glória e mérito dessa mãe, não quis fazer-se dela filho sem ter dela o consentimento, diz Guilherme, o abade. Daqui, enquanto a humilde Virgenzinha estava no seu pobre casebre, e suspirava e rogava a Deus com maior desejo então do que jamais antes que mandasse o Redentor, como foi revelado a S. Isabel, monja de S. Bento, eis que vem o arcanjo Gabriel para trazer-lhe a notícia;entra e a saúda dizendo: Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres (Lc 1,28; 1,42): Ave, ó Virgem cheia de graça, pois fostes vós sempre rica em graça acima de todos os santos. O Senhor é convosco, porque sois assim tão humilde. Vós sois bendita entre as mulheres, visto que todas as outras incorreram na maldição da culpa, mas vós, porque Mãe do Bendito, fostes e sereis sempre bendita e livre de toda mancha.
A humilde Maria, entretanto, a essa saudação, assim cheia de louvor, o que responde? Nada; não respondeu, mas pensando na saudação perturbou-se: Perturbou-se ela com estas palavras e pôs-se a pensar no que significaria semelhante saudação (Lc 1,29). - E por que se perturbou? Acaso por medo que fosse uma ilusão, ou por modéstia, já que via um homem, como tentou explicar alguém pensando que o anjo lhe apareceu sob forma humana? Não, o texto é claro: perturbou-se com estas palavras; repara Eusébio Emisseno: "Não com a aparição, mas com as palavras". Veio portanto a pertubação inteiramente da humildade ao ouvir aqueles louvores tão distantes do conceito que de si fazia. Donde quanto mais ouve exaltar-se pelo anjo, mais se abaixa e põe-se a considerar o seu nada. Reflete aqui S. Bernardino e diz que se o anjo lhe houvesse dito que ela era a maior pecadora do mundo, Maria não se espantaria tanto; mas de ouvir aqueles louvores tão excelsos, perturbou-se toda.² Perturbou-se porque, sendo tão cheia de humildade, aborrecia todo louvor seu, e desejava que o seu Criador e dador de todo bem fosse louvado e bendito; assim, Maria mesma disse a S. Brígida, falando do momento em que foi feita Mãe de Deus.
Mas pelo menos, digo eu, já bem havia a Santíssima Virgem aprendido nas Sagrdas Escrituras que já era chegado o tempo predito pelos Profetas da vinda do Messias, já foram cumpridas as semanas de Daniel, já fora, segundo a profecia de Jacó, passado à mão de Herodes, rei estrangeiro, o cetro de Judá, já sabia que uma virgem que não lhe pareciam havia de ser a mãe do Messias; ouve então do anjo aqueles louvores, que não lhe pareciam convir a outra senão à mãe de Deus; terá lhe ocorrido então o pensamento, ao menos um: quem sabe não era ela essa mãe eleita de Deus? Não, a sua profunda humildade não deixou nem mesmo passar por ela esse pensamento. Puderam aqueles louvores somente incutir-lhe grande temor, de tal modo que, como reflete S. Pedro Crisólogo, tal como o Salvador quis ser confortado por um anjo, assim foi necessário que S. Gabriel, vendo Maria tão espantada com aquela saudação, a animasse dizendo: Não temais, ó Maria, nem vos assombreis com os títulos grandiosos com que vos saudei, pois, se aos vossos olhos vós sois pequena e baixa. Deus, que exalta os humildes, fez-vos digna de encontrar a graça perdida pelos homens, e por isso Ele vos preservou da comum mancha de todos os filhos de Adão; por isso desde a vossa Conceição vos honrou com uma graça maior do que a de todos os santos; por isso, enfim, agora vos exalta a o ponto de fazer-vos sua mãe: Eis que conceberás e darás à luz um filho, e lhe darás o nome de Jesus (Lc 1,31).
Pois agora, então, o que aguarda? "Senhora, o anjo aguarda a vossa resposta" - diz S. Bernardo - "antes, aguardamo-la nós, condenados que somos à morte. Eis, ó mãe nossa, a vós já se oferece o preço da nossa salvação, que será o Verbo Divino em vós tornado homem; se vós tornado homem; se vós o aceitardes por filho, imediatamente seremos da morte libertados; o vosso mesmo Senhor, por enamorado que esteja da vossa beleza, ainda assim deseja o vosso consentimento, pelo qual determinou salvar o mundo".¹ Retoma S. Agostinho: "Depressa, Senhora, respondei; não adieis mais ao mundo a salvação, que do vosso consentimento depende.¹
Mas eis que Maria responde; responde ao anjo e diz: Eis aqui a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra (Lc 1,38). Ó resposta, que mais bela, mais humilde e mais prudente não poderiam ter inventado toda a sabedoria dos homens e dos anjos em conjunto, mesmo que pensassem por um milhão de anos! Ó resposta poderosa, que alegrastes o céu e trouxestes à terra um mar imenso de graças e de bens! Resposta que, apenas saída do humilde coração de Maria, atraíste do seio do Pai Eterno o unigênito Filho ao seu puríssimo útero para tornar-se homem! Sim, porque apenas proferiu aquelas palavras, o Filho de Deus virou filho também de Maria. "Ó poderoso faça-se!" - exclama S. Tomás de Vilanova - ó faça-se eficaz, ó augustíssimo faça-se!". Pois com os outros faça-se Deus criou a luz, o céu, a terra; mas com esse de Maria, diz o santo, um Deus virou homem como nós.
Mas não nos afastemos do nosso ponto; consideremos como foi grande a humildade da Virgem nessa resposta. Por certo fora ela iluminada a conhecer como era excelsa a dignidade de ser Mãe de Deus. Assegurava-lhe já o anjo que era ela essa beata mãe eleita pelo Senhor. Mas apesar disso não cresce nada o conceito que tem de si mesma, não se detém nem por um momento para comprazer-se da sua exaltação; tendo em vista de um lado o seu nada e de outro a infinita majestade do seu Deus, que a escolhia por mãe, reconhece-se indigna de tamanha honra, mas não quer opor-se nem um pouco à sua vontade. De modo que, solicitado o seu consentimento, o que faz? O que diz? Ela, anulada de si mesma, toda inflamada, por outro lado, pelo desejo de unir-se mais com Deus, abandonado-se toda à divina vontade: Eis, aqui, responde, a escrava do Senhor. Eis a escrava do Senhor, obrigada a fazer o que o seu Senhor comanda. E queria com isso dizer: "Se o Senhor escolhe por mãe a mim, que nada tenho de meu próprio, tudo o que tenho é presente seu, quem poderá pensar que Ele me escolhe por mérito meu? Eis a escrava do Senhor. Que mérito poderá ter uma escrava para se tornar mãe do seu Senhor? Eis a escrava do Senhor.
Louve, apenas, pois, a bondade do Senhor, e não se louve a escrava já que é nada mais do que bondade sua pôr os olhos numa criatura tão baixa como eu e tão grande torná-la".
"Ó grande humildade de Maria" - exclama aqui Guerrico, o abade -, "que a tornou pequena para si mesma, mas grande diante de Deus! Indigna aos olhos seus, mas digna aos olhos do seu imenso Senhor, que nem o mundo inteiro pôde abarcar!".
Porém, mais bela ainda a esse respeiro é a exclamação de S. Bernardo no sermão quarto sobre a Assunção de Maria, onde diz, admirando a humildade de Maria: "Senhora, como pudestes unir no vosso coração conceito de vós mesma tão humilde com tanta pureza, com tanta inocência, com tanta plenitude de graça?". "E donde", segue o santo, "ó Virgem beata, se arraigou tanto em vós essa humildade, e humildade tamanha, sendo que vos víeis tão honrada e exaltada por Deus?".
Lúcifer, vendo-se dotado de grande beleza, aspirou a alçar o seu trono sobre as estrelas e tornar-se semelhante a Deus: Escalarei os céus e erigirei meu trono acima das estrelas... Subirei sobre as nuvens mais altas e me tornarei igual ao Altíssimo (Is 14,13-14). Ora, o que diria, ao que aspiraria o Soberbo, caso se visse ornado das qualidades de Maria? A humilde Maria não fez assim: quanto mais se viu exaltada, tanto mais se humilhou. "Ah, Senhora, por essa tão bela humildade" - conclui S. Bernardo - "bem vos tornastes digna que vos resguarde Deus com singular amor digna que de vós se enamore o vosso Rei pela vossa beleza: digna que arrasteis pelo suave odor de vossa humildade o eterno Filho do seu repouso, do seio de Deus, ao vosso puríssimo útero". Donde diz Bernardino de Bustis que Maria mereceu mais por aquela resposta, Eis a escrava do Senhor, do que seriam capazes de merecer juntas todas as criaturas com todas as suas obras¹. Assim é, diz S. Bernardo, uma vez que essa inocente Virgem, ainda que pela sua virgindade se tivesse tornado cara a Deus, não obstante pela humildade tornou-se ainda por cima digna, tanto quanto o poderia uma criatura, de ser feita Mãe do seu Criador.¹ E o confirma S. Jerônimo dizendo que Deus mais pela sua humildade do que por todas as suas outras excelsas virtudes a escolheu por Mãe, Maria mesma o exprimiu à S. Brígida, dizendo: "Donde mereci uma graça tal de ser feita Mãe do meu Senhor, senão porque reconheci o meu nada e me humilhei?". E antes o declarara no seu humilíssimo cântico, quando disse: Porque olhou para sua pobre serva... Porque realizou em mim maravilhas aquele que é poderoso (Luc. 1,48-49). Onde nota S. Lourenço Giustiniani que a Santíssima Virgem "alude a que Deus antes olhou à sua baixeza do que à sua virgindade e inocência". E por essa humildade, adverte S. Francisco de Sales, não pretendia Maria louvar a sua virtude da humildade, mas declarar que Deus considerara o seu nada, e por sua mera bondade quisera assim exaltá-la.
Em suma, diz S. Agostinho que a humildade de Maria foi como uma escada pela qual o Senhor se dignou descer à terra para fazer-se homem em seu seio.² E confirmou-o S. Antonino, dizendo que a humildade da Virgem foi a sua disposição mais perfeita e mais próxima para ser Mãe de Deus.³ E com isso entende-se o que predisse Isaías: Um renovo saíra do tronco de Jessé, e um rebento brotará de suas raízes (Is 11,1). Reflete o Santo Alberto Magno que a flor divina, isto é, o Unigênito de Deus, como disse Isaías, devia nascer não da sumidade ou do tronco da planta de Jessé, mas da raiz, justamente para denotar a humildade da mãe. E mais claramente o explica o abade de Celles: "Repara que não é da sumidade, mas da raiz que sobe a flor". E por isso disse o Senhor a essa sua dileta filha: Seus olhos são como pombas à beira dos regatos (Ct 5,12). S. Agostinho: "E voar de onde, senão do seio do Pai ao útero da Mãe?" Sobre o qual o douto intérprete Fernandez que os humilíssimos olhos de Maria, pelos quais remirava sempre a divina grandeza, sem jamais perder de vista o seu nada, fizeram tal violência a Deus mesmo que o arrastaram ao seu seio.¹ E com isso se entende, diz o abade Francone, por que o Espírito Santo levou tanto a beleza dessa sua esposa pelos seus olhos de pomba: Tu és bela, minha querida, tu és formosa! Por detrás do teu véu os teus olhos são como pombas (Ct 4,1). Porque Maria, olhando para Deus com olhos de pomba simples e humilde, tanto o enamorou por sua beleza que com liames de amor o fez prisioneiro no seu útero virginal. Assim fala o abade Francone: "Onde por toda a terra tão formosa Virgem se poderia encontrar, que capturasse pelos olhos o Rei dos céus e com grilhões de caridade o trouxesse cativo por meio de pia violência".² De modo que Maria - encerremos este ponto - na Encarnação do Verbo, como vimos no começo, não pôde humilhar-se mais do que se humilhou. Vejamos agora como Deus, tendo-a feito sua mãe, não pôde exaltá-la mais do que a exaltou.
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Livro: Glórias de Maria - Santo Afonso de Ligório, Ed. MBC. 2019