sábado, 20 de agosto de 2016

Motivos que os Cristãos têm a mais que os infiéis para amar a Deus.

Os fiéis, ao contrário, sabem o quanto precisam de Jesus crucificado, mas mesmo admirando e recebendo o amor que Ele tem por nós, que está acima de todo entendimento, não demonstram nenhuma confusão em dar nada além do que eles mesmos, por menor que sejam, em retorno a uma caridade e a uma condescendência tão grandes; mas é tão fácil para eles amar mais do que se sentirem eles mesmos mais amados; porque àquele a quem se dá menos amor, esse o sentirá também bem menos. Os judeus não mais que os pagãos, não sentem a excitação pelos mesmos aguilhões do amor que oprimem a Igreja e fazem com que ela diga: "E fui ferido por amor"; ou ainda: "Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, porque desfaleço de amor" (Cânticos 2,5) [...] ela vê o Filho Unigênito do Pai carregando a sua cruz, o Deus de toda majestade atingido por golpes e cuspidas, o Autor da vida e da glória pregado, transpassado, cheio de opróbios, dando por Seus amigos Sua alma abençoada. Vendo tudo isso, ela sente a espada de dois gumes do amor penetrar mais fundo em seu coração e ela clama: "Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, porque desfaleço de amor". As maçãs que a Esposa introduziu no jardim de Seu amado tem prazer em colher da árvore da vida, têm gosto do maná do Céu e a cor do sangue de Cristo. E então ela vê a morte golpeada até a morte e aquilo que a fez magnificar o cortejo de seu Vencedor, ela ainda vê este subir triunfante, de debaixo da terra para sobre a tera e da terra para os céus, seguido de uma grande multidão de cativos, de modo que somente ao nome de Jesus, todo joelho se dobra nos céus, na terra e debaixo da terra (Filipenses 2,10). A terra, debaixo da antiga maldição, produzia somente espinheiros e abrolhos; revigorada, então, por uma nova benção, é coberta de flores. Então a esposa lembra-se deste versículo: "O Senhor é a minha força e o meu escudo; nele confiou o meu coração, e fui socorrido; assim o meu coração salta de prazer, e com o meu canto o louvarei" (Salmos 28,7), recobra o ânimo com os furtos da paixão que ela colheu da árvore da cruz, e com as flores da ressureição cujo perfume delicioso convida o Amado a renovar as Suas visitas. 

Enfim ela exclama: "Eis que és formoso, ó amado meu, e também amável; o nosso leito é verde" (coberto de flores) (Cânticos 1,16). Falando deste leito, ela deixa claro o que deseja, e, acrescentando que ele está coberto de flores, ela mostra no que estão baseadas suas esperanças; não é sobre a atração que as flores, colhidas em um campo abençoado por Deus, têm para o seu Amado, porque é o que sentem por Cristo que quis ser concebido e alimentado em Nazaré. Este Esposo celeste, atraído pelo perfume que emana delas, tem prazer em entrar no quarto do coração, quando o encontra cheio de frutas e perfumado pelo aroma das flores. E Ele vem apressadamente e tem prazer em habitar na alma que a Ele contempla em meditação, cuidadosamente dedicada e colhe os frutos de Sua paixão e cultiva as flores de Sua ressureição.

Ora estes frutos da última colheita, isto é, de todos os séculos que se foram sob o império da morte e do pecado, que amadureceram na plenitude dos tempos, são as lembranças de Sua paixão. Mas é no esplendor de Sua ressureição que devemos ver as novas flores dos novos tempos que a graça faz reflorescer para um segundo verão; no final dos tempos, na ressureição real, elas darão inumeráveis frutos:"Porque eis que passou o inverno; a chuva cessou, e se foi; aparecem as flores na terra, o tempo de cantar chega, e a voz da rola ouve-se em nossa terra" (Cânticos 2,11-12). Ela quer dizer, falando assim, que o verão apareceu com Aquele que fez derreter o gelo da morte para renascer em temperatura primaveril de uma nova vida, dizendo: "Eis que faço novas todas as coisas" (Apocalipse 21,5). Seu corpo, semeado na morte, refloresceu na ressureição, e, ao perfume que dEle emana, vimos logo nos nossos vales e planícies, o que estava árido, morto ou congelado, cobrir-se de verde, renasce em vida e volta a obter calor. 

O frescor destas flores. O renovar destes frutos e a beleza deste campo, de onde exalam os mais doces perfumes encantam também o Pai cujo Filho fez novas todas as coisas, e lhe inspiram esta exclamação: "Eis que o cheiro do meu Filho é como o cheiro do campo que o Senhor abençoou" (Gênesis 27,27). Sim, um campo cheio de flores, pois é de Sua plenitude que recebemos tudo o que temos. Mas a Esposa, ao se agradar dEle, vem colher em sua simplicidade flores e frutos para adornar a morada íntima de sua consciência, para que ao chegar o seu Amado, seu pequeno leito do coração exale os perfumes mais suaves. Portanto, se nós queremos que Cristo faça repetidamente em nós Sua morada, é preciso que nossos corações estejam cheios da fiel lembrança da misericórdia e do poder cujas provas recebemos em Sua morte e em Sua ressureição. É o pensamento de Davi, quando disse: "Deus falou uma vez; duas vezes ouvi isto: que o poder pertence a Deus. A ti também, Senhor, pertence a misericórdia". (Salmos 62,11-12) Jesus Cristo provou superabundantemente, pois após morrer por nós por nossos pecados, Ele ressuscitou para nos justificar, subiu aos céus para nos proteger, e nos envia o Espírito Santo para nos consolar; e, mais tarde Ele voltará para a consumação da salvação. Ora eu vejo em Sua morte a prova da Sua misericórdia, na ressureição a prova do Seu poder, e em todo o restante eu as encontro, as duas, reunidas. 

Se a Esposa pede que a suportemos com flores aromáticas e que a fortaleçamos com frutos cheirosos, eu acho que é porque ela sente que o amor pode perder calor e força; mas ela só terá estímulos até ser introduzida no quarto de Seu amado, sentindo-se coberta de beijos há muito desejados e possa exclamar: "A sua mão esquerda esteja debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abrace" (Cânticos 2,6). Mas então ela sentirá e verá por si mesma o quanto estas provas de amor que Seu amado lhe dava da mão esquerda, para assim dizer, pois Ele as dava sem contar nos dias em que estava entre nós, cedem em doçura aos abraços da sua mão direita e os são inferiores, e ela entenderá as Suas palavras. "O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveitará" (João 6,63), e ela penetrará no sentido destas palavras: "Meu espírito é mais doce que o mel e minha herança mais agradável que o mel nas prateleiras". Se em seguida dissermos: "A memória de meu nome passará de séculos em séculos" é para mostrar que os eleitos que ainda têm sede da presença do Esposo, têm ao menos a lembrança dEle para se consolarem, enquanto durar este século, durante o qual as gerações passam e se sucedem. Se está escrito: "Proferirão abundantemente a memória da tua grande bondade" (Salmos 145,7), certamente ouve-se daqueles cujo o salmista disse anteriormente: "Uma geração louvará as tuas obras à outra geração" (Salmos 145,4). Portanto os que vivem na terra possuem para si somente a lembrança do Esposo, e os que nos céus reinam, se alegram de Sua presença; esta última é a glória dos eleitos que já chegaram à salvação, a outra é a consolação dos que ainda estão a caminho.

Um Tratado sobre o Amor de Deus, São Bernardo de Claraval