O quanto Deus merece o amor do homem por causa dos bens do corpo e da alma: como devemos reconhecê-los; não devemos usá-los contra Aquele que no-los deu.
Qualquer um que entendeu o que está escrito acima também vê, eu acho, porque isto é, por qual motivo devemos amar a Deus. Se isto não é visto pelos infiéis, Deus tem como confundir a ingratidão deles nos bens, sem contar o quanto preenche o corpo e a alma. Não é dEle, de fato, que o homem tem recebido o pão que o alimenta, a luz que o ilumina, e o ar que ele respira? Mas seria loucura contar os bens que eu acabo de declarar inumeráveis e que me basta citar os mais importantes como o pão, o ar e a luz; se os coloco em primeiro lugar, não é porque os acho os mais excelentes, pois interessam somente ao corpo, mas são os os mais necessários. Sobre os bens de primeira ordem, é na alma, nesta parte do nosso ser que vence sobre a outra, que nós devemos procurá-los; são a excelência, a inteligência e a virtude [...].
Estes três bens aparecem cada um sob dois aspectos ao mesmo tempo: a excelência aparece na prerrogativa própria à natureza humana e no temor que o homem inspirou sem cessar a todos os seres que vivem na terra; a inteligência, não só percebe a dignidade do homem, mas entende também que para estar em nós, todavia ela não vem de nós; enfim a virtude, em sua dupla tendência, nos faz por um lado buscar com fervor e de outro abraçar com força, uma vez encontrado, Aquele a Quem queremos pertencer. Também de nada vale a inteligência sem a excelência que pode até prejudicar sem a virtude, como podemos provar com o seguinte raciocínio: Ninguém pode se gloriar do que tem; mas se, sabendo, ele ignora que o que ele tem não vem dele, ele se gloria, mas não o faz em Cristo, e é a ele que o apóstolo diz: "E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te glorias, como se não o houveras recebido?" (1 Cor 4,7) Ele não diz simplesmente: "Por que te glorias?", mas ele acrescenta: "Como se não o houveras recebido" para mostrar que ele é repreensível, não por se gloriar do que tem, mas por se gloriar como se não o tivesse recebido. Assim com razão esta glorificação é considerada vaidade, já que não se apoia no fundamento sólida da verdade. O apóstolo a distingue da verdadeira glória, dizendo: "Aquele que se gloria glorie-se no Senhor" (1 Cor 1,31), isso é, na verdade: porque Deus é a verdade.
Portanto, há duas coisas que precisamos saber; primeiro o que nós somos, e depois que não o somos por nós mesmos; então nós não nos gloriamos de coisa nenhuma, ou a glória que estaremos nos atribuindo será vaidade; enfim, se nós mesmos não nos conhecemos, está escrito, nós seremos confundidos com o grupo de nossos semelhantes (Cânticos 1,6-7). É de fato o que acontece, porque quando um homem digno não conhece nem mesmo a sua posição, o comparamos com razão, por tal ignorância, aos animais que são como os companheiros de sua corrupção e de sua vida decadente neste mundo. Portanto, não se conhecendo a ela mesma, a criatura que a razão distingue dos bichos, começa a se confundir com elas, porque ela ignora sua própria glória que é totalmente interna, cede aos chamados de sua curiosidade e se preocupa somente com sua beleza exterior e sensível; ela se torna também igual às outras criaturas, porque não sente que recebeu algo a mais do que elas. Assim é necessário combater a ignorância que faz com que talvez nos subestimemos mais do que convém. Mas evitemos com mais cuidado ainda esta outra ignorância que leva a nos atribuir além do que nós temos, como acontece quando nos enganamos em nos imputar o bem, qualquer que seja ele, que vemos em nós mesmos. Mas o que precisamos odiar e fugir mais do que estes dois tipos de ignorância, é a presunção pela qual em conhecimento de causa e propósito deliberado nós nos gloriamos do bem que está em nós, como se viesse de nós, não temendo arrancar de outrem a glória que nós bem sabemos que não nos é devida pelas coisas que estão em nós, mas que não vêm de nós. No primeiro caso, nós não nos gloriamos de nada, no segundo nos gloriamos, mas não em Cristo, e no terceiro nós não pecamos mais por ignorância, mas nós usurpamos conscientemente, reivindicando para nós mesmos, o que pertence a Deus. Ora, esta audácia comparada à segunda ignorância parece tanto mais grave e mais perigosa; se uma desconhece a Deus, a outra o menospreza; mas comparada à primeira, parece ainda pior e mais detestável, se esta ignorância nos assemelha aos brutos, esta audácia nos associa aos demônios. Pois apenas o orgulho, o maior dos males, pode se servir dos bens que ele recebeu, como se ele não os tivesse recebido, e desviar em proveito próprio a glória que um benfeitor deve achar em seus benfeitos.
Também à excelência e inteligência é preciso unir o fruto que é a virtude; é pela virtude que buscamos e possuímos o Autor liberal de todas as coisas, Aquele a quem devemos, em tudo, render a glória que Lhe pertence; de outra forma seriamos rudemente punidos por não ter feito o que sabíamos que deveríamos fazer. Por que isso? Porque aquele que age desta forma, não quis adquirir a inteligência para fazer o bem, mas ao contrário, meditou sobre a sua própria iniquidade (Salmos 36, 4-5), e ele tentou, como um servo infiel, desviar e até trazer a proveito próprio a glória que seu excelente Mestre deveria recolher em bens, sabendo ele mesmo perfeitamente, pela virtude da inteligência, que ele mesmo não era a fonte. É, portanto, bastante evidente que a excelência, sem a inteligência, é inútil, e que a inteligência, sem a virtude, nos leva a perdição. Mas para o homem que possui a virtude, não seria a inteligência maléfica e nem a excelência inútil, ele clama e louva a Deus simplesmente nestes termos: "Não a nós, SENHOR, não a nós, mas ao teu nome dá glória, por amor da tua benignidade e da tua verdade" (Salmos 115,1). O que significa: Senhor, nós não Te atribuímos nem a inteligência nem a excelência, nós atribuimos tudo ao Teu nome, porque é dEle que nós recebemos tudo.
Mas nós nos afastamos demais do nosso desígno, querendo provar que mesmo os que não conhecem a Cristo, sabem nem pela lei natural, pelos bens do corpo e da alma, que devem amar, também eles, a Deus, por causa do próprio Deus. De fato, para resumir em algumas palavras o que dissemos acima, qual é o infiel que não sabe que recebeu somente dAquele que faz o Seu sol nascer sobre bons e também sobre os maus, e faz cair chuva sobre os santos e também sobre os ímpios, todos os bens necessários à sua vida, dos quais já falei, como o alimento, a luz e o ar? Qual o homem, tão ímpio quanto seja, que atribuirá a excelência particular à espécie humana, que ele vê brilhar em sua alma, a outro a não ser ao que disse em Gênesis: "Façamos o homem a nossa imagem e semelhança" (Gênesis 1,26)? Quem verá o autor da inteligência em outro que não nAquele que ensina tudo aos homens? E de que mão pensaria ele receber ou ter recebido o dom da virtude, se não do Deus das virtudes? O Senhor merece, portanto, ser amado, pelo o que Ele é, pelo infiel, ainda que pouco O conheça, assim mesmo que não conheça a Cristo; também aquele que não ama a Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças, não tem desculpas [...].
São Bernardo de Claraval - O Tratado sobre o amor de Deus
Portanto, há duas coisas que precisamos saber; primeiro o que nós somos, e depois que não o somos por nós mesmos; então nós não nos gloriamos de coisa nenhuma, ou a glória que estaremos nos atribuindo será vaidade; enfim, se nós mesmos não nos conhecemos, está escrito, nós seremos confundidos com o grupo de nossos semelhantes (Cânticos 1,6-7). É de fato o que acontece, porque quando um homem digno não conhece nem mesmo a sua posição, o comparamos com razão, por tal ignorância, aos animais que são como os companheiros de sua corrupção e de sua vida decadente neste mundo. Portanto, não se conhecendo a ela mesma, a criatura que a razão distingue dos bichos, começa a se confundir com elas, porque ela ignora sua própria glória que é totalmente interna, cede aos chamados de sua curiosidade e se preocupa somente com sua beleza exterior e sensível; ela se torna também igual às outras criaturas, porque não sente que recebeu algo a mais do que elas. Assim é necessário combater a ignorância que faz com que talvez nos subestimemos mais do que convém. Mas evitemos com mais cuidado ainda esta outra ignorância que leva a nos atribuir além do que nós temos, como acontece quando nos enganamos em nos imputar o bem, qualquer que seja ele, que vemos em nós mesmos. Mas o que precisamos odiar e fugir mais do que estes dois tipos de ignorância, é a presunção pela qual em conhecimento de causa e propósito deliberado nós nos gloriamos do bem que está em nós, como se viesse de nós, não temendo arrancar de outrem a glória que nós bem sabemos que não nos é devida pelas coisas que estão em nós, mas que não vêm de nós. No primeiro caso, nós não nos gloriamos de nada, no segundo nos gloriamos, mas não em Cristo, e no terceiro nós não pecamos mais por ignorância, mas nós usurpamos conscientemente, reivindicando para nós mesmos, o que pertence a Deus. Ora, esta audácia comparada à segunda ignorância parece tanto mais grave e mais perigosa; se uma desconhece a Deus, a outra o menospreza; mas comparada à primeira, parece ainda pior e mais detestável, se esta ignorância nos assemelha aos brutos, esta audácia nos associa aos demônios. Pois apenas o orgulho, o maior dos males, pode se servir dos bens que ele recebeu, como se ele não os tivesse recebido, e desviar em proveito próprio a glória que um benfeitor deve achar em seus benfeitos.
Também à excelência e inteligência é preciso unir o fruto que é a virtude; é pela virtude que buscamos e possuímos o Autor liberal de todas as coisas, Aquele a quem devemos, em tudo, render a glória que Lhe pertence; de outra forma seriamos rudemente punidos por não ter feito o que sabíamos que deveríamos fazer. Por que isso? Porque aquele que age desta forma, não quis adquirir a inteligência para fazer o bem, mas ao contrário, meditou sobre a sua própria iniquidade (Salmos 36, 4-5), e ele tentou, como um servo infiel, desviar e até trazer a proveito próprio a glória que seu excelente Mestre deveria recolher em bens, sabendo ele mesmo perfeitamente, pela virtude da inteligência, que ele mesmo não era a fonte. É, portanto, bastante evidente que a excelência, sem a inteligência, é inútil, e que a inteligência, sem a virtude, nos leva a perdição. Mas para o homem que possui a virtude, não seria a inteligência maléfica e nem a excelência inútil, ele clama e louva a Deus simplesmente nestes termos: "Não a nós, SENHOR, não a nós, mas ao teu nome dá glória, por amor da tua benignidade e da tua verdade" (Salmos 115,1). O que significa: Senhor, nós não Te atribuímos nem a inteligência nem a excelência, nós atribuimos tudo ao Teu nome, porque é dEle que nós recebemos tudo.
Mas nós nos afastamos demais do nosso desígno, querendo provar que mesmo os que não conhecem a Cristo, sabem nem pela lei natural, pelos bens do corpo e da alma, que devem amar, também eles, a Deus, por causa do próprio Deus. De fato, para resumir em algumas palavras o que dissemos acima, qual é o infiel que não sabe que recebeu somente dAquele que faz o Seu sol nascer sobre bons e também sobre os maus, e faz cair chuva sobre os santos e também sobre os ímpios, todos os bens necessários à sua vida, dos quais já falei, como o alimento, a luz e o ar? Qual o homem, tão ímpio quanto seja, que atribuirá a excelência particular à espécie humana, que ele vê brilhar em sua alma, a outro a não ser ao que disse em Gênesis: "Façamos o homem a nossa imagem e semelhança" (Gênesis 1,26)? Quem verá o autor da inteligência em outro que não nAquele que ensina tudo aos homens? E de que mão pensaria ele receber ou ter recebido o dom da virtude, se não do Deus das virtudes? O Senhor merece, portanto, ser amado, pelo o que Ele é, pelo infiel, ainda que pouco O conheça, assim mesmo que não conheça a Cristo; também aquele que não ama a Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças, não tem desculpas [...].
São Bernardo de Claraval - O Tratado sobre o amor de Deus