quinta-feira, 28 de julho de 2016

Por que amar a Deus?


O quanto Deus merece o amor do homem por causa dos bens do corpo e da alma: como devemos reconhecê-los; não devemos usá-los contra Aquele que no-los deu.


Qualquer um que entendeu o que está escrito acima também vê, eu acho, porque isto é, por qual motivo devemos amar a Deus. Se isto não é visto pelos infiéis, Deus tem como confundir a ingratidão deles nos bens, sem contar o quanto preenche o corpo e a alma. Não é dEle, de fato, que o homem tem recebido o pão que o alimenta, a luz que o ilumina, e o ar que ele respira? Mas seria loucura contar os bens que eu acabo de declarar inumeráveis e que me basta citar os mais importantes como o pão, o ar e a luz; se os coloco em primeiro lugar, não é porque os acho os mais excelentes, pois interessam somente ao corpo, mas são os os mais necessários. Sobre os bens de primeira ordem, é na alma, nesta parte do nosso ser que vence sobre a outra, que nós devemos procurá-los; são a excelência, a inteligência e a virtude [...].

Estes três bens aparecem cada um sob dois aspectos ao mesmo tempo: a excelência aparece na prerrogativa própria à natureza humana e no temor que o homem inspirou sem cessar a todos os seres que vivem na terra; a inteligência, não só percebe a dignidade do homem, mas entende também que para estar em nós, todavia ela não vem de nós; enfim a virtude, em sua dupla tendência, nos faz por um lado buscar com fervor e de outro abraçar com força, uma vez encontrado, Aquele a Quem queremos pertencer. Também de nada vale a inteligência sem a excelência que pode até prejudicar sem a virtude, como podemos provar com o seguinte raciocínio: Ninguém pode se gloriar do que tem; mas se, sabendo, ele ignora que o que ele tem não vem dele, ele se gloria, mas não o faz em Cristo, e é a ele que o apóstolo diz: "E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te glorias, como se não o houveras recebido?" (1 Cor 4,7) Ele não diz simplesmente: "Por que te glorias?", mas ele acrescenta: "Como se não o houveras recebido" para mostrar que ele é repreensível, não por se gloriar do que tem, mas por se gloriar como se não o tivesse recebido. Assim com razão esta glorificação é considerada vaidade, já que não se apoia no fundamento sólida da verdade. O apóstolo a distingue da verdadeira glória, dizendo: "Aquele que se gloria glorie-se no Senhor" (1 Cor 1,31), isso é, na verdade: porque Deus é a verdade.

Portanto, há duas coisas que precisamos saber; primeiro o que nós somos, e depois que não o somos por nós mesmos; então nós não nos gloriamos de coisa nenhuma, ou a glória que estaremos nos atribuindo será vaidade; enfim, se nós mesmos não nos conhecemos, está escrito, nós seremos confundidos com o grupo de nossos semelhantes (Cânticos 1,6-7). É de fato o que acontece, porque quando um homem digno não conhece nem mesmo a sua posição, o comparamos com razão, por tal ignorância, aos animais que são como os companheiros de sua corrupção e de sua vida decadente neste mundo. Portanto, não se conhecendo a ela mesma, a criatura que a razão distingue dos bichos, começa a se confundir com elas, porque ela ignora sua própria glória que é totalmente interna, cede aos chamados de sua curiosidade e se preocupa somente com sua beleza exterior e sensível; ela se torna também igual às outras criaturas, porque não sente que recebeu algo a mais do que elas. Assim é necessário combater a ignorância que faz com que talvez nos subestimemos mais do que convém. Mas evitemos com mais cuidado ainda esta outra ignorância que leva a nos atribuir além do que nós temos, como acontece quando nos enganamos em nos imputar o bem, qualquer que seja ele, que vemos em nós mesmos. Mas o que precisamos odiar e fugir mais do que estes dois tipos de ignorância, é a presunção pela qual em conhecimento de causa e propósito deliberado nós nos gloriamos do bem que está em nós, como se viesse de nós, não temendo arrancar de outrem a  glória que nós bem sabemos que não nos é devida pelas coisas que estão em nós, mas que não vêm de nós. No primeiro caso, nós não nos gloriamos de nada, no segundo nos gloriamos, mas não em Cristo, e no terceiro nós não pecamos mais por ignorância, mas nós usurpamos conscientemente, reivindicando para nós mesmos, o que pertence a Deus. Ora, esta audácia comparada à segunda ignorância parece tanto mais grave e mais perigosa; se uma desconhece a Deus, a outra o menospreza; mas comparada à primeira, parece ainda pior e mais detestável, se esta ignorância nos assemelha aos brutos, esta audácia nos associa aos demônios. Pois apenas o orgulho, o maior dos males, pode se servir dos bens que ele recebeu, como se ele não os tivesse recebido, e desviar em proveito próprio a glória que um benfeitor deve achar em seus benfeitos. 

Também à excelência e  inteligência é preciso unir o fruto que é a virtude; é pela virtude que buscamos e possuímos o Autor liberal de todas as coisas, Aquele a quem devemos, em tudo, render a glória que Lhe pertence; de outra forma seriamos rudemente punidos por não ter feito o que sabíamos que deveríamos fazer. Por que isso? Porque aquele que age desta forma, não quis adquirir a inteligência para fazer o bem, mas ao contrário, meditou sobre a sua própria iniquidade (Salmos 36, 4-5), e ele tentou, como um servo infiel, desviar e até trazer a proveito próprio a glória que seu excelente Mestre deveria recolher em bens, sabendo ele mesmo perfeitamente, pela virtude da inteligência, que ele mesmo não era a fonte. É, portanto, bastante evidente que a excelência, sem a inteligência, é inútil, e que a inteligência, sem a virtude, nos leva a perdição. Mas para o homem que possui a virtude, não seria a inteligência maléfica e nem a excelência inútil, ele clama e louva a Deus simplesmente nestes termos: "Não a nós, SENHOR, não a nós, mas ao teu nome dá glória, por amor da tua benignidade e da tua verdade" (Salmos 115,1). O que significa: Senhor, nós não Te atribuímos nem a inteligência nem a excelência, nós atribuimos tudo ao Teu nome, porque é dEle que nós recebemos tudo. 

Mas nós nos afastamos demais do nosso desígno, querendo provar que mesmo os que não conhecem a Cristo, sabem nem pela lei natural, pelos bens do corpo e da alma, que devem amar, também eles, a Deus, por causa do próprio Deus. De fato, para resumir em algumas palavras o que dissemos acima, qual é o infiel que não sabe que recebeu somente dAquele que faz o Seu sol nascer sobre bons e também sobre os maus, e faz cair chuva sobre os santos e também sobre os ímpios, todos os bens necessários à sua vida, dos quais já falei, como o alimento, a luz e o ar? Qual o homem, tão ímpio quanto seja, que atribuirá a excelência particular à espécie humana, que ele vê brilhar em sua alma, a outro a não ser ao que disse em Gênesis: "Façamos o homem a nossa imagem e semelhança" (Gênesis 1,26)? Quem verá o autor da inteligência em outro que não nAquele que ensina tudo aos homens? E de que mão pensaria ele receber ou ter recebido o dom da virtude, se não do Deus das virtudes? O Senhor merece, portanto, ser amado, pelo o que Ele é, pelo infiel, ainda que pouco O conheça, assim mesmo que não conheça a Cristo; também aquele que não ama a Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças, não tem desculpas [...]. 

São Bernardo de Claraval - O Tratado sobre o amor de Deus











sábado, 16 de julho de 2016

O casamento perfeito




Non tantum caro sed sipiritus unus erat.
"Eram um todo, tanto almas como corpos"

(Epitáfio de dois conjugues cristãos)




Punhamos de parte as concepções não civilizadas e civilizadas não cristãs, para expormos a ideia cristã do casamento. E não como se vive, em cada caso particular, mas como era e é considerado, imposto e organizado pela religião católica e como esta se esforça por fazê-lo viver. Deixemos também as formas neo-pagãs propostas pelo amor livre, a fim de expormos o esplendor humano da concepção cristã do casamento. 
O casamento é a comunidade total de vida de dois seres humanos, de sexo diferentes, comunidade resultante dum livre dom recíproco, feito por amor.

O casamento é a comunidade de vida total: é uma união de carne, de espírito, de alma (totalidade de intensidade), até a morte (totalidade de duração).

União de carne: esta é um dos elementos que distingue o amor da amizade. A amizade é viável entre pessoas do mesmo sexo, o amor não. A amizade é intimidade do coração, de espírito e alma; o amor também, mas, além disso, é coabitação completa e contínua numa família, e é intimidade carnal. Consiste, portanto, numa amizade mais íntima e total, porque se apodera de todo ser, físico e psíquico, e permite os enriquecimentos particulares, inerentes à sexualidade física. 

União de coração: comporta todos os elementos sentimentais e afetivos do amor, os que constituem essa doçura e embriaguez de se reverem, de viverem lado a lado, de sentirem alegria juntos um do outro, de aderirem um ao outro, de se complementarem um ao outro, de desabrocharem um para o outro, de mutuamente se desejarem a felicidade. Esta união de coração, duplicando a união da carne, distingue o amor humano do amor animal, a esposa da comparsa ocasional. 

União de espírito: termos que englobam todos os elementos intelectuais do amor: o acordar das concepções, das ideias, dos juízos, das maneiras de ver e pensar. Dizemos acordar numa troca amigável e amorosa e não o depotismo dum cônjugue autoritário sobre um cônjugue diminuído ou aniquilado¹. Esta união de espírito, junta à união da carne e de coração, distingue, a um novo título, o amor humano do amor animal, a esposa da mulher de um dia.

 União de alma: entendamos por esta todas as profundezas do ser, tanto natual como sobrenatual, todos os elementos tão profundamente enraizados na estrutura íntima dos indivíduos que deixam de ser claramente exprimíveis. É uma espécie de osmose, de aderência íntima, de consonância vivida, de intimidade supra-sensível, de pertença um do outro. Um vive de tal maneira no outro que as suas alegrias tornam-se as alegrias dele, os seus sucessos, os sucessos dele, como também os reveses dum, os reveses do outro, os perigos dum, os perigos do outro. Pertencem um ao outro; melhor: um é, de algum modo, o outro, suportando os dois as mesmas provações, sofrendo os dois os mesmos lutos, fiéis sempre, na dor como na alegria. E esta união de alma, reforçando as outras, distingue o esposo e a esposa do amante e da amante. Estes últimos, muitas vezes, são fiéis, unicamente na prosperidade. De ordinário, só os verdadeiros esposos permanecem unidos, mesmo nas provações.   

União até a morte: é o termo que marca a totalidade da união na duração. Amaram-se sem reserva; irão lado a lado, através das alegrias e das provações da vida, através dos atritos, das desilusões, dos possíveis choques, até ao declínio das forças, companheiros de ardor, na juventude, de trabalho, na idade madura, de solidão, na velhice. 
E esta união efetiva-se pelo livre dom que um ao outro se fazem, dom inspirado no amor. Há reciprocidade no dom. Damo-nos com as nossas riquezas materiais, forças físicas, recursos sentimentais, intelectuais e humanos; damo-nos e recebemos tudo o que o outro tem de riquezas semelhantes; damo-nos para sermos felizes, por meio de alguém e para tornar alguém feliz. O casamento não é a pura posse de outrem; não é a busca da nossa felicidade somente: isso seria egoísmo; não é também simples doação ao outro; é, e deve ser, 'união', isto é, posse e doação, ao mesmo tempo. A liberdade do dom total que fazemos de nós e o amor que dita este dom total constituem a grandeza do casamento, o seu esplendor humano. 

Não podemos imaginar uma concepção mais alta do casamento. É precisamente essa a que o cristianismo tentou inculcar aos homens. No entanto, está bem longe de ser realizada e vivida por todos, na sua perfeição. Muitas dela tem uma concepção mais egoísta e mais comesinha. Algumas buscam no casamento a sua própria liberdade e satisfação sentimental, de preferência à felicidade do esposo; aspiram, sobretudo, a ser rodeadas, aduladas e lisongeadas. Todavia, quase sempre, tem o desejo de se dedicar ao marido e aos filhos. Dificilmente encontramos uma rapariga de coração tão seco, tão egoísta e pouco feminino que só pensasse em si mesma. 
Dar-se totalmente, e para sempre, é viver um casamento tal como Deus o quis. Se as noivas tem esse amor e escolherem bem o eleito do seu coração, hão de fundar um lar profunda e intensamente feliz. Nele distribuirão sem medida a alegria e a felidade e lá a encontrarão também, por acréscimo. 

1. Não vamos consagrar um capítulo especial à autoridade masculina no lar. Que significa a asserção: o marido é o chefe do lar? Não implica nele superioridade alguma de natureza. Não há entre um homem e uma mulher um grau diferente de humanidade mas somente diferenças fisiológicas e psicológicas numa mesma humanidade. O homem e a mulher são diferentes, não desiguais; complementares, não subordinados, como pessoas humanas. Mas, no lar, como em toda a sociedade, tem de haver uma autoridade. O temperamento psicológico masculino é habitual e naturalmente mais apto e mais inclinado a exercer esta autoridade, o temperamento feminino mais expontâneamente disposto a aceitá-la. É esta a razão porque esta autoridade, indispensável no lar, pertence, por sua natureza, ao marido. De mais a mais, há ocasião para repartir judiciosamente os setores segundo as aptidões dos sexos. A autoridade masculina não tem o direito de se transformar numa absorção da personalidade feminina, numa dominação despótica: deve ser uma firmeza amante e delicada, exercendo-se, sobretudo, por via de conolusões, por troca de pontos de vista em comum. É neste sentido que, segundo a sã razão, como segundo o ensinamento cristão, o marido é o chefe da mulher. É-o não por superioridade humana, mas por indicações psicológicas das suas disposições nativas e por necessidade duma autoridade familiar, pois que a vida se encarrega de fazer adaptações e retificações necessárias. 

Fonte: A intimidade conjugal - O livro da esposa. Pierre Dufoyer


quinta-feira, 7 de julho de 2016

As riquezas do amor





"O amor é, por essência, único, constante, indefectível. São os homens que o traem." (Cmardonne)

Para corações de mulher, o amor é uma realidade maravilhosa. É a ele que aspiram, mais ou menos conscientemente, todas as raparigas, a partir dos primeiros anos de sua formação física. Sentem intensamente a necessidade de amar e ser amadas. É a idade, para as melhores ou mais preservadas, das amizades ardentes com tal ou tal companheira de estudo, das dedicações profundas e entusiastas a esta ou àquela professora; para as mais expostas, é a idade do convívio com os rapazes; para todas, dos sonhos sentimentais, das necessidades imprecisas, das impressões vivas de felicidade ou de solidão dolorosa, da expectativa de não sei que de grande, de belo, que deve torná-las prodigiosamente felizes. Saibam ou ignorem seu nome, é no Amor que pensam, é por ele que estão esperando. 
Mas ei-las noivas. O amor concreto nasceu-lhes nos corações e ficam totalmente sob o encanto dele. O futuro não lhes oferece dúvida alguma. Será feliz. Sentem-se seguras daquele que escolheram. É grande, belo, forte. Teriam outras falhado no seu lar. Contam-se casos... Mas elas, apesar de tudo, não hão de falhar no seu. Tem a convicção íntima disso. O seu amor irá crescendo; a sua união será deliciosa, envolvendo o marido em tanta ternura, tanto calor de  coração, e ele, em troca, será tão bom, tão dedicado, e sustê-las-á tão bem com sua força que a felicidade será durável. <<Amanhã, os dois, educaremos os nossos filhos: serão gentis, inteligentes, dóceis... e, ainda por cima, crianças encantadoras>> Tais os projetos e os sonhos de todas as noivas... Como o amor é cheio de encantos! 
Seria uma tolice velas de crepe tão belos sonhos que são a alegria, o sol dos meses de noivado. De  modo nenhum maldiremos o amor. Se não houver traição por parte de qualquer um dos cônjugues, será mais belo ainda na sua realidade concreta, embora ligeiramente diferente do que se havia sonhado. 
Mas para que seja esse belo e grande amor que enche de sol a vida, é necessário, em primeiro lugar, ter escolhido bem o companheiro de viagem, não pela estatura, vigor físico e ar forte e decidido..., qualidades superficiais, mas pelo seu valor profundo e real, consciência, sentido do dever, coragem no trabalho, delicadeza.
Em seguida, não devemos ficar numa concepção um tanto romântica e irreal do amor, mas duplicar a sua grande riqueza sentimental nativa com uma visão clara da inteligência e com uma firme decisão da vontade de amar sempre, aconteça o que acontecer, para além das decepções parciais, dos choques inevitáveis, dos sofrimentos inelutáveis, o esposo que tivermos escolhido. Amar implica o saber perdoar e também sofrer. 
O amor é grande e nobre, quando, vivido na sua plenitude, permanece fiel às suas exigências. Então é um dom total de si e um apelo total do outro. 
Como um dom total de si para tornar o outro feliz, aspira a devotar-se plenamente ao ser amado, julga nulos os sacrifícios feitos pela sua felicidade. A noiva é já felicíssima, ao pensar que poderá aninhar, acarinhar, cercar duma ternura sem reservas o amado de sua alma. Não encara limitação alguma de tempo ao seu amor: é para sempre que se lhe entrega. 
Ao mesmo tempo que dom total, o amor é um apelo total do outro: a noiva é atraída pela força e energia do noivo, conta com ele para apoiar a sua fragilidade; deseja dessendentar-se na sua ternura. Ser amada, não é uma das aspirações mais ardentes da mulher?  Tem necessidade do noivo para derramar sobre ele os tesouros de afeto e de amor que tem dentro de si; é-lhe tão necessário que, sem ele, a vida torná-se-ia insípida, nunca seria feliz...
O amor não tolera qualquer limite, nem à amplitude do dom nem à sua duração. Todo o advérbio o trai. Diz <<Eu amo-te>>, simplesmente; teria consciência de negar a si mesmo, se dissesse <<Eu amo-te agora>>. <<Amo-te por algum tempo>>; afrouxaria dizendo: <<Amo-te muito>>; só pode dizer: <<Amo-te>>, envolvendo neste laconismo, toda a intensidade, toda a duração, e negando a restrição. O amor não prevê o divórcio, e se há noivos que o preveem, ignoram o que é amar. 
O amor é total e é por isso que exige a intimidade dos corpos, dos corações e dos espíritos: a vida em comum. Sofre com as reticências, com os segredos ciosamente guardados, com as inquietações que passam no olhar, com as rugas que se cavam na fronte e que o noivo ou esposo se nega a explicar, com os recantos de sombra e mistério reservados no coração; tudo quer saber da vida anterior do bem-amado e dos seus pensamentos presentes;  quer ser o único bem, exige a plenitude do coração, receia todo rival, aspira à posse total, decisiva e definitiva, à unificação, à identificação com o ser amado. 
Tal é, no esplendor nativo, em toda a radiante espontaneidade, o amor dos noivos. 
E, contudo, seria para desejar que este amor se não reduzisse unicamente ao sentimento expontâneo, por magnífico que seja. <<A grande, a trágica ilusão das almas amantes, é julgarem que a força e profundeza do estado afetivo oferecem uma garantia da sua duração>> (Klages). Basta olhar à nossa volta: quantos lares não começaram por felizes noivados, na febre do amor, e depois foram arrefecendo! O amor, baseado unicamente no sentimento, sofre esta lenta usura que corrói todas as coisas humanas. Se o amor se funda apenas na linha, na esbeltez, na juventude do noivo, no simples encanto das suas qualidades físicas masculinas, no atrativo espontâneo que delas resulta,  com elas passará também. 
Sem dúvida que são necessários essa atração e esse afeto sentimental entre os noivos e esposos. Devemos amar-nos, para vir-mos a desposarmos. Mas é necessário, além disso, que este amor seja fundado na razão e, para esse efeito, ter escolhido o noivo pelas suas qualidades profundas de consciência, de coragem no trabalho... que duram mais do que a linha e a cabeleira! 
É preciso construir o amor sobre a vontade. Todas as esposas conhecem decepções. <<Desposa-se um noivo e vive-se com um marido. Não é absolutamente o mesmo homem>> (Tinayre). Para que a desilusão sentimental originada por essas decepções não varra o amor, temos que estar decididas a nutrir em nós uma afeição forte, tenaz, que perdoará, sofrerá com paciência e fará os esforços de adaptação necessários. 
Temos que fundar o amor sobre a Fé. A fidelidade de coração como de corpo, é um verdadeiro dever de estado do qual devemos dar contas a Deus. Somos todas para o nosso esposo e para o nosso lar: << Doravante, não procurarei mais a quem agradar, mas sim agradar a quem escolhi>> (Alain). 
Tudo isso é evidente para as noivas; tudo isso lhes parece naturalíssimo. É o que conseguem entrever no fogo do seu amor nascente. Todavia, o dom conjugal não será completo, não será amor seguramente durável, se a este ardor de sentimentos não vem juntar-se uma clara decisão da vontade; decisão de não se deixar desconcertar pelas borrascas e de amar fielmente, através dos sacrifícios possíveis e dos eventuais desencantamentos. <<Um amor não é verdadeiramente grande e durável senão na medida em que se nutre das próprias dores e decepções semeadas em seu caminho>> (Thibon). 
Eis o genuino grande Amor, aquele que a noiva deve esforçar-se por manter e fazer crescer dentro de si: amor quente do coração, amor claro da inteligência, amor forte da vontade, amor- missão divina. Só ele é o amor humano em toda a sua plenitude, o amor perfeito. 

Fonte: Livro A intimidade conjugal - o livro da esposa.