segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem

Fonte: Livro Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem 
Autor: São Luís Maria Grignion de Montfort; Missionário Apostólico, Fundador da Congregação dos Missionários da Companhia de Maria e da Congregação das Filhas da Sabedoria. 
44° edição- Editora Vozes- Petrópolis, 2014.

ARTIGO IV

Temos necessidade de um medianeiro junto do
próprio medianeiro que é Jesus Cristo

83. Quarta verdade. - É muito mais perfeito, porque é mais humilde, tomar um medianeiro para nos aproximarmos de Deus. 
Se nos apoiarmos sobre os nossos próprios trabalhos, habilidade, e preparações, para chegar a Deus e agradar-lhe, é certo que todas as nossas obras de justiça ficarão manchadas e peso insignificantemente terão junto de Deus, para movê-lo a unir-se a nós e nos atender, pois, como acabo de demostrar, nosso íntimo é extremamente corrupto. E não foi sem razão que ele nos deu medianeiros junto de sua majestade. Viu nossa iniquidade e incapacidade, apiedou-se de nós, e, para dar-nos intercessores poderosos junto de sua grandeza; de sorte que negligenciar esses medianeiros e aproximar-se diretamente de sua santidade sem outra recomendação é faltar ao respeito a um Deus tão alto e tão santo; é menosprezar este Rei dos reis, como não se faria a um rei ou príncipe da terra, do qual ninguém se aproxima sem a recomendação de um amigo. 
84. Nosso Senhor é nosso advogado e medianeiro de redenção junto de Deus Pai; é por intermédio de redenção junto de Deus Pai; é por intermédio dele que devemos rezar com toda a Igreja triunfante e militante; é por intermédio dele que obtemos acesso junto de sua mejestade, em cuja presença não devemos jamais aparecer, a não ser amparados e revestidos dos méritos de Jesus Cristo, como Jacob revestiu-se da pele de cabrito para receber a benção de seu pai Isaac. 

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85. Mas temos necessidade de um medianeiro junto do próprio medianeiro? Será a nossa pureza suficiente para que nos permita unir-nos diretamente a Ele, e por nós mesmos? Não é Ele Deus, em tudo igual ao Pai, e, por conseguinte, o Santo dos santos, digno de tanto respeito como seu Pai? Se Ele, por sua caridade infinita, se constituiu nosso penhor e medianeiro  junto de Deus seu Pai, para aplacá-lo e pagar-lhe o que lhe devíamos, quer isto dizer que lhe devemos menos respeito e temor por sua majestade e santidade? 
Digamos, pois, ousadamente, com São Bernardo¹, que temos necessidade de um medianeiro junto do Medianeiro por excelência, e que Maria Santísima é a única capaz de exercer esta função admirável. Por ela Jesus Cristo veio a nós, e por ela devemos ir a Ele. Se receamos ir diretamente a Jesus Cristo Deus, em vista de sua grandeza infinita, ou por causa de nossa baixeza, ou, ainda, devido aos nossos pecados, imploremos afoitamente o auxílio e intercessão de Maria nossa Mãe; ela é boa e terna; nela não há severidade nem repulsa; tudo nela é sublime e brilhante; contemplando-a, vemos nossa pura natureza. Ela não é o sol, que, pela força de seus raios, nos poderia deslumbrar em nossa fraqueza, mas é bela e suave como a lua (Ct 6,9), que recebe a luz do sol e a tempera para que possamos suportá-la. É tão caridosa que a ninguém repele, que implore sua intercessão, ainda que seja um pecador; pois, como dizem os santos, nunca se ouviu dizer, desde que o mundo é mundo, que alguém que tenha recorrido à Santíssima Virgem, com confiança e perseverança, tenha sido desamparado ou repelido². Ela é tão poderosa que jamais foi desatendida em seus pedidos; basta-lhe apresentar-se diante de seu Filho para pedir-lhe algo, e Ele só ouve o pedido para logo conceder-lhe o que ela pede; é sempre amorosamente vencido pelos seios, pelas entranhas e pelas preces de sua querida Mãe. 
86. Tudo isto é tirado de São Bernardo e de São Boaventura. De acordo com suas palavras, temos três degraus a subir para chegar a Deus: o primeiro, mais próximo de nós e mais conforme à nossa capacidade, é Maria; o segundo é Jesus Cristo; e o terceiro é Deus Pai³. Para ir a Jesus é preciso ir a Maria, pois ela é a medianeira de intercessão. Para chegar ao Pai eterno é preciso ir a Jesus, que é nosso medianeiro de redenção. Ora, pela devoção que preconizo, mais adiante, é esta a ordem perfeitamente observada. 

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1. Sermo in Domin, inf. oct. Assumptionis, n.2: "Opus est enim mediatore ad Mediatorem istum, nec alter nobis utilior quam Maria". Todo este parágrafo é tirado deste sermão de São Bernardo. 
2. Termina aqui a citação de São Bernardo. A frase seguinte é tirada de SÃO BOAVENTURA. Sermo 2 in B.V.M. 
3. "Per Mariam ad Christum accedimus, et per Christum gratiam Spiritus Sancti invenimus" (SÃO BOAVENTURA. Speculum B.V., lect. VI, § 2). Cf. tb. LEÃO XIII. Encíclica "Octobri mense", 22-9-1891. 




quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem

Fonte: Livro Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem 
Autor: São Luís Maria Grignion de Montfort; Missionário Apostólico, Fundador da Congregação dos Missionários da Companhia de Maria e da Congregação das Filhas da Sabedoria. 
44° edição- Editora Vozes- Petrópolis, 2014.


ARTIGO III
Devemos despojar-nos do que há de mau em nós

78. Terceira verdade. - Nossas melhores ações são ordinariamente manchadas e corrompidas pelo fundo de maldade que há em nós. Quando se despeja água limpa e clara em uma vasilha suja, que cheira mal, ou quando se põe vinho em uma pipa cujo interior está azedado por outro vinho que aí antes se depositara, a água límpida e o vinho bom adquirem facilmente o mau cheiro e o azedume dos recipientes. Do mesmo modo, quando Deus põe no vaso de nossa alma, corrompido pelo pecado original e pelo pecado atual, suas graças e orvalhos celestiais ou o vinho delicioso de seu amor, estes dons divinos ficam ordinariamente estragados ou manchados pelo mau germe e mau fundo que o pecado deixou em nós; nossas ações, até as mais sublimes virtudes, disto se ressentem. É, portanto, de grande importância, para adquirir a perfeição, que só se consegue pela união com Jesus Cristo, despojar-nos de tudo que de mau existe em nós. Do contrário, Nosso Senhor, que é infinitamente puro e odeia infinitamente a menor mancha na alma, nos repelirá e de modo algum se unirá a nós.

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79. Para despojar-nos de nós mesmos, é preciso conhecer primeiramente e bem, pela luz do Espírito Santo, nosso fundo de maldade, nossa incapacidade para todo bem, nossa fraqueza em todas as coisas, nossa inconstância em todo tempo, nossa indignidade de toda graça e nossa iniquidade em todo lugar. O pecado de nossos primeiros pais nos estragou completamente, nos azedou, inchou e corrompeu, como o fermento azeda, incha e corrompe a massa em que é posto. Os pecados atuais que cometemos, sejam mortais ou veniais, perdoados que estejam, aumentam em nós concupiscência, a fraqueza, a inconstância e a corrupção, deixando maus traços em nossa alma. 
Nosso corpo é tão corrompido, que o Espírito Santo ( Rm 6,6; Sl 50,7) o chama corpo do pecado, concebido no pecado, nutrido no pecado, e só apto para o pecado, corpo sujeito a mil e mil males, que se corrompe sempre mais cada dia, e que só engendra a doença, os vermes, a corrupção. 
Nossa alma, unida ao corpo, tornou-se tão carnal, que é chamada carne: "Toda carne tinha corrompido o seu caminho" (Gn 6,12). Toda a nossa herança é orgulho e cegueira no espírito, endurecimento no coração, fraqueza e inconstância na alma, concupiscência, paixões revoltadas e doenças no corpo. Somos, naturalmente, mais orgulhosos que os pavões, mais apegados à terra que os sapos, mais feios que os bodes, mais invejosos que as serpentes, mais glutões que os porcos, mais coléricos que os tigres e mais preguiçosos que as tartarugas; mais fracos que os caniços, e mais inconstantes do que um catavento. Tudo que temos em nosso íntimo é nada e pecado, e só merecemos a ira de Deus e o inferno eterno¹. 
80. Depois disto, por que nos admirar de ter Nosso Senhor dito que quem quisesse segui-lo devia renunciar a si mesmo e odiar a própria alma; que aquele que amasse sua alma a perderia e quem a odiasse se salvaria? (Jo 12,25). A Sabedoria infinita, que não dá ordens sem motivo, só ordena que nos odiemos porque somos grandemente dignos de ódio: só Deus é digno de amor, enquanto nada há de mais digno de ódio do que nós. 
81. Em segundo lugar, para despojar-nos de nós mesmos, é preciso que todos os dias morramos para nós, isto é, importa renunciaremos às operações das faculdades da alma e nos sentidos do corpo, precisamos ver como se não víssemos, ouvir como se não ouvíssemos, servir-nos das coisas deste mundo, como se não o fizéssemos (cf. 1Cor 7,29-31), o que São Paulo chama de morrer todos os dias: "Quotidie morior" (1Cor 15-31). "Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica só, e não produz fruto apreciável": "Nisi granum frumenti cadens in terram mortuum fuerit, ipsum solum Manet" (Jo 12,24-25). Se não morrermos a nós mesmos, e se as mais santas devoções não nos levarem a esta morte necessária e fecunda, não produziremos fruto que valha, nossas devoções serão unúteis, todas as nossas obras de justiça ficarão manchadas por nosso amor-próprio e nossa própria vontade, e Deus abominará os maiores sacrifícios e as melhores ações que possamos fazer. Na hora da nossa morte, teremos as mãos vazias de virtudes e de méritos, e não brilhará em nós a menor centelha do puro amor, que só é comunicado às almas mortas a si mesmas, almas cuja vida está oculta com Jesus Cristo em Deus (Cl 3,3).
82. Em terceiro lugar, é preciso escolher, entre todas as devoções à Santíssima Virgem, a que nos leva com mais certeza a este aniquilamento do próprio céu. Esta será a devoção melhor e mais santificante, pois é mister reconhecer que nem tudo que luz é ouro, nem tudo que é doce é mel, e nem tudo que é fácil de fazer e praticar é mais santificante. Do mesmo modo que a natureza tem segredos para fazer em pouco tempo, sem muitos gastos e com facilidade, certas operações naturais, há segredos, na ordem da graça, pelos quais se fazem, em pouco tempo, com doçura e facilidade, operações sobrenaturais, como despojar-nos de nós mesmos, encher-nos de Deus, e tornar-nos perfeitos. 
A prática que quero revelar é um desses segredos da graça, desconhecido da maior parte dos cristãos, conhecido de poucos devotos, praticado e apreciado por um número bem diminuto. Antes de abordar esta prática, apresento uma quarta verdade que é consequente da terceira. 

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1. São Luís Maria fala de nosso nada e de nossa impotência na ordem sobrenatural, sem o socorro da graça (Cf. com efeito, mais adiante o n. 83: Nosso íntimo... tão corrompido, se nos apoiamos em nossos próprios trabalhos para chegar a Deus...).