sábado, 25 de fevereiro de 2017

Lava-pés e confissão dos pecados





(...) Depois de o Senhor ter explicado a necessidade do lava-pés a Pedro, este replica, que sendo assim, Ele deveria lavar-lhe não só os pés, mas também as mãos e a cabeça. Mais uma vez, a resposta de Jesus é enigmática: "Quem se banhou não tem necessidade de se lavar senão os pés, porque esta inteiramente puro" (13,10). Que significa isso?
A frase de Jesus supõe obviamente que os discípulos, antes de cear, tinham tomado um banho completo e agora, à mesa, só precisavam lavar os pés. É claro que João vê, nessas palavras, um sentido simbólico mais profundo, que não é fácil de individuar. Consideremos, em primeiro lugar, que o lava-pés, como vimos, não é um sacramento particular, mas significa a totalidade do serviço salvífico de Jesus: o sacramentum do seu amor, no qual Ele nos imerge na fé e que é o verdadeiro lavacro de purificação do homem.
Mas, nesse contexto, o lava-pés, indo além do seu simbolismo essencial, adquire ainda um significado mais concreto, que remete para o costume da vida da Igreja Primitiva. De que se trata? O "banho completo" pressuposto só pode referir-se ao Batismo, pelo qual o homem é imerso uma vez por todas em Cristo e recebe a sua nova identidade de ser em Cristo. Esse processo fundamental, no qual não somos nós que nos fazemos cristãos, mas tornamo-nos cristãos graças à ação do Senhor na sua Igreja, não é repetível. Porém, na vida dos cristãos, para a comunhão convival com o Senhor, tal processo tem necessidade incessante de uma assimilação: o "lava-pés". De que se trata? Não existe uma resposta absolutamente segura. Mas parece-me que a Primeira Carta de João nos coloca na pista justa e nos indica qual é o significado. Eis o texto: "Se dissermos: 'não temos pecado', enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós. Se confessarmos nossos pecados, Ele, que é fiel e justo, perdoará nossos pecados e nos purificará de toda a injustiça. Se dissermos: 'não pecamos', fazemos d'Ele um mentiroso e a sua palavra não está em nós" (1,8-10). Uma vez que também os batizados continuam pecadores, têm necessidade da confissão dos pecados que "nos purifica de toda a injustiça". 
A palavra "purificar" cria a ligação íntima com o texto do lava-pés. A mesma prática da confissão dos pecados, com a vinda do judaísmo, é testemunhada na Carta de São Tiago (5,16) e também na Didaché. Nesta, lemos: "Na comunidade, deves confessar os teus pecados" (4,14), e ainda: "No dia do Senhor, deveis reunir-vos, partir o pão e agradecer, depois de terdes primeiro confessado os vossos pecados" (14,1). Franz MuBner, aderindo a Rudolf Knopf, comenta: "Em ambos os textos, pensa-se numa breve confissão pública individual" (Jakobusbrief, p.226, nota5). Seguramente, nesta confissão dos pecados, que no âmbito do influxo do judeu-cristianismo fazia parte da vida das comunidades das origens cristãs, não se pode ainda identificar o sacramento da Penitência tal como ele haveria de desenvolver-se no decurso da história da Igreja, mas por certo "uma etapa rumo a ele" (ibid., p. 226). 
No fim de contas, o núcleo é este: a culpa não deve continuar veladamente a infectar a alma, envenenando-a a partir de dentro. A culpa precisa da confissão. Por meio da confissão, trazemo-la à luz, expomo-la ao amor purificador de Cristo (cf. Jo 3,20-21). Na confissão, o Senhor lava sempre de novo os nossos pés sujos e prepara-nos para a comunhão convival com Ele.

Lançando um olhar retrospectivo ao conjunto deste capítulo do lava-pés, podemos dizer que, nesse gesto de humildade, em que se torna visível a totalidade do serviço de Jesus na sua vida e morte, o Senhor está diante de nós como o servo de Deus: como Aquele que por nós Se fez servo, que carrega o nosso peso, dando-nos assim a verdadeira pureza, a capacidade de nos aproximarmos de Deus. No segundo "Canto do Servo do Senhor", o profeta Isaías, encontra-se uma frase que de certo modo antecipa a linha de fundo da teologia joanina da paixão: O Senhor "disse-me: Tu és o meu servo, em quem me gloriarei (LXX: doxasthesomai)" (cf. 49,3).


Essa ligação entre o serviço humilde e a glória (dóxa) é o núcleo de toda a narração da paixão em São João: é precisamente no abaixamento de Jesus, na sua humilhação até a cruz, que transparece a glória de Deus, é glorificado Deus Pai e, n'Ele, Jesus. No Domingo de Ramos, uma pequena cena - poder-se-ia classificá-la como a versão joanina da narração do monte das Oliveiras - resume tudo isso: "Minha alma está agora conturbada. Que direi? Pai, salva-Me desta hora? Mas foi precisamente para esta hora que Eu vim! Pai, glorifica o teu nome". Veio então do Céu uma voz: "Eu O glorifiquei e O glorificarei novamente" (12,27-28). A hora da cruz é a hora da verdadeira glória de Deus Pai e de Jesus. 


Joseph Ratzinger

Bento XVI

Livro: Jesus de Nazaré - Da entrada em Jerusalém até a Ressureição

Nenhum comentário:

Postar um comentário