Fonte: Livro Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem
Autor: São Luís Maria Grignion de Montfort; Missionário Apostólico, Fundador da Congregação dos Missionários da Companhia de Maria e da Congregação das Filhas da Sabedoria.
44° edição- Editora Vozes- Petrópolis, 2014.
Artigo II
CONSEQUÊNCIAS
PRIMEIRA CONSEQUÊNCIA. - Maria é a Rainha dos corações
37. Do que ficou dito, deve-se concluir evidentemente que:
Primeiro, Maria recebeu de Deus um grande domínio sobre as almas dos eleitos; pois ela não pode estabelecer neles sua residência, como Deus Pai lhe ordenou; não pode formá-los, nutri-los, fazê-los nascer para a vida eterna, como sua mãe, possuí-los como sua herança e partilha, formá-los em Jesus Cristo e Jesus Cristo neles; não pode implantar em seus corações as raízes de suas virtudes, e ser a companheira inseparável do Espírito Santo em todos os seus trabalhos de graça; não pode, repito, fazer todas as coisas, se não tiver direito e domínio sobre suas almas, por uma graça singular do Altíssimo. E esta graça, que lhe deu autoridade sobre o Filho único e natural de Deus, lhe foi concedida também sobre seus filhos adotivos, não só quanto ao corpo, o que seria pouco, mas também quanto à alma.
38. Maria é a Rainha do céu e da terra, pela graça, como Jesus é o Rei por natureza e conquista. Ora, como o reino de Jesus Cristo compreende principalmente o coração ou o interior do homem, conforme a palavra: "O reino de Deus está no meio de vós" (Lc 17,21), o reino da Santíssima Virgem está principalmente no interior do homem, isto é, em sua alma, e é principalmente nas almas que ela é mais glorificada com seu Filho, do que em todas as criaturas visíveis, e podemos chamá-la com os santos a Rainha dos corações.
SEGUNDA CONSEQUÊNCIA.- Maria é necessária aos homens para chegarem ao seu último fim
39. Em segundo lugar, é preciso concluir que a Santíssima Virgem, sendo necessária a Deus, duma necessidade chamada hipotética, devido à sua vontade, é muito mais necessária aos homens para chegarem a seu último fim. Não se confunda, portanto, a devoção à Santíssima Virgem com a devoção aos outros santos, como se não fosse mais necessária que a destes, e apenas de super-rogação.
§ I. A devoção à santa Virgem é necessária a todos os homens para conseguirem a salvação.
40. O douto e piedoso Suárez, da Companhia de Jesus, o sábio e devoto Justo Lípsio, doutor da universidade de Lovaina, e muitos outros, provaram incontestavelmente, apoiados na opinião dos Santos Padres, entre outros, Santo Agostinho, Santo Efrém, diácono de Edessa, São Cirilo de Jerusalém, São Germano de Constantinopla, São João de Damasco, Santo Anselmo, São Bernardo, São Bernardino, Santo Tomás e São Boaventura, que a devoção à Santíssima Virgem é necessária à salvação, e que é um sinal infalível de condenação - opinião do próprio Ecolampádio e vários outros hereges, - não ter estima e amor à Santíssima Virgem. Ao contrário, é indício certo de predestinação ser-lhe inteira e verdadeiramente devotado¹.
41. As figuras e palavras do Antigo e do Novo Testamento o provam; a opinião e os exemplos dos santos o confirmam; a razão e a experiência o ensinam e demonstram; o próprio demônio e seus asseclas, premidos pela força da verdade, viram-se muitas vezes constrangidos a confessá-lo a seu pesar. De todas as passagens dos Santos Padres e doutores, que compilei para provar esta verdade, cito apenas uma, para não me alongar: "Tibi devotum esse, est arma quaedam salutis quae Deus his dat quos vult salvos fieri..." (São João Damasceno) - Ser vosso devoto, ó Virgem Santíssima, é uma arma de salvação que Deus dá, àqueles que quer salvar.
(1. A verdadeira devoção à Santíssima Virgem consiste em se lhe devotar e entregar. O culto de dulia é a dependência, a servidão (S. TH. Sum. Theol 2-2, q. 103, a. 3, in fine corp.); o culto de hiperdulia é a consiste numa dependência mais perfeita à Santíssima Virgem, ou, em outras palavras na escravidão preconizada por São Luís Maria Montfort.)
42. Eu poderia repetir aqui várias histórias que provam o que afirmo. Entre outras, primeiro, aquela que vem narrada nas crônicas de São Francisco, em que se conta que o santo viu, em êxtase, uma escada enorme, em cujo topo, apoiado no céu, avultava a Santíssima Virgem. E o santo compreendeu que aquela escada ele devia subir para chegar ao céu; segundo, a outra, narrada nas crônicas de São Domingos: Quando o santo pregava o rosário nas proximidades de Carcassona, quinze mil demônios, que possuíam a alma de um infeliz herege, foram obrigados, por ordem da Santíssima Virgem, a confessar muitas verdades grandes e consoladoras, referentes à devoção a Maria. E eles, para própria confusão, o fizeram com tanto ardor e clareza que não se pode ler essa autêntica narração e o panegírico, que o demônio, embora a contragosto, fez da devoção mariana, sem derramar lágrimas de alegria, ainda que pouco devoto se seja da Santíssima Virgem.
§ II. A devoção à Santíssima Virgem é mais necessária ainda àqueles chamados a uma perfeição particular.
43. Se a devoção à Virgem Santíssima é necessária a todos os homens para conseguirem simplesmente a salvação, é ainda mais para aqueles que são chamados a uma perfeição particular; nem creio que uma pessoa possa adquirir uma união íntima com Nosso Senhor, sem uma grande fidelidade ao Espírito Santo, sem uma grande união com a Santíssima Virgem e uma grande dependência de seu socorro.
44. Só Maria achou graça diante de Deus (Lc 1,30) sem auxílio de qualquer outra criatura. E todos, depois dela, que acharam graça diante de Deus, acharam-na por intermédio dela e é só por ela que acharão graça os que ainda virão¹. Maria era cheia de graça quando o arcanjo Gabriel a saudou (Lc 1,28) e a graça superabundou quando o Espírito Santo a cobriu com sua sombra inefável (Lc 1,35). E de tal modo ela aumentou essa dupla plenitude, de dia a dia, de momento a momento, que chegou a um ponto imenso e inconcebível de graça, de sorte que o Altíssimo a fez tesoureira de todos os seus bens, dispensadora de suas graças, para enobrecer, elevar e enriquecer a quem ela quiser, para fazer entrar quem ela quiser no caminho estreito do céu, para deixar passar, apesar de tudo, quem ela quiser pela porta estreita da vida eterna; e para dar o trono, o cetro, e a coroa de rei a quem ela quiser. Jesus é em toda parte e sempre o fruto e o Filho de Maria; e Maria é em toda parte a verdadeira árvore que dá fruto da vida, e a verdadeira mãe que o produz².
(2. Cf. acima, n.33).
45. À Maria somente Deus confiou as chaves dos celeiros do divino amor, e o poder de entrar nas vias mais sublimes e mais secretas da perfeição, e de nesses caminhos fazer entrar os outros. Só Maria dá aos miseráveis filhos de Eva infiel a entrada no paraíso terrestre, para aí espairecerem agradavelmente com Deus, para aí, com segurança, se ocultarem de seus inimigos, para aí, sem mais receio da morte, se alimentarem deliciosamente do fruto das árvores da vida e da ciência do bem e do mal, e para sorverem longamente as águas celestes desta bela fonte que jorra com tanta abundância; ou, melhor, como ela mesma é esse paraíso terrestre ou essa terra virgem e abençoada, da qual Adão e Eva, pecadores, foram expulsos, ela só dá entrada àqueles, que lhe apraz deixar entrar, e para torná-los santos.
46. Todos os ricos do povo, para me servir da expressão do Espírito Santo (Sl 44,13), suplicarão, conforme a explicação de São Bernardo, vossa face em todos os séculos, e particularmente no fim do mundo; isto é, os mais santos, as almas mais ricas em graça e em virtudes serão as mais assíduas em rogar à Santíssima Virgem que lhes esteja sempre presente, como seu perfeito modelo a imitar, e que as socorra com seu auxílio poderoso.
47. Disse que isto acontecerá particularmente no fim do mundo e em breve, porque o Altíssimo e sua santa Mãe devem suscitar grandes santos, de uma santidade tal que sobrepujarão a maior parte dos santos, como os cedros do Líbano se avantajam às pequenas árvores em redor, segundo revelação feita a uma santa alma.
48. Estas grandes almas, cheias de graça e de zelo, serão recolhidas em contraposição aos inimigos de Deus a borbulhar em todos os cantos, e elas serão especialmente devotas da Santíssima Virgem, esclarecidas por sua luz, alimentadas de seu leite, conduzidas por seu espírito, sustentadas por seu braço e guardadas sob sua proteção, de tal modo que combaterão, derrubarão com uma das mãos e edificarão com a outra (cf. Ne 4,17). Com a direita combaterão, derrubarão, esmagarão os hereges com suas heresias, os cismáticos com seus cismas, os idólatras com sua idolatrias, e os ímpios com suas impiedades; e com a esquerda edificarão o templo do verdadeiro Salomão e a cidade mística de Deus, isto é, a Santíssima Virgem que os Santos Padres chamam "o templo de Salomão"³ e "a cidade de Deus"4. Por suas palavras e por seu exemplo, arrastarão todo o mundo à verdadeira devoção e isto lhes há de atrair inimigos sem conta, mas também vitórias inumeráveis e glória para o único Deus. É o que Deus revelou a São Vicente Ferrer, grande apóstolo de seu século, e que se encontra assinalado em uma de suas obras.
(3. "Templum Salomonis". Idiota, De B. V., p. XVI, contemplação 7.)
(4. "Civitas Dei" SANTO AGOSTINHO. Enarrat in Ps. 142, n.3).
O mesmo parece ter predito o Salmo 58 (14,15), em que se lê: "Et scient quia Deus dominabitur Jacob et finium terrae; convertentur ad vesperam, et famem patientur ut canes, et circuibunt civitatem - E saberão que Deus reinará sobre Jacob, e até os confins da terra; voltarão à tarde, e padecerão fome como cães, e rodearão a cidade, em busca do que comer". Esta cidade que os homens encontrarão no fim do mundo para se converterem e saciarem a sua fome de justiça, é a Santíssima Virgem, que o Espírito Santo denomina "cidade de Deus" (Sl 86,3).