quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Trecho 12 - Tratado da Conformidade com a vontade de Deus





 Finalmente devemos unir-nos à vontade de Deus no que toca à nossa morte, tanto no tempo, como na maneira que Deus tenha determinado que ela nos chegue. Santa Gertrudes (L. 1. Vita. C. 11) subindo uma vez ao monte, perdeu o equilíbrio e caiu em um vale. Suas companheiras perguntaram-lhe se não temia morrer sem os sacramentos, ao que a santa respondeu: "Eu tenho grande desejo de morrer com os Sacramentos, porém deixo isso à vontade de Deus, porque a melhor disposição para a morte é voluntariamente submeter-nos ao que Deus tiver determinado; portanto desejo a morte que o Senhor for servido enviar-me". São Gregório relata em seus diálogos (L. 3 C. 27) que os vândalos¹, tendo condenado à morte certo sacerdote chamado Santolo, lhe deixaram a escolha do gênero de morte. O santo homem recusou escolher, e disse: "Eu estou nas mãos de Deus, e receberei aquela morte que Ele permitir que vós me deis; não quero outra". Este ato foi tanto do agrado do Senhor, que aqueles bárbaros, tendo resolvido degolá-lo, o braço do algoz, quando ia descarregar o golpe foi suspendido; e aqueles homens à vista de tão grande milagre lhe concederam a vida. Portanto, quando ao gênero de morte, devemos considerar o melhor aquele que Deus nos tiver determinado. Digamos sempre, quando pensarmos na morte: 

- Senhor, salva a minha alma, e decretai a minha morte como vos aprouver.

Também devemos unir-nos com a divina vontade quanto ao tempo da nossa morte. O que é este mundo senão uma prisão na qual sofremos e estamos em contínuo risco de perder a Deus? A isto exclamou Davi: "Soltai a minha alma de sua prisão" (Sl 141,8). Isto fazia Santa Teresa suspirar pela morte. Quando ela ouvia as horas do relógio alegrava-se, e consola-se que uma hora de sua vida estava passada, hora de perigo de perder a Deus. O padre Ávila dizia que aquele que não está em disposição imprópria para morrer, deve desejar a morte pelo perigo de perder a divina graça durante a vida. Que coisa pode ser mais desejável e mais deleitosa do que assegurarmo-nos, por uma santa morte, da impossibilidade de perder o favor e a graça de Deus? Mas vós dizeis que nada tendes feito e adquirido para a vossa alma. Porém, se Deus quisesse que vós agora morrêsseis, que faríeis depois se tivésseis vivido contra a vontade de Deus? Quem sabe se teríeis aquele feliz fim que esperais? Quem sabe se mudaríeis vossos costumes, se cairíeis em novas culpas e vos perderíeis? E então, se nada fizésseis enquando vivêsseis não vos seria impossível o não cometer culpas, por leves que fossem. "Por que, pois", exclama São Bernardo, "por que desejamos nós a vida, a qual quanto mais se prolonga, mais pecaminosa é? E é certo que um único pecado venial desagrada mais a Deus do que lhe agradam todas as obras boas que possamos fazer". 

Eu digo mais, aquele que pouco deseja o Céu, prova que tem pouco amor de Deus. Quem ama deseja a presença do objeto amado; porém nós não podemos ver a Deus se não deixarmos a terra; e por consequência os santos suspiravam pela morte, para poderem ir ver o seu amado Senhor: assim exclamava Santo Agostinho: "Ó, que eu possa morrer, que possa eu ir ver-te". Também São Paulo: "Desejava me ver livre do cárcere do corpo e estar com Jesus Cristo" (Fl 1,23). Igualmente Davi: "Quando irei e aparecerei diante de Deus? (Sl 41,3). E assim também dizem todas as almas que amam a Deus. Certo autor refere (Flores. Emil.) (Graul. 4. C. 68.) que um cavalheiro indo caçar a um bosque ouviu um homem cantando melodiosamente; parou e viu um pobre leproso cheio de chagas. Perguntou-lhe o caçador se era ele quem estava cantando. "Sim", respondeu o leproso, "era eu". - "E como podeis vós cantar e estar contente suportando aflições e dores que vos vão gradualmente privando a vida?". O leproso respondeu: "Entre mim e o Senhor, nada mais há que esta muralha de barro que é o meu corpo; removido este obstáculo, eu gozarei o meu Deus e, vendo que todos os dias me vai caindo pedaços, alegro-me e canto". 


Santo Afonso Mª de Ligório - Ed. Minha Biblioteca Católica